Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 05/03/2016
O sequestro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, travestido de condução coercitiva pela Polícia Federal e por determinação do Juiz Federal Sérgio Moro na 24ª fase da operação apelidada de “Lava Jato”, revela que o Estado penal não tem mais limite. A 24ª fase da “Lava Jato” que atingiu o ex-presidente Lula e seus familiares foi, como diz o dito popular, a “cereja do bolo” do autoritarismo.
Longe de qualquer paixão política ou interesse partidário, necessário destacar que a condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva não tem nenhum respaldo legal ou jurídico. Tanto é verdade que em entrevista coletiva procuradores da República disseram que “a condução foi para proteger Luiz Inácio”. Não sei se é motivo para rir ou para chorar, mas se não fosse trágico seria cômico. Uma nova modalidade de proteção criada pela “força-tarefa” da Lava-Jato. A 24ª fase da operação, como toda a operação, foi mais uma fase do processo penal do espetáculo.
Há muito, vários juristas verdadeiramente comprometidos com o Estado democrático de direito vem alertando para o avanço do Estado penal. O braço repressor do Estado (Polícia Federal e Ministério Público) com o aval de parte do judiciário está “governando” o país.
O elevado número de prisões como mecanismo para obtenção das delações ou colaborações premiadas - que são tomadas como se fossem verdadeiras em troca da liberdade dos delatores - está transformando o processo penal em um processo de exceção. Em um processo em que juiz e procuradores vestem a mesma toga. A toga punitiva.
No que se refere à delação premiada, o eminente processualista Jacinto Nelson Miranda Coutinho assevera: “O pior é que o resultado da delação premiada – e talvez a questão mais relevante – não tem sido questionado, o que significa ter a palavra do delator tomado o lugar da “verdade absoluta” (como se ela pudesse existir), inquestionável. Aqui reside o perigo maior. Por elementar, a palavra assim disposta não só cobra confirmação precisa e indiscutível como, por outro lado, deve ser sempre tomada, na partida, como falsa, até porque, em tais hipóteses, vem de alguém que quer se livrar do processo e da pena. Trata-se, portanto, de meia verdade, pelo menos a ponto de não enganar quem tem os pés no chão; e cabeça na CR”.
Não se pode olvidar que o processo penal é manifestação de poder com estreita relação com a ideologia dominante de cada país. Logo, em países autoritários e fascistas prevalecerá um sistema processual autoritário caracterizado por cerceamento de direitos e inexistência de garantias. Ao contrário, nos sistemas democráticos (democracia material) os direitos e garantias fundamentais assumem status de princípios, independente de estarem ou não expressos na Constituição.
Embora sem previsão legal, alguns magistrados acresceram mais uma esdrúxula espécie e fundamento para decretação da prisão preventiva: “repercussão midiática”. Aqui a prisão é decretada para ser noticiada, propagada e alardeada. Na prisão midiática a privacidade, a intimidade e a presunção de inocência são sobrepujadas pelas manchetes sensacionalistas de uma imprensa pouco ou nada comprometida com os direitos e garantias fundamentais. Como já proclamou Noam Chomsky “A imprensa pode causar mais danos que a bomba atômica. E deixar cicatrizes no cérebro”.
A prisão decretada visando a “repercussão midiática”, confundida com o clamor público, transforma-se em espetáculo. Espetáculo que em nome da audiência atropela o devido processo penal, o contraditório e a ampla defesa.
Comprometido com os direitos fundamentais, o magistrado e professor Rubens Casara observa que no processo penal voltado para o espetáculo, “não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito, marcado por limites ao exercício do poder, desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento. No processo espetacular o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, tende a desaparecer, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz. Um discurso construído, não raro, para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa... O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo”.
É preciso atentar para o fato, conforme observa Anselm Jappe, de que o chamado “Estado democrático atual está muito mais equipado do que os Estados totalitários de outrora para fazer o mal, para perseguir de perto e eliminar tudo o que possa fazer-lhe frente”. Tivessem à época os Estados totalitários os recursos, inclusive de vigilância e repressão, que os Estados ditos democráticos possuem hoje, no dizer do filósofo e ensaísta Jappe, “nenhum judeu ou cigano teria escapado, nenhuma resistência teria podido nascer, todo fugitivo de um campo de concentração teria sido recapturado imediatamente”.
Por tudo, urge que o Supremo Tribunal Federal - que já feriu a Constituição da República quando do julgamento do HC 126.292 aniquilando o princípio constitucional da presunção de inocência – retome já, imediatamente, o seu papel de Corte Constitucional e guardião da Constituição e imponha limites ao poder de polícia, a fúria punitiva e ao Estado penal em nome dos direitos e garantias fundamentais e do próprio Estado democrático de direito.
Belo Horizonte, 04 de março de 2016.
. . Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . .
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