Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
De alguma maneira, todos os meus textos nesta coluna remetem à pandemia. Falamos sobre passagens aéreas, direito de arrependimento. Também mencionei, com certo ceticismo, sobre o “novo normal” e a dificuldade de acreditar numa sociedade idílica, pronta para recomeçar. Pois é justamente com o termo “normal” que começo este texto, já que, recentemente, a multinacional Unilever anunciou que, nos rótulos dos seus produtos, não constará mais essa palavra. De acordo com a declaração da empresa[1], tudo faz parte de estratégia mais inclusiva de publicidade, que incorpora uma visão positiva de beleza.
Após pesquisa realizada em 9 países[2], com dez mil pessoas, a Unilever constatou que 56% delas acreditam que a indústria da beleza e do cuidado pessoal acarretam sentimentos de exclusão. Ainda, 74% pensam que esse nicho deveria oferecer soluções para que as pessoas se sintam melhores, não apenas mais bonitas. Ainda, de 70% a 80%, dependendo da faixa etária, ponderam que a palavra “normal” nos rótulos tem um impacto negativo. Em sua nota à imprensa, o presidente da Unilever, Sunny Jain[3], mencionou que a marca também investiria em maior diversidade nas fotos e pararia de tratar as imagens os anúncios com Photoshop no que tange às formas e tamanhos dos corpos, proporções e cores de pele.
Seria esse um caminho para um mundo de maior aceitação? Seria o “novo normal” mais abrangente, mais democrático? Difícil dizer. Ao passo que o consumo físico, tradicional, parece se abrir a novas possibilidades que não aquelas pré-formatadas – o que, não nos enganemos, retrata também o intuito de conquistar novos nichos[4] –, nas telas, onde acontece grande parte das interações entre as pessoas, um fenômeno preocupa.
De acordo com uma matéria publicada no The Huffington Post[5] no mês de maio, além da COVID-19, uma epidemia muito específica se espalha pelo mundo: o hábito de retocar fotos com o Facetune. Tal aplicativo é descrito no site da empresa[6] como o número 1 em edição de selfies, utilizado por mais de 100 milhões de pessoas no mundo. Dentre as funções, estão as de suavizar a pele, clarear os dentes, apagar espinhas, mexer nas linhas faciais, adicionar maquiagem, afinar a cintura, dentre outras. Há, ainda, aplicativos específicos para vídeos e filtros para as redes sociais, que prometem ferramentas para “estar bonito” em todas as imagens.
A reportagem trata do quão nociva é essa prática, que permite que as pessoas, mas especialmente as mulheres[7] – sobre as quais recaem fortes expectativas culturais de se apresentarem atraentes[8] – suprimam ou modifiquem determinadas características consideradas fora do padrão em seu visual. Há depoimentos de quem usa as ferramentas do aplicativo desde o colégio e, agora, na idade adulta, já não conseguem fazer uma postagem sem meticulosamente arrumar as suas fotos e a si mesmas. Em um ano (mais de um ano até!) em que só nos vemos pelas telas, isso pode ter efeitos ainda mais perversos.
Dentre essas consequências são citadas comparações a vícios, mas também questões ligadas à dismorfia corporal. Após utilizarem filtros e o aplicativo, as pessoas têm procurado cirurgiões plásticos para as fazerem parecer com a sua versão melhorada pelo aplicativo. Já não faz sentido não se assemelhar com o resultado de uma foto na qual trabalharam por 20 minutos ou uma hora.
A realidade fica tão distorcida que o “eu digital” parece mais verdadeiro do que a “versão original” e, para que se encontrem, muitas estão dispostas a passar por procedimentos invasivos e arriscados. E, em incontáveis vezes, os resultados buscados são inatingíveis, já que os avatares das telas não sofrem quaisquer limitações para serem transformados que não as éticas (algumas entrevistadas mencionam alterar as fotos de maneira que ainda pareçam legítimas), mas o corpo humano tem limites físicos e biológicos.
