O finito e o infinito: a questão do limite  

12/05/2019

 

O artigo anterior e o presente são influência direta de minha leitura atual, “A Ciência da Lógica – Vol. 1. A doutrina do Ser”, de Hegel.

Como destacado desde os primeiros artigos, a linha filosófica seguida em meus textos decorre de uma abordagem racional da ideia Cristã, acompanhando as propostas fundamentais de Hegel, Jung e David Bohm, todos com visões não materialistas do mundo. Os dois primeiros autores foram por mim conhecidos ainda na segunda metade da década de 90, na época da graduação. À proposta científica e filosófica último eu tive acesso em 2014, depois de ler Marcelo Gleiser, ganhador do Prêmio Templeton de 2019, seguindo uma hipótese levantada em “A ilha do conhecimento”, mas descartada pelo referido autor.

Ao cursar uma disciplina optativa de nome “Seminário de Temas Filosóficos”, em 1999, fui apresentado mais proximamente às ideias Hegel, pois a matéria era uma análise de sua Filosofia do Direito, livro que durante as aulas começou a ser lido em alemão, mas como esse caminho de trabalho estava profundamente lento o professor Antônio Cota Marçal, doutor em Filosofia e, ao mesmo tempo, aluno do curso de Direito, nosso colega, disponibilizou versões do texto em outras línguas, especialmente em francês e inglês, para escolha de cada aluno, de modo que o conteúdo da obra pudesse, enfim, ser analisado.

Após uma dessas aulas, uma conversa com o professor e colega marcou-me definitivamente, rompendo um preconceito teórico pessoal no sentido de pensar que as coisas e ideias novas e mais recentes eram sempre melhores do que as mais antigas. Isso porque, depois de uma pergunta que não me lembro exatamente qual foi, ele respondeu, em linhas gerais, que a Filosofia do Direito de Hegel ainda era a melhor Filosofia do Direito, mesmo tendo essa proposta mais de cento e cinquenta anos. Depois de ler as obras hegelianas “Filosofia da História”, “Fenomenologia do Espírito” e “Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural”, entendo que, de fato, o conhecimento da verdade filosófica, incluído o Direito, passa, necessariamente, pelo trabalho desenvolvido por Hegel.

Vale salientar que depois de Hegel vieram o positivismo, o marxismo, o existencialismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, o desconstrucionismo, como algumas das principais linhas gerais de pensamento, todas contrárias às ideias fundamentais de Hegel. Ainda que eu não tenha conhecimento suficiente para desenvolver amplamente os conceitos dessas outras filosofias, penso que é possível dizer que todas elas se opõem fundamentalmente à proposta de Hegel, porque o idealismo hegeliano busca o conhecimento absoluto, pela realização do Espírito na História, o que é feito por meio de uma abordagem racional, e filosófica, do Cristianismo.

Para Hegel, o avançar na filosofia é um retorno ao fundamento original e verdadeiro.

“Assim, a consciência é reconduzida, em seu caminho a partir da imediatidade, com a qual inicia, para o saber absoluto como sua mais íntima verdade. Este último, o fundamento, é, pois, também aquilo do qual surge o primeiro, que entrou em cena primeiramente como o imediato. - Assim, o espírito absoluto, que resulta como a verdade suprema, concreta e última, de todo ser, é ainda mais reconhecido, como o que se exterioriza com liberdade no fim do desenvolvimento e se solta para a figura de um ser imediato - decidindo-se para a criação de um mundo que contém tudo aquilo que entrou no desenvolvimento, o qual precedeu aquele resultado e é transformado, por meio dessa posição invertida em relação ao seu início, em algo dependente de um resultado como o princípio. O essencial para a ciência não é tanto que algo puramente imediato seja o início, mas que o todo da mesma seja um ciclo (Kreislauf) dentro de si mesmo, onde o primeiro também é o último e o último também é o primeiro” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser. Traduzido por Christian G. Iber, Marloren L. Miranda e Frederico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016, p. 73).

Em tempos de relativismo e de materialismo, parece soar absurdo falar de “saber absoluto”, “espírito absoluto” e “verdade suprema”, como pretende Hegel, mas nada é mais científico do que um único padrão de conhecimento das coisas. Além disso, ao fazer de sua Filosofia um estudo da lógica do Espírito, de Deus, desenvolvendo expressamente a racionalidade do Cristianismo, Hegel suprassume (assume e supera) a filosofia kantiana, a qual, por sua vez, é superior ao materialismo.

Pode-se dizer que a Filosofia estudada por Hegel procura explicar o princípio do quarto Evangelho: “No princípio era o logos, e o logos estava com Deus, e Deus era o logos. (…) E o logos fez-se carne e habitou em nós” (Jo 1, 1 e 14).

A filosofia hegeliana significa a passagem do conhecimento do finito para o do infinito, na unidade entre finito e infinito: “O remeter do ser particular finito ao ser enquanto tal em sua universalidade totalmente abstrata precisa ser considerado como a exigência teórica e até mesmo prática primeiríssima” (Idem, p. 92).

Afirma que mesmo havendo distinção entre o conceito vazio de algo, como mera possibilidade, e seu ser efetivo nas coisas finitas, tal espécie de conhecimento deve ser superada quanto a Deus, que está indissoluvelmente ligado a seu conceito, como Logos.

