O excesso punitivo e mais um erro legislativo

29/01/2016

Por Mauricio Stegemann Dieter - 29/01/2016

Há pouca dúvida sobre a incapacidade técnica do Legislativo brasileiro. Mesmo assim, impressiona a deficiência teórica de senadores e deputados federais quando o assunto é direito penal orientado por uma política criminal racional.

Nas últimas três décadas o Legislativo aprovou mais de 115 leis com conteúdo penal. Isso significa que, de 1985 em diante, tivemos uma média de quase quatro leis penais por ano. Como resultado, além da ampliação genérica da competência punitiva do Estado, cerca de 550 crimes foram forçados em um sistema saturado. Essas novas hipóteses de criminalização revelaram-se, com raríssimas exceções, absolutamente desnecessárias – quando não simplesmente estúpidas demais para merecerem uma avaliação utilitária. Entre um sem-fim de exemplos valeria mencionar o terrível “molestamento de cetáceo” (Art. 1.º, Lei 7.643/87) e o “dano a planta ornamental” (Art. 49, Lei 9.605/98), sem falar na imperdoável “violação do registro de topografia de circuito integrado” (art. 54, Lei 11.484/2007) ou no execrável ato de “aquecer água de piscina com gás de cozinha” (Art. 1, II, Lei 8.176/91). Todas ações que, no entendimento da classe política, precisam ser combatidas com o máximo rigor da pena privativa de liberdade.

Por força da inflação penal – muito superior à econômica –, a ideia de que “crime” é algo “grave” perdeu fundamento: a maior parte das estimadas 1.688 incriminações existentes no país não viola abertamente um direito fundamental, nem pressupõe violência ou grave ameaça. E, se “tudo é crime” (e é, mesmo), ser “criminoso” significa muito pouco. Como consequência, o sistema penal perde sobriedade e direitos individuais se relativizam a fim de tornar mais eficiente essa máquina cara, lenta, violenta e inútil para prevenção de novos delitos.

A produção de leis penais assemelha-se a uma epidemia. Contagia, inclusive, grupos políticos organizados em torno das melhores intenções. Ao que tudo indica, para que um movimento de luta por direitos seja ouvido no Congresso é imperativo incluir em suas agendas algumas inovações punitivas. Entre parlamentares, ao menos, o ímpeto por legislação penal meramente simbólica ultrapassa sectarismos; embora as bancadas ruralista, “da bala” e evangélica sejam lideranças consagradas na proposição de novos ilícitos, raríssimos são os representantes eleitos que resistem à tentação de inventar um crime aqui, agravar outro ali, aumentar uma pena acolá. A crítica ácida ouvida meses atrás em um importante encontro de criminalistas latino-americanos é absolutamente pertinente: todos querem um crime para chamar de seu. Como se encarceramento e emancipação social andassem de mãos dadas. Não andam.

Para quem conhece o elementar de criminologia, a pretensão de diminuir a criminalidade aumentando o número de crimes ou agravando penas é tão sem sentido que soa a provocação. Afinal, ao criminalizarmos (definirmos um fato como crime), aumentamos a criminalização (a possibilidade de alguém ser acusado ou condenado por esse fato) e, com ela – quem diria –, a criminalidade (a quantidade de pessoas efetivamente acusadas ou condenadas por tal fato). Ou seja, não há qualquer relação entre criminalização e redução da criminalidade. Pelo contrário.

Nesse contexto de excesso punitivo é profundamente desanimadora a sanção de mais uma hipótese de aumento de punição, desta vez para o crime de estelionato. De acordo com o texto publicado no Diário Oficial no antepenúltimo dia de 2015, dobra-se a pena para o crime previsto no popular artigo 171 do Código Penal se a vítima estiver entre a faixa de 12% da população com idade igual ou superior a 60 anos, conforme critério do Estatuto do Idoso.

À parte eminentes falhas técnicas na redação do novo parágrafo recém-incluído, o problema continua a ser de fundo: a justificativa do deputado Márcio Marinho (PRB/BA) ao PLC 23/2015, apresentado em 2010, tem a profundidade de um pires. Sem mencionar dados ou referências bibliográficas, em seis curtos parágrafos, o parlamentar remete a duas notícias de jornal para concluir que o problema “cresce a cada dia” e, por isso, precisa de “punição adequada” para assegurar a “devida proteção das pessoas idosas”. Mais nada.

A iniciativa, infelizmente, não fugiu à regra: desacompanhada de rigoroso estudo criminológico ou mesmo sucinta pesquisa honesta, intuiu simultaneamente problema e solução. Falta o mais importante: a demonstração de que a duplicação da pena seria mesmo capaz de prevenir o engano dos mais velhos. Por parte das autoridades, ao menos, seguiremos sem resposta. Em silêncio, a sociedade precisa se contentar com nova afirmação da crença oficial na pena, uma fé tão torpe quanto antiga. O sistema de justiça criminal, cujos esforços para evitar a prática de novos delitos tem a solitária virtude de refinar a “arte de secar gelo”, está com o futuro assegurado. No que depender de Brasília, ao menos, não deve faltar gelo.


Publicado originalmente no site da Gazeta do Povo.


Mauricio Stegemann Dieter. Mauricio Stegemann Dieter é mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná, é professor de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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