A cadeia mercadológica, assim, continua se alimentando e são criadas novas maneiras de consumir e novos nichos são apresentados. Se, por um lado, é louvável que uma grande empresa deixe de utilizar o termo “normal” para se referir ao tipo de pele ou de cabelo dos consumidores, aquilo que é considerado a regra não passa de uma abstração criada na tela por um aplicativo, cada vez mais inalcançável. A pressão estética pode até diminuir no que tange aos rótulos, mas aumenta quando é possível mudar o meu rosto e o meu corpo por um aplicativo. Não há normalidade que alcance o mercado que, como dito por Bauman[9], transforma as pessoas em mercadorias.
Notas e Referências
[1] UNILEVER. Unilever says no to “normal” with new positive beauty vision. Unilever global company website. Disponível em: <https://www.unilever.com/news/press-releases/2021/unilever-says-no-to-normal-with-new-positive-beauty-vision.html>.
[2] Brasil, China, Índia, Indonésia, Nigéria, Arábia Saudita, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos. UNILEVER. Unilever says no to “normal” with new positive beauty vision. Unilever global company website. Disponível em: <https://www.unilever.com/news/press-releases/2021/unilever-says-no-to-normal-with-new-positive-beauty-vision.html>.
[3] HOU, Kathleen. You Won’t See This Word on Beauty Packaging Anymore. The Cut. Disponível em: <https://www.thecut.com/2021/03/unilever-is-removing-the-word-normal-from-its-packaging.html>. Acesso em: 4 Jun. 2021.
[4] Relativamente a esse ponto, de exploração de outros nichos de consumo e com repercussão social, há uma interessante pesquisa sobre a “Pink Pound”, ou “dinheiro rosa”. Esse termo é habitualmente utilizado para descrever o poder aquisitivo e, consequentemente, o incentivo da comunidade LGBTQIA+ a determinados negócios ou causas. De acordo com essa investigação, contudo, é preciso abordar o “pink pound” de forma mais ampla, considerando a relação entre a homossexualidade, capitalismo e a sociedade de consumo. No original: “I seek to redefine the pink pound more broadly as any financial incentive offered by LGBTQ people, homosexuality and queerness. This could, unsurprisingly, include actively courting any combination of LGBTQ consumers. It might also rely upon the strategic invocation of homosexuality, or gender and sexual non-conformity, either through negative characterisations or progressive support, in order to appeal to particular market segments, which don’t actually need to be queer themselves. So, for example, people opposed to LGBTQ equality might support businesses precisely because of their shared homophobic positions. Approaching the pink pound with this broader scope in mind reveals the myriad ways in which homosexuality has long been embedded in the history of capitalism and consumer society”. BENGRY, Justin. The pink pound’s hidden history. The British Academy. Disponível em: <https://www.thebritishacademy.ac.uk/blog/pink-pound-hidden-history/>.
[5] COOK, Jesselyn. Selfies, Surgeries And Self-Loathing: Inside The Facetune Epidemic. HuffPost. Disponível em: <https://www.huffpost.com/entry/facetune-selfies-surgeries-body-dysmorphia_n_60926a11e4b0b9042d989d48>. Acesso em: 7 Jun. 2021.
[6] FACETUNE. Facetune2 - Best Seflie Editor App. Facetuneapp.com. Disponível em: <https://www.facetuneapp.com>.
[7] Para este texto, os termos “mulher” e “mulheres” incluem todas as formas femininas, sejam cis, trans ou de “apresentação feminina”. De igual forma, “homem” e “homens” também se aplicam a todas as formas masculinas.
[8] DUESTERHAS, Megan [et al]. The Cost of Doing Femininity: Gendered Disparities in Pricing of Personal Care Products and Services. Gender Issues, Vol.28, Issue 4. 2011. pp. 175–191. Os autores do artigo salientam, ainda, que a construção do “eu com gênero” está intimamente relacionada ao consumo. “In other words, the construction of the gendered self is accomplished in part by consumer practices”.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
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