O Estado de Coisas Inconstitucional sob a Perspectiva da Omissão Parcial (Parte 3)

01/03/2016

Por Nicola Patel Filho – 01/03/2016

Leia também a Parte 1 e a Parte 2.

4. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental como Ação Constitucional apta a Desenvolver Diálogos Institucionais.

De acordo com o já exposto, ainda que o Estado de Direito tenha por principal fonte de normas de caráter geral os representantes do povo (Legislativo) e como executores das medidas legais o Executivo, as normas constitucionais não podem ficar a mercê da vontade (ou falta dela) legislativa, ainda mais quando se trata de graves violações de direitos humanos, posto que o Estado só é de direito quando o estado de coisas é compatível com o ordenamento como um todo.

Por isso, o Constituinte reservou instrumento processual específico para a proteção dos preceitos fundamentais da Constituição, sem delimitar de forma clara o seu objeto ou parâmetro de controle.

Por mais que alguns Doutrinadores afirmem uma “reserva de constituição” como um conteúdo mínimo que obrigatoriamente deve o texto Magno disciplinar, no julgamento da ADI 3510, o relator Min. Carlos Ayres Britto pontuou que "O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria ‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’)”[1]; fenômeno este que ele chamou de “mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária”.

Com a disciplina da ADPF não parece ser diferente, posto que o texto constitucional limitou-se a prever o instituto e o órgão julgador, sem fazer qualquer menção a procedimento, decisão ou a própria eficácia desta.

Art. 102. (...)§ 1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

Esse silêncio deve interpretado como transpasse do poder normativo para a legislação ordinária disciplinar a matéria; aliás, foi o que fez o art. 10 da lei 9.882/99:

Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.

Ao estabelecer que o órgão julgador (o STF) fixe as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental, o Legislador aduba terreno fértil para que se desenvolva técnicas inovadoras de decisão capazes de superar os mais diversos estados de inconstitucionalidades, ainda que decorrente da omissão parcial qualificada, como se vê no caso do sistema carcerário.

MENDES acompanha esse entendimento ao afirmar que “o art. 10 da lei n. 9.882/99, ao estatuir que o STF fixará as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental vulnerado, abre uma nova perspectiva, não por criar uma nova via processual própria, mas justamente por fornecer suporte legal direto ao desenvolvimento de técnicas que permitam superar o estado de inconstitucionalidade decorrente da omissão”.

Assim, por mais que se trate de uma omissão parcial, por mais que a omissão parcial tenha instrumento processual próprio para sanar o estado de inconstitucionalidade, esse remédio constitucional se torna ineficaz diante de um Estado de Coisas Inconstitucional que tem por pressuposto a grave violação de direitos humanos, sistêmica e com suporte em legislative blind spots que a tornam de certa maneira deliberada.

Em decorrência disso, a ADPF torna-se o único meio eficaz de sanar a lesividade (§1º do art. 4º da lei 9.882/99), satisfazendo a subsidiariedade que é própria do instrumento processual. Por mais que a praxe seja a utilização da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para sanar as lacunas constitucionais da omissão do dever de legislar, seja total ou parcial, verifica-se que a ADPF possibilita ao Tribunal Constitucional maior liberdade para desenvolver técnica apropriada para cessar o estado de inconstitucionalidade, mormente quando este resulta na violação maciça dos direitos humanos, como ocorre com o sistema carcerário.

Diante do exposto, não há qualquer óbice legal para se desenvolver diálogos institucionais entre órgãos e Poderes públicos por intermédio de ADPF em que o Supremo Tribunal Federal retire os demais Poderes da inércia, convocando e impondo medidas baseadas em razões públicas que visem a superação de estados de inconstitucionalidade, mormente quando é crassa a grave violação de direitos humanos e os Poderes capacitados não tomam as devidas providências. O Supremo não pode ser mero expectador de graves violações de direitos humanos.

6. Conclusão.

Por todo o exposto, penso que o Estado de Coisas Inconstitucional nada mais é que uma omissão parcial do dever de legislar. Contudo, é uma omissão parcial qualificada, posto que gerada pela inércia deliberada e sistêmica dos órgãos públicos em geral, resultando na grave violação de direitos humanos e que requer uma atuação dialógico-estruturante para sanar o estado de inconstitucionalidade.

E essa grave violação de direitos humanos decorre dos chamados pontos cegos legislativos (legislative blind spots), mais precisamente da falta de vontade política por parte dos poderes representativos em atuar em prol de minorias estigmatizadas, ainda mais quando presente o temor dos custos políticos ao favorecer determinados grupos.

Diante da não atuação dos poderes de representação e execução, a eficácia normativa da Constituição acaba por não alcançar essas minorias (no caso, a população carcerária), fragilizando a densidade de preceitos constitucionais gerais ou específicos que buscam proteger o núcleo rígido da Constituição Federal: a dignidade da pessoa humana.

Se é correto afirmar que a iniciativa de políticas públicas deve ser tomada pelos poderes Executivo e Legislativo, mais correto ainda é que quando a ausência delas torna-se obstáculo ao exercício regular ou resulta na violação de um direito fundamental constitucionalmente assegurado abre-se espaço para que o Judiciário atue em defesa dos preceitos constitucionais violados visando sanar o estado de inconstitucionalidade, ainda que importe em sentença de perfil aditivo.

