Coluna Advocacia Pública em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta Araújo
Em 2012, a Harvard Civil Law-Civil Rights Review publicou texto[1] em que o professor Nimer Sultany oferece um resumo crítico e detalhado das teorias constitucionais liberais progressistas estadunidenses que, até aquele momento, haviam lidado com a seguinte questão:
Como abordar a tensão existente entre constitucionalismo e democracia?
No artigo, Sultany formulou e respondeu às seguintes três perguntas:
i) qual o estado da arte das teorias constitucionais liberais progressistas estadunidenses?
ii) qual a trajetória dos seus autores mais proeminentes no campo do debate constitucional liberal progressista estadunidense?
iii) quais as estratégias discursivas das posições identificadas no campo do debate constitucional liberal progressista estadunidense?
No mesmo artigo, Sultany chegou às seguintes conclusões:
iv) apesar da farta e sofisticada literatura produzida até então sobre constitucionalismo e democracia, não há um método satisfatório que demonstre se uma decisão proferida pela Suprema Corte, em caso controverso, é contramajoritária;
v) a premissa de que existe tensão entre constitucionalismo e democracia é, ela própria, um fator desviante da compreensão do papel do direito.
Neste paper, ofereço uma leitura da leitura de Sultany, procurando responder de forma resumida e descritiva aos tópicos acima enumerados.
As premissas de Nimer Sultany são as seguintes.
Em primeiro lugar, seu critério de eleição das teorias constitucionais, ou o problema comum das teorias constitucionais por ele elegidas, é a assim chamada dificuldade contramajoritária, que corresponde ao exercício da revisão judicial de normas proferidas pelo legislativo ou pelo executivo. É contramajoritária justamente porque corresponde à reação da Suprema Corte – portanto, de um grupo de nove juízes não eleitos e vitalícios –, por meio do controle de constitucionalidade, às normas produzidas pelos demais poderes da República.
Em segundo lugar, cumpre notar que a expressão liberalismo descreve um arco de atuações políticas mais progressistas (à esquerda do centro político) a atuações políticas mais conservadoras (à direita do centro político). Sultany escolheu abordar apenas as correntes liberais progressistas, por entender que o contraste com os conservadores necessariamente desviaria do foco o seu debate acerca da tensão entre constitucionalismo e democracia.
1. A análise dos casos é insuficiente para a determinação do sentido e da forma da dificuldade contramajoritária
Sultany inicia seu texto com a menção a dois casos. No caso Citizens United v. Federal Election Commission[3], liberais acusaram juízes conservadores de agir de forma contramajoritária quando a Suprema Corte, por maioria, impediu uma legislatura eleita de impor limites aos gastos em campanhas eleitorais. De outra parte, no caso Lawrence v. Texas[4], conservadores acusaram juízes liberais de agir de forma contramajoritária quando a Suprema Corte, por maioria, suspendeu os efeitos da lei do Estado do Texas que proibia práticas sexuais homoafetivas.
Portanto, continua Sultany, a questão central da dificuldade contramajoritária deriva, para muito além do caráter polêmico dos casos recobrados, dos efeitos que tais casos têm sobre discussões mais amplas de justificação de regimes políticos. Nesse sentido, note-se um deslocamento do conceito weberiano de legitimação dos regimes para um uso profundamente liberal, discursivo, argumentativo, de legitimação dos regimes e da noção de autoridade.
Esse deslocamento decorre de uma noção, também liberal, da finalidade da atividade política, conjurada sob a perspectiva da ação política liberal que busca na ética das virtudes o bem maior, que é a boa vida. E essa noção de boa vida, não mais um dado objetivo como então para Aristóteles e São Tomás de Aquino, é objeto de disputa simbólica para a qual concorrem sentidos plurais que prevalecem – ou deveriam prevalecer – de forma narrativa, ou seja, por meio da atividade discursiva, e não por meio da força ou da autoridade.
Além disso, sob perspectiva institucional, o texto trata de identificar por quais mecanismos a Corte Constitucional se utiliza do direito (dos direitos subjetivos individuais e metaindividuais, bem como do direito objetivo) para domesticar a vontade popular.
2. A formação de uma tipologia como esboço do campo de disputas internas
Sultany descreve o campo de posições (e respectivos autores) que corresponde ao estado da arte do debate constitucional nos Estados Unidos. Reproduzo, com tradução minha, o quadro de Sultany[5]:
Metagrupos |
Discurso da Unidade |
Discurso da Não Unidade |
||
Grupos |
Negação |
Reconciliação |
Reafirmação |
Dissolução |
Teóricos representantes |
Ronald Dworkin, John Rawls, Jürgen Habermas, Stephen Holmes, John Ferejohn, Lawrence Sager, Bruce Ackerman, Akhil Amar, Frederick Schauer |
John Hart Ely, Richard Pildes, Frank Michelman, Alexander Bickel, Cass Sustein, Larry Kramer, Mark Tushnet |
Frank Michelman, Louis Seidman, Laurence Tribe |
Jeremy Waldron, Richard Parker, Mark Tushnet |
Técnicas Discursivas |
Incorporação, esclarecimento, fuga, decentralização |
Processualismo democrático, processualismo republicano, minimalismo, constitucionalismo popular |
(Rejeita tentativas de aproximar-se da questão) |
Processualismo leigo, populismo |
Segundo o autor, essa tipologia: i) identifica formas específicas de argumentação e seu efeito dentro do campo teórico em que inseridas; ii) ao mesmo tempo, identifica ambos os conceitos de constitucionalismo e democracia segundo a (pretensa) tensão, amplamente debatido pelos autores nomeados; iii) promove distinção entre os argumentos e técnicas discursivas que tentaram resolver a (pretensa) tensão e os argumentos e técnicas discursivas que rejeitaram resolver a (pretensa) tensão entre constitucionalismo e democracia.
De frente ao quadro acima transcrito, entendo que a tipologia de Sultany foi elaborada segundo uma metodologia específica, que ele próprio não escondeu, qual seja: iv) o uso de autores e não escolas/correntes teóricas; v) a distribuição dos autores no campo de forma não cronológica, como se eles convivessem entre si (nesse caso, com acerto, porquanto as teorias e os documentos textuais que as suportam convivem entre si contemporaneamente; além disso, resta superada, em certa medida, a questão da autoria, uma vez que os textos sobrevivem aos autores e são permanente ou intermitentemente ressignificados pelos participantes do campo teórico constitucional); vi) a eleição de teóricos como representantes de padrões argumentativos; vii) o teórico que apresentou diferentes posições, ou padrões argumentativos, durante a sua trajetória foi colocado em grupos diferentes, ou seja, em mais de um grupo (é o caso único de Mark Tushnet).
2.1. O metagrupo do discurso da unidade
Dentro deste metagrupo estão inseridos os negadores e os reconciliadores e, para Sultany, ambas as posições unem os conceitos de constitucionalismo e democracia e, assim, overcome the alleged tension and justify judicial review[6].
Os negadores, por óbvio, negam a referida tensão por meio de quatro técnicas discursivas:
i) considerando que as restrições do sistema constitucional estão entre as regras definitórias do jogo democrático, razão pela qual tais restrições não desqualificam, mas antes reafirmam a condição democrática do constitucionalismo;
ii) considerando que os termos constitucionalismo e democracia são interdependentes, de modo que os seus sentidos são complementares e de tal forma que ambos os conceitos se sustentam, antes, como uma dicotomia produtiva;
iii) considerando, primeiro, que existe diferença entre política e soberania popular; e, segundo, que a soberania popular – ou seja, que a vontade comum, em termo rousseauniano – não é posta em risco pelo judicial review;
iv) decentralizando o papel da Suprema Corte, afirmando que as suas decisões, embora relevantes e mesmo paradigmáticas, não estão no centro da atividade política.
Os reconciliadores, por sua vez, continua Sultany, reconhecem que o uso próprio dos conceitos constitucionalismo e democracia resulta em inevitável tensão. Note-se, aqui, que Sultany utiliza