O genocídio cultural e o autoritarismo que nos consome – Por Rafael Alexandre Silveira

27/01/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Em uma de suas últimas aparições antes de falecer, o cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini, autor de obras que retratavam e denunciavam a miséria a que estava submetido o subproletariado urbano de Roma, expressou algumas ideias importantes na tentativa de se compreender um pouco mais a respeito da atualidade. Os filmes e os escritos de Pasolini, até hoje de pouquíssima projeção no Brasil - destacam-se aqui Decameron, Accatone (desajuste social), O Evangelho segundo Mateus, Teorema, Pocilga e Contos de Canteburry -, não somente procuravam espelhar o caráter político e ideológico de uma Itália em plena vigência do fascismo de Mussolini, como também mantiveram a proposta de refletir acerca do amor, da estética e da sexualidade.

O intelectual, um gramsciano convicto, discorreu (e torna-se relevante trazer à discussão), já nos derradeiros momentos de sua vida, sobre a sociedade de consumo. Para ele, essa sociedade anulou a identidade pluralista, além de destruir a alma e a esperança dos mais puros. Pasolini costumava utilizar a expressão "massa semicriminalóide" para se referir à juventude italiana, que aderia ao primeiro regime autoritário ou despótico o qual se apresentava ao poder. O país, naquele momento, transformou-se de tal maneira, que a existência desta dita massa, serviria para alimentar o próprio autoritarismo advindo do Estado.

Admitia que se vivia uma trágica realidade política, cultural e ética, ou seja, verdadeira degradação antropológica da cultura italiana imposta pelo modelo ocidental, único em produzir um aberrante nível de degradação. O capitalismo de mercado, para Pasolini, associado às mídias hegemônicas, impôs o que chamou de "servidão voluntária". Tal expressão indicava que na Itália e em boa parte da Europa, existia uma massa indiferenciada de consumidores, submissa e alienada, capaz de levar o mundo intelectual a um certo tipo de cumplicidade a esta mesma ordem estabelecida, chamando-a de genocídio cultural. Pasolini responsabilizava diretamente os líderes políticos por soterrarem a ideia de nação em países que, em grande medida, sofreram com estas consequências. Os fascistas daquele período (e por que não afirmar os de hoje?) eram muito piores dos que tradicionais fascistas de Mussolini: mais cruéis, sem compaixão e sem regras. Se conseguimos superar e enterrar os regimes autoritários, não é menos verdade que ainda pairam sob nós as suas formas de manifestação, erodindo as sociedades democráticas (ou pretensamente democráticas), quer nas próprias manifestações de cidadãos, quer no próprio afazer político de muitos de nossos agentes a serviço dos órgãos oficiais, do Estado à mídia.

Nossa sociedade de consumo tem produzido, a partir de um autoritarismo reavivado sob outras vestes, a mesma servidão voluntária da qual Pasolini nos falava, quando mirava a Itália da década de 70. Continuamos apregoando argumentos pueris, ao alimentar discursos em que seu conteúdo exprime um desvalor absoluto da vida e das mínimas condições humanas de convivência civilizatória, basta ver as discussões, os debates e as manifestações em redes sociais ou em rodas de conversa. Compactuamos com um estado de coisas que se apresenta, a rigor, como rico em semear o ódio e a intolerância, violadores de os mais básicos direitos individuais do cidadão, do acusado ao encarcerado. Desperdiçamos a chance de construir, tendo em vista, as múltiplas possibilidades que canalizam a informação, um elo de convergência à produção de uma cultura devotada ao debate profícuo e saudável, no sentido de construir mais pontes e menos muros, ou prisões, como em voga diante de os mais recentes acontecimentos no Brasil. O "produto" de nossa sociedade de consumo é o reflexo de nosso auto genocídio cultural movido por uma indústria de reprodução autoritária a atingir corações e mentes, que não se nutre apenas da bala, do cassetete ou de todas as formas de truculência, mas da informação e de uma produção culturalmente espalhada como espólio de perversidade.

Se esta sociedade, e as pessoas a ela interligadas, está destruindo os valores precedentes que determinam o proclamado pluralismo referenciado por Pasolini, resta-nos absorver um modelo de sociedade de consumo sem definições, já vaticinado por ele em meados da década de 70. Pier Paolo Pasolini faleceu no início de novembro de 1975, brutalmente assassinado nas cercanias de Ostia, um pequeno e miserável subúrbio de Roma. Suas últimas palavras ao entrevistador despontam como um exercício lógico e intransferível para o momento presente. Dizia ele, na última entrevista antes de sua morte, afastando-se da escuridão de um quarto de hotel em Estocolmo: "Os suecos adoram a escuridão, o império das sombras. Eu quero um lugar com mais luz”!

Justamente a luz, que tanto segue a nos faltar...


Notas e Referências:

ALBUQUERQUER, João Lins de. Conversações: 50 entrevistas essenciais para entender o mundo. São Paulo: Editora de Cultura, 2008.


 

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