O Estado de Coisas Inconstitucional sob a Perspectiva da Omissão Parcial (Parte 2)

29/02/2016

Por Nicola Patel Filho – 29/02/2016

Leia também a Parte 1.

3. Necessidade de Desenvolver Novas Técnicas de Decisão para Superar o Estado de Inconstitucionalidade.

3.1. Princípio do Estado de Direito.

O Estado é de Direito quando sua principal fonte formal é a lei, constituindo a manifestação da vontade geral (ou pelo menos da maioria) e que são elaboradas por representantes (que compõe o Legislativo) indicados pelo detentor do poder - o povo; CF, art. 2º.

Infelizmente, o Legislador não é um homem virtuoso ou extraordinário como propõe Rousseau[1]; quiçá constitui-se em verdadeiro representante do povo, o que pode ser constatado pela crise de representatividade e baixos índices de aprovação popular dos governantes. A atual complexidade e mutações dos fatos sociais, aliado a morosidade do Parlamento tornam os poderes representativos verdadeiros expectadores do caos vivido em certos grupos (geralmente minorias e/ou estigmatizados).

Além disso, deve-se atentar ao fato de que o Legislativo e o Executivo são formados essencialmente por representantes das maiorias, as quais definem as prioritárias políticas públicas ao impor sua vontade por meio da lei. Por isso, as constituições liberais estabeleceram amplo rol de direitos (dotadas de normatividade) e arranjos institucionais com o objetivo de conter os excessos da maioria (SARMENTO, p. 24)[2].

Nesse contexto, a supremacia constitucional surge como parte integrante do conceito de Estado de Direito, de forma que este somente é de Direito quando compatível com a reserva de justiça esculpida na norma superior.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, não se limitou a proteger o processo democrático ou definir as instituições que travam os debates e conflitos dentro da comunidade; pelo contrário, ousou ao instituir em seu corpo normativo um amplo rol de regras e princípios definidores de direitos e garantias fundamentais, sociais ou coletivas, transformando-se assim em verdadeira constituição substancial. (MENDES)

Esses direitos e garantias fundamentais não são meras esculturas ornamentais destinadas ao embelezamento da ordem constitucional. São normas jurídicas dotadas de aplicabilidade imediata (CF, art. 5º, §3º) e que devem ser cumpridas como qualquer outra.

Os direitos fundamentais não podem ficar a deriva da boa vontade legislativa. Quando verificada inércia em função de pontos cegos legislativos de perspectiva, cumpre ao Supremo, na condição de guardião da Constituição da República, retirar os demais poderes da inércia a fim de cumprir o mandamento constitucional, conforme afirmado pelo Min. Marco Aurélio no julgamento da medida cautelar na ADPF 347.

Com isso, busca-se renovar a força normativa do texto constitucional coibindo sua crise de efetividade. Se o Estado de Direito depende da compatibilidade com a Constituição, mais acertado é que a atuação proativa do poder judiciário em casos como o que ora é analisado, além de compatível, busca efetivá-lo nos mais diversos corpos sociais.

A relação do Estado de Direito com o ECI ficará mais nítida quando tratarmos do instrumento hábil a desenvolver a técnica dialógico-estruturate para cessar o estado de inconstitucionalidade.

3.2. Da declaração de nulidade à atuação dialógico-(re)estruturante.

Diante do afirmado anteriormente, a evolução teórica das técnicas de decisão em ações concentradas de constitucionalidade de certa forma iniciou com Kelsen e a ótica do legislador negativo, segundo a qual o Judiciário deve se limitar a excluir a lei inconstitucional do ordenamento jurídico. Com o fim da II Guerra Mundial e com a promulgação de constituições programáticas e substanciais, a declaração de nulidade (no caso do direito americano) ou anulabilidade (proveniente dos estudos do austríaco Kelsen) demonstraram-se insuficiente para superar os diversos estados de inconstitucionalidade.

Por isso, o Bundesverfassungsgericht desenvolveu a técnica de decisão de declaração de omissão parcial sem redução do texto da lei, conforme já mencionado aqui.

Ocorre que o ECI – ou a omissão inconstitucional qualificada - é imune a essas técnicas de decisão, mormente em razão da inércia deliberada e da falha estrutural das instituições públicas em geral. Além do mais, a grave violação dos direitos humanos não coaduna com a morosidade proposital do Legislativo, não podendo ficar a mercê dos caprichos deste. A complexidade da situação exige atuação positiva dos órgãos ligados à situação de inconstitucionalidade, de forma que cada um contribua de acordo com sua capacidade institucional. É nesse ponto que o Min. Marco Aurélio afirma que o Supremo Tribunal Federal não é órgão espectador das violações de direito, pelo contrário, trata-se de instituição legitimada e com capacidade institucional para tirar os demais poderes da inércia.

