O FURTO, O CONCURSO DE PESSOAS E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA: O STF REITERA O SEU ENTENDIMENTO  

22/04/2021

“Quem não padece estas dores não as pode avaliar.”[1]

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal absolveu um casal em situação de rua que havia sido condenado a uma pena de quatro meses de reclusão e ao pagamento de multa, por uma tentativa de furto qualificado de produtos de um supermercado em Joinville, aplicando-se ao caso o princípio da insignificância.

A decisão foi dada no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 196850, interposto pela Defensoria Pública da União; antes, no Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus havia sido denegado, sob o argumento de que “o concurso de pessoas demonstraria maior reprovabilidade da conduta, afastando-se a aplicação do princípio da insignificância.”

Segundo consta dos autos, a tentativa de subtração recaiu sobre um conjunto de roupa infantil, um creme facial, um shampoo, um sabonete em gel, um pacote de macarrão, um pedaço de bacon e um par de chinelos de borracha, que somavam ao todo um valor de R$ 155,88; o fato nem sequer chegou a se consumar (o que, aliás, seria absolutamente indiferente para o reconhecimento do princípio da insignificância), pois os produtos foram restituídos ao estabelecimento, depois que câmeras de vídeo flagraram a ação do casal.

Em sua decisão, a ministra Cármen Lúcia lembrou que o próprio Supremo Tribunal Federal fixou vetores para a aplicação desse princípio, a saber:

  • A mínima ofensividade da conduta;
  • A ausência de periculosidade social da ação;
  • O reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
  • A inexpressividade da lesão jurídica provocada.

No caso especificamente julgado, ela também verificou que “os fatos envolveram pessoas em inquestionável situação de vulnerabilidade econômica e social, atestando o reduzido grau de reprovabilidade da conduta, sendo também inexpressiva a lesão jurídica, pois a vítima é pessoa jurídica que dispõe de aparato para inibir furtos e roubos, e os itens foram devolvidos em decorrência das medidas de precaução.”

Ademais, segundo a decisão, “quanto aos meios e modos de realização da conduta, não houve emprego de violência ou ameaça à integridade física de funcionários e seguranças do supermercado, tampouco desfalque ou redução do patrimônio da vítima nem ampliação dos bens do casal.”

Em relação ao concurso de pessoas – e esse foi um tema enfrentado anteriormente no Superior Tribunal de Justiça -, foram citados precedentes da mesma Segunda Turma, no sentido que tal circunstância, isoladamente considerada, não afasta o reconhecimento da atipicidade material da conduta, que deve ser aferida em cada caso.[2]

A decisão foi acertada, pois, efetivamente, era o caso de aplicação do referido princípio, verdadeiro “instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal.”[3]

O seu fundamento encontra-se, também, “na ideia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação ao bem jurídico o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena, de sorte que a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato.”[4]

Aliás, e como se sabe, “a origem do estudo do princípio da insignificância remonta ao ano de 1964, quando Claus Roxin formulou um enunciado original, que foi reforçado - já que se tratava de idêntico objeto - por Claus Tiedemann, com a denominação de delitos de bagatela.”[5]

Nada mais natural e dogmaticamente correto, afinal a norma penal “existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal, de tal maneira que alguém só pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal.”[6]

Vale aqui a lição sempre pertinente e oportuna de Ferrajoli, segundo a qual “a necessária lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, condiciona qualquer justificação utilitarista do direito penal como instrumento de tutela, constituindo seu principal limite axiológico externo. Palavras como 'lesão', 'dano' e 'bem jurídico' são claramente valorativas.”[7] Assim, acerta a Segunda Turma da Suprema Corte ao absolver o casal que crime nenhum cometeu, afinal se tratou de fato, material e substancialmente, atípico, portanto, irrelevante do ponto de vista penal.

 

Notas e Referências

[1] ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo, Linográfica Editora Ltda., p. 113.

[2] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RHC196850.pdf. Acesso em 22 de abril de 2021.

[3] MAÑAS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 56.

[4] REBELO, José Henrique Guaracy. Princípio da Insignificância. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.

[5] VÍTOR, Enrique Ulises García. La Insignificancia en el Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.

[6] GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 15 e18.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.

 

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