“É a definição das coisas finitas, que nelas conceito e ser são diversos, que conceito e realidade, alma e corpo são separáveis, com isso, são perecíveis e mortais; a definição abstrata de Deus é, por outro lado, precisamente que seu conceito e seu ser são inseparados e inseparáveis. A verdadeira crítica das categorias e da razão é exatamente esta: informar ao conhecer sobre esta diferença e impedir-lhe que aplique as determinações e relações do finito a Deus” (Idem, p. 93).

A diferença entre o conhecer finito e o conhecer Deus está presente de forma análoga na física moderna, que comprova a verdade científica do Cristianismo e, também, da Filosofia de Hegel, ao desenvolver a racionalidade do Cristianismo. Isso explica a incompatibilidade entre relatividade e orgânica quântica, porque a primeira tem uma validade local, e material, trata tão somente de categorias finitas, possuindo uma limitação intransponível quando aplicada ao início dos tempos e ao buraco negro, quando a barreira do finito é alcançada e deve ser superada, exigindo que o conhecimento passe para plano do não finito, ou infinito.

A contraposição localidade da relatividade e não-localidade da orgânica quântica pode ser comparada à oposição que Hegel faz entre natureza e espírito.

“Assim o outro, apreendido unicamente como tal, não é o outro de algo, mas o outro nele mesmo, isto é, o outro de si mesmo. - Tal outro conforme sua determinação é a natureza física; ela é o outro do espírito; esta sua determinação é, então, inicialmente, uma mera relatividade, através da qual não se expressa uma qualidade própria da natureza, mas somente uma relação que lhe é externa. Mas na medida em que o espírito é o algo verdadeiro e a natureza, portanto, nela mesma, é apenas o que ela é contra o espírito, assim, na medida em que ela é tomada por si, sua qualidade é justamente a de ser o outro nela mesma, o que é fora de si (nas determinações do espaço, do tempo, da matéria)” (Idem, p. 123).

Não é coincidência constar na passagem acima conceitos como os de “relatividade”, “relação” “externa”, “espaço”, “tempo” e “matéria”, e de a física moderna, no âmbito da orgânica quântica, sustentar abordagens espiritualistas da realidade, em contraposição ao materialismo einsteniano.

Como é necessário superar a relatividade, igualmente é mister ir além do limite, que define o outro; porque algo “é ser aí imediato que se relaciona consigo e tem um limite inicialmente como frente a outro: o limite é o não ser do outro, não do próprio algo; ele limita nele seu outro” (Idem, p. 131). O limite define o finito: “Algo posto com seu limite imanente como a contradição de si mesmo, através da qual ele é apontado e impulsionado para além de si, é o finito” (Idem, p. 133). E o que é limitado está fadado a perecer, porque “o ser das coisas finitas como tal é ter o germe do perecer como seu ser dentro de si; a hora do nascimento delas é a hora de sua morte” (Idem, p. 134).

O finito tem o seu limite, no seu perecer, como passar para outro finito, e assim por diante, até o infinito. Como afirma Hegel, é “a natureza do próprio finito ir além de si, negar sua negação e tornar-se infinito” (Idem, p. 143).

Hegel sustenta, portanto, contraditoriamente, a possibilidade do conhecimento do infinito, e, por isso, conceitualmente, sua proposta é endossada pela física quântica, porque o conhecimento quântico transcende a finitude do ente, notadamente quando o quantum de ação, particular ou ondulatório, é transmitido de um ente a outro, rompendo o limite de um corpo, ou sua finitude, que passa a integrar outro corpo, cujo limite tem como início, em si, o que está além de sua finitude, de modo que o que está além do finito, o infinito, condiciona, portanto, a compreensão do finito.

“O aspecto crucial, neste ponto, é o reconhecimento de que qualquer tentativa de analisar, à maneira habitual da física clássica, a ‘individualidade’ dos processos atômicos, condicionados pelo quantum de ação, é frustrada pela inevitável interação dos objetos atômicos em exame com os instrumentos de medida indispensáveis para esse fim” (Niels Bohr. Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995, p. 24).

A necessidade de superação da finitude para o conhecimento está ainda mais clara quando Bohr afirma que o limite de uma unidade sujeito-objeto deve ser superada, além de sua finitude, por um outro sujeito:

“Nesse aspecto, convém enfatizar que a distinção entre sujeito e objeto, necessária a uma descrição inambígua, é preservada na maneira como, em toda comunicação que contenha uma referência a nós mesmos, introduzimos, por assim dizer, um novo sujeito que não figura como parte do conteúdo da comunicação” (Idem, p. 129).

“Consequentemente, os dados obtidos em diferentes condições experimentais não podem ser compreendidos dentro de um quadro único, mas devem ser considerados complementares, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos esgota as informações possíveis sobre os objetos” (Idem, p. 51).

Temos, assim, na física quântica, a necessidade de superação dos limites, das finitudes, tanto do sujeito observador como do objeto, alcançado suas infinitudes, em uma nova finitude, que também deve ser suprassumida, até que seja obtida a totalidade dos fenômenos com suas informações, unindo conceitualmente suas formas com seus conteúdos, para a compreensão de todas as informações possíveis sobre os objetos, dentro de uma subjetividade infinitamente compartilhada, que é a uniplurissubjetividade e significa o “saber absoluto”, como experiência do “espírito absoluto” ou da “verdade suprema”, filosofada por Hegel, e vivida por Jesus, o Cristo.

 

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