Isso é possível em função do nítido caráter substancial (ou programática) da Constituição Federal de 1988, o que legitima maior interferência do Judiciário nos demais poderes.

E isso não é novidade em nosso ordenamento jurídico, já que temos instrumentos constitucionais como a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de injunção, o mandado de segurança e outros, os quais permitem a ingerência do Judiciário nos outros poderes.

Só que a ADPF que visa declarar o Estado de Coisas Inconstitucional (ou a omissão parcial qualificada) vai além por, supostamente, não existir previsão no ordenamento jurídico para manipular instrumentos de perfil dialógico.

No entanto, essa não é a leitura mais acertada, já que a abertura do texto permite o mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária, contribuindo para o amplo espaço de conformação da ADPF. E a legislação ordinária tem cumprido seu papel ao permitir que o Tribunal Constitucional desenvolva novas técnicas de decisão por meio do disposto no art. 10, caput, da lei 9.882/99.

Diante da nítida e generalizada violação de direitos humanos, bem como da incapacidade, inércia e descaso do poder público representado nas várias instituições, impende ao Guardião da Constituição (art. 103, caput, da CF) “o papel de retirar os demais poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. A intervenção judicial seria reclamada ante a incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas” – Min. Marco Aurélio na ADPF 347.

Diante da excepcionalidade da medida, é que seus requisitos são extremamente rígidos: 1) omissão parcial que resulte na grave violação dos direitos humanos; 2) inércia deliberada dos poderes públicos; 3) que requeira atuação dialógico-estruturante para sanar o estado de inconstitucionalidade.

Vejamos alguns exemplos: poder-se-ia afirmar que a saúde pública precária resulta na grave violação dos direitos humanos (exagerando). No entanto, não há inércia ou política pública deficitária para o aumento no padrão da saúde. Pelo contrário, conforme afirmado pelo Min. Marco Aurélio na ADPF 347, o Legislativo e Executivo se empenham em buscar alternativas e soluções para a saúde pública. Ademais, em casos isolados tem sido admitido a justiciabilidade do acesso a saúde e cada vez mais essa justiciabilidade tem sido objeto de controle pelo próprio judiciário, conforme se depreende da audiência pública convocada pelo então Presidente do STF, Min. Gilmar Mendes, realizada nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009.[2]

No caso do direito de greve dos servidores públicos, sequer pode-se falar em grave violação dos direitos humanos. E ainda, não exige atuação dialógico-estruturante para sanar o estado de inconstitucionalidade (requisito n. 3).

Acredito que no Brasil, hoje, só há mais uma omissão parcial que possa configurar o Estado de Coisas Inconstitucional: trata-se dos altos índices de homicídios que se verifica, principalmente, nos Estados-federados das regiões norte e nordeste[3]. Contudo, esse é um tema para debater em outra oportunidade.

Obvio que gostaria que nossa sociedade não precisasse de “atalhos” para superar a falta de sentimento constitucional e que a proteção dos direitos humanos fosse tomada por iniciativa dos poderes representativos, cabendo ao judiciário apenas a análise de casos individuais e concretos, sem qualquer contato com a implantação de políticas públicas. Infelizmente, não é o que se verifica. A inoperabilidade de alguns poderes diante de situações concretas violadoras de direitos humanos exige uma atuação ativa do Judiciário sempre em prol dos direitos humanos (nunca para relativizá-lo, mormente frente a uma pseudossegurança). Em função desses direitos (humanos) é que torço para que a tão questionada eficácia da declaração de ECI seja realmente levada a efeito e que os remédios estruturais adotados possam reverter o complexo quadro violador de direitos humanos do sistema carcerário.

Diante de todo o exposto, por mais que se se afirme tratar de uma tese sem base legal, por mais que se critique o excessivo ativismo judicial, bem a possibilidade de uma “decisão simbólica”, o fato é que o Supremo não pode ficar de braços cruzados diante da nítida violação dos direitos humanos da pessoa presa.


Notas e Referências:

[1] ADI 3.510, rel. min. Ayres Britto. Julgamento em 29-5-2008, Plenário. Publicado em 28-5-2010.

[2] Para maiores informações a respeito, segue o link para consulta: http://www.stf.jus.br/portal/cms/vertexto.asp?servico=processoaudienciapublicasaude

[3] Veja por exemplo o Global Study on Homicide, segundo o qual Estados-federados como a Paraíba e a Bahia registraram um aumento de 150% na taxa de homicídios. Por outro lado, “Southern Africa has one of the highest homicide rates in the world, but the homicide rate in South Africa decreased steadily between 1995 and 2011 by more than 50 per cent (from 64.9 to 30.0 per 100,000 population). UNIDAS, Nações. Globa Study on Homicide. Disponível em: http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/statistics/GSH2013/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf. Publicado em: 2013. Acesso em: 22.2.2016.


Nicola Patel Filho

Nicola Patel Filho é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Barriga Verde (UNIBAVE), especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Aprovado nos concursos de Delegado de Polícia de Polícia Civil no Estado do Paraná (2013) e de Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina (2015). Membro do Grupo de Estudos e Aperfeiçoamento de Polícia Judiciária da Associação de Delegados de Polícia de Santa Catarina..


Imagem Ilustrativa do Post: The Lincoln Memorial // Foto de: David Jones // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/davidcjones/6363333671

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura