O “FIM DOS CONCURSOS”: A TERCEIRA REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

13/12/2018

 

 

O título deste artigo parece assustador e extremado, porém teve como finalidade despertar a sua atenção para a nova realidade que surgirá no serviço público em, no máximo, dez anos.

O Instituto dos Advogados do Brasil e a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro demostraram, em 25.6.2018, preocupação com a utilização de Inteligência Artificial (IA) para substituir a atividade humana, em especial, no exercício da advocacia.

Os dois primeiros parágrafos da nota pública emitida pelas instituições citadas aduzem que: 

“O Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB Nacional e a OAB Seccional do Rio de Janeiro – OAB/RJ vêm a público manifestar-se sobre matéria veiculada no Monitor Mercantil Digital online, acerca do lançamento de um robô, pela empresa Hurst, para defender trabalhadores na Justiça do Trabalho. Segundo informações contidas na matéria, estariam eliminados riscos com pagamento de custas processuais e de honorários decorrentes do ingresso de ações trabalhistas. ‘Com o lançamento no mercado de um robô chamado Valentina’, a empresa prestaria serviços de atendimento eletrônico aos trabalhadores, além de tirar dúvidas sobre direitos trabalhistas.

No perfil do robô no Facebook, ‘ValentinaRoboDoTrabalhador’, além de assumir que não é advogada, Valentina afiança que pode ‘comprar a briga’, assumindo os custos processuais e ‘devolvendo os valores devidos em razão de lesões trabalhistas’, ficando com uma pequena taxa por conta desta atuação. O gerente da Hurst afirma, ainda, que a empresa oferece, através do robô Valentina, uma solução completa, adquirindo os direitos patrimoniais do empregado, para agir em seu nome administrativa e judicialmente.”

A credibilidade das signatárias da nota mostra que a Inteligência Artificial já pode substituir o trabalho de advogados com certa precisão, tornando o custo menor e o valor do trabalho mais barato para os destinatários do serviço.

A Inteligência Artificial é resultado de esforços, nas áreas da ciência da computação e das engenharias, para desenvolver programas e instrumentos que possam simular o raciocínio humano e executar tarefas que lhes são próprias ou úteis.

Recentemente, foi realizado estudo, no qual advogados dos Estados Unidos com anos de experiência na análise de contratos competiram com um programa de IA chamado LawGeex AI, sendo que os resultados foram aterrorizantes para os tradicionalistas.

A consultoria McKinsey, segundo o estudo, estima que 22% do trabalho dos advogados e 35% do trabalho dos assistentes legais podem ser feitos por programas de Inteligência Artificial, liberando os profissionais para atuação estratégica em relação às demandas e às atividades de consultoria.

Ficou constatado que o LawGeex obteve um percentual de precisão em relação ao conteúdo de 94% e que os profissionais humanos alcançaram o percentual de 85%[1]. Em relação à velocidade, constatou-se que o programa consegue analisar um contrato padrão em 26 segundos enquanto o advogado experiente mais rápido passa, no mínimo, 92 minutos para desempenhar a mesma tarefa.

No desenvolvimento deste artigo, o corte inicial feito para as atividades jurídicas tem como consequência a indução, pois as atividades dos servidores públicos em geral não apresentam aspectos formais muito diferentes das atividades desempenhadas pelos advogados. 

Não há dúvida de que, sob o aspecto material, as atividades são muito diversas, porém o servidor público, após a edição da Lei n. 9.784/99, desenvolve, em regra, as suas atividades mais relevantes no seio de um processo ou de um procedimento administrativo.

Na atual quadra em que se encontra o serviço público, não seria errado prever que todos os processos e procedimentos da Administração Pública Federal estarão tramitando eletronicamente em, no máximo, cinco anos.

Dessa maneira, conjugando-se esses dois fatores: (i) a efetivação dos processos e procedimentos administrativos eletrônicos e (ii) a utilização da Inteligência Artificial, apresentar-se-á, em breve, a terceira reforma da Administração Pública.

Preambularmente, é preciso entender as duas reformas já ocorridas: a burocrática e a gerencial. A primeira afastou o patrimonialismo e a segunda buscou afastar a burocracia excessiva.

Antes da reforma da década de 30 do século passado, a Administração Pública brasileira, incluídos todos os entes da federação, era patrimonialista, pautada na centralização e na concentração de poder, na confusão entre o interesse privado do gestor e o interesse público, na corrupção, no nepotismo, na falta de planejamento e no autoritarismo.

A Constituição de 1937 previa a criação de um departamento incumbido de organizar os órgãos do Estado, para o aperfeiçoamento da máquina pública, além de elaborar a proposta orçamentária do governo e prestar assessoria ao presidente da República.

A criação do Departamento Administrativo de Serviço Público (DASP) pelo Decreto-Lei n. 579, 30 de junho de 1938, inaugurou uma nova fase na Administração Pública que pode ser chamada de burocrática, baseada na valorização dos agentes públicos e seu profissionalismo, na busca por segurança jurídica, na rigidez hierárquica, na impessoalidade, no controle, no formalismo e objetividade das relações do Estado com os administrados.

Apesar de ter sido editado durante o regime militar, o Decreto-Lei n. 200/67 deu os primeiros passos para implantação do modelo gerencial de Estado, tendo sido o instrumento da reforma da administração pública da década de 60 do século XX.

De acordo com os defensores do Estado gerencial, a atividade pública passou por uma grave crise na década de 80 do século XX, deixando de ser fonte indutora do crescimento do país para representar grande entrave ao desenvolvimento.

O crescimento do Estado estava inviabilizando a atividade privada, visto que os particulares eram cada vez mais tributados para atender às necessidades de uma estrutura pública cara e ineficiente que não tinha capacidade de oferecer as contraprestações em serviços públicos e infraestrutura exigidas pela sociedade na década de 90 do século XX.

Luiz Carlos Bresser-Pereira[2], principal idealista do Estado gerencial, defendia a existência de um Estado mínimo que pudesse se ocupar dos serviços e atividades públicos exclusivos, destinando as demais atividades à inciativa privada através da privatização de entidades da administração pública indireta.

Além disso, a atribuição da qualidade de servidor público a agentes que desempenhavam atribuições relacionadas a atividades-meio não privativas de carreiras exclusivas de Estado, segundo a sua ótica, acarretava custos excedentes à máquina pública.

O Estado mínimo exigia a terceirização de todas as atividades que não estivessem relacionadas diretamente à representação do Estado nas suas diversas funções de arrecadação, exercício de poder de polícia, polícia, diplomacia, advocacia pública, judiciária e legislativa.

Para Bresser-Pereira, quatro deveriam ser os vetores das mudanças de um Estado burocrático para um Estado gerencial, são elas:

a) a delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatização, terceirização e publicização (este último processo implicando a transferência para o setor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que o Estado presta);

b) a redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário através de programas de desregulação que aumentem o recurso aos mecanismos de controle via mercado, transformando o Estado em um promotor da capacidade de competição do país a nível internacional ao invés de protetor da economia nacional contra a competição internacional;

c) o aumento da governança do Estado, ou seja, da sua capacidade de tornar efetivas as decisões do governo, através do ajuste fiscal, que devolve autonomia financeira ao Estado, da reforma administrativa rumo a uma administração pública gerencial (ao invés de burocrática), e a separação, dentro do Estado, ao nível das atividades exclusivas de Estado, entre a formulação de políticas públicas e a sua execução; e, finalmente,

d) o aumento da governabilidade, ou seja, do poder do governo, graças à existência de instituições políticas que garantam uma melhor intermediação de interesses e tornem mais legítimos e democráticos os governos, aperfeiçoando a democracia representativa e abrindo espaço para o controle social ou democracia direta.