Para tanto, a doutrina tem estudado os diálogos institucionais entre os órgãos/Poderes públicos. No Judiciário brasileiro, em 2005, o Supremo praticamente sepultou a possibilidade de diálogo institucional ao apreciar ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto era lei que desafiara interpretação dada pelo STF quanto à extensão no tempo do foro por prerrogativa de função após o término do mandato. Na ocasião, o Supremo adotou posição agressiva ao declarar a inconstitucionalidade da Lei 10.628/02 por vício formal, afirmando que “não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior”. (ADI 2797)

Desde então, (talvez em virtude da nomeação de novos Ministros) o Supremo Tribunal Federal vem modificando seu entendimento ao atuar com maior deferência em relação aos demais poderes, de forma a permitir diálogos entre instituições constituídas. Esse fato fica evidente no julgamento da ADI 5105/DF (Relator Min. Luiz Fux), em que o Supremo referendou o ativismo congressual como forma legítima de reação às decisões da Corte, desde que fundados em razões públicas e de sólida construção argumentativa.

MENEZES e SILVA trazem importante estudo sobre diálogo institucional ao introduzirem que:

A teoria de diálogos institucionais parte da premissa de que é possível a construção de um modelo dialogal, capaz de estimular uma remodelação da atual estrutura institucional, a fim de que se instale um modelo que proporcione uma postura mais cooperativa entre as instituições politicas e as Cortes, encorajando um amplo debate com a sociedade civil, para que se garanta efetivamente o atendimento aos ditames constitucionais e a concretização dos direitos fundamentais”.[3]

No acidentado terreno do sistema penitenciário brasileiro, ou dos ECI’s, o diálogo surge como importante instrumento de superação das falhas estruturais das instituições ao prestigiar a capacidade de todos os órgãos envolvidos com determinada situação de fato que gera grave violação dos direitos humanos. Com o diálogo, as instituições expõem suas posições sobre o tema, prestigiando uma síntese multi ou interinstitucional.

Além do mais, o diálogo proporciona um convívio pacífico entre os poderes de representação democrática, de execução de políticas públicas e do Judiciário, contribuindo para a legitimidade democrática das medidas tomadas para superar o ECI.

A partir do diálogo entre instituições, os órgãos envolvidos com o ECI podem apresentar propostas ou medidas para fazer cessar a violação sistêmica dos direitos humanos. A essas medidas, convencionou-se chamar de “remédios estruturais”, os quais podem ser conceituados como conjunto de medidas re-estruturantes do sistema (carcerário, no caso) violador de direitos humanos, de forma a superar os legislative blind spots. A utilização do método dialógico-estruturante passa a ser o único meio “para superar os desacordos políticos e institucionais, a falta de coordenação entre órgãos públicos, temores de custos políticos, legislative blind spots, sub-representação de grupos sociais minoritários ou marginalizados[4].

Diante da necessidade de se instaurar um diálogo institucional, o desafio é encontrar fundamentos no ordenamento jurídico para o desenvolvimento desta técnica de decisão de forma que não agrida a separação dos poderes, a democracia e o Estado de Direito conforme anteriormente delineado. Então, o ordenamento pátrio comporta o desenvolvimento de diálogos institucionais?


Notas e Referências:

[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Ed. Martin Claret, 2006.

[2] SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. Ed. Fórum, 2013.

[3] MENEZES, Flávia Ferreira Jacó de; SILVA, Alexandre Garrido da. PODER JUDICIÁRIO E DIÁLOGOS INSTITUCIONAIS: Uma Perspectiva Frente à Flexibilização das Decisões. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/horizontecientifico/article/viewFile/17921/14854. Acesso em: 16.2.2016.

[4] CAMPOS, Carlos de Azevedo. Atualidades do Controle Judicial da Omissão Legislativa Inconstitucional. Disponível em: http://www.academia.edu/12094028/Atualidades_do_Controle_Judicial_da_Omiss%C3%A3o_Legislativa_Inconstitucional. Acesso em: 22.2.2016.


Nicola Patel Filho

Nicola Patel Filho é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Barriga Verde (UNIBAVE), especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Aprovado nos concursos de Delegado de Polícia de Polícia Civil no Estado do Paraná (2013) e de Delegado de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina (2015). Membro do Grupo de Estudos e Aperfeiçoamento de Polícia Judiciária da Associação de Delegados de Polícia de Santa Catarina..


Imagem Ilustrativa do Post: The Lincoln Memorial // Foto de: David Jones // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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