Após o estabelecimento dos vetores principais de mudança, Bresser-Pereira listou como as principais características de um Estado gerencial as seguintes:

a) orientação da ação do Estado para o cidadão-usuário ou cidadão-cliente;

b) ênfase no controle dos resultados através dos contratos de gestão (ao invés de controle dos procedimentos);

c) fortalecimento e aumento da autonomia da burocracia estatal, organizada em carreiras ou corpos de Estado, e valorização do seu trabalho técnico e político de participar, juntamente com os políticos e a sociedade, da formulação e gestão das políticas públicas;

d) separação entre as secretarias formuladoras de políticas públicas, de caráter centralizado, e as unidades descentralizadas, executoras dessas mesmas políticas;

e) distinção de dois tipos de unidades descentralizadas: as agências executivas, que realizam atividades exclusivas de Estado, por definição monopolistas, e os serviços sociais e científicos de caráter competitivo, em que o poder de Estado não está envolvido;

f) transferência para o setor público não-estatal dos serviços sociais e científicos competitivos;

g) adoção cumulativa, para controlar as unidades descentralizadas, dos mecanismos (1) de controle social direto, (2) do contrato de gestão em que os indicadores de desempenho sejam claramente definidos e os resultados medidos, e (3) da formação de quase-mercados em que ocorre a competição administrada;

h) terceirização das atividades auxiliares ou de apoio, que passam a ser licitadas competitivamente no mercado.

Luiz Carlos Bresser-Pereira não foi apenas o idealizador da reforma administrativa acima mencionada, tendo sido também o seu executor, pois foi nomeado, pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado em janeiro de 1995.

A Emenda à Constituição n. 19/1998 foi elaborada pela sua equipe para colocar em prática as mudanças necessárias a alcançar a transição para o Estado mínimo e gerencial.

A mudança trouxe as agencias executivas, a figura do contrato de gestão, o princípio da eficiência, a primeira grande onda de privatizações, a redução e extinção de cargos e empregos públicos relacionados às atividades-meio, a terceirização de atividades não-essenciais, a possibilidade de criação de agências reguladoras, a ampliação da participação do cidadão nas decisões governamentais, a desconcentração, a descentralização de serviços e a descentralização política para entes estatais inferiores de serviços públicos, o controle da produtividade e da economicidade, o fortalecimento da autonomia das entidades, a necessidade de planejamento das ações estatais, a valorização das carreiras exclusivas de Estado, o estabelecimento de critérios para aferição de desempenho para servidores públicos, a possibilidade de contratação de agentes públicos como empregados públicos, a tentativa de reduzir o déficit público, a busca por resultados e por mais transparência e a valorização do terceiro setor como indutor e prestador de atividades de interesse coletivo.

Após essas duas reformas, quais sejam: a burocrática e a gerencial, chega-se, nas primeiras décadas do século XXI, à reforma da Inteligência Artificial.

As atividades ordinárias e repetitivas dos servidores públicos ou mesmo dos terceirizados serão desempenhadas com maior velocidade e com maior grau de precisão por programas e instrumentos acessórios a tais programas, o que efetivará três princípios constitucionais: (i) o da economicidade, (ii) o da eficiência e (iii) o da duração razoável dos processos e procedimentos administrativos.

A consequência da terceira reforma da Administração Pública será a redução de gastos com recursos materiais e a redução dos quadros do funcionalismo público a níveis além dos sonhados por Bresser-Pereira.

Isto posto, a drástica redução do número de cargos públicos e, por consequência, a expressiva redução dos concursos públicos decorrentes da implantação da Inteligência Artificial não estão essencialmente relacionadas a questões ideológicas, sendo certo que tais consequências mostram, em verdade, a inexorável e inafastável evolução científica.

 

Preparem-se!

 

 

Notas e Referências

COUTO, Reinaldo. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

[1] http://ai.lawgeex.com/rs/345-WGV-842/images/LawGeex%20eBook%20Al%20vs%20Lawyers%202018.pdf

[2] A Reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997. 58 p. (Cadernos MARE da reforma do estado; v. 1).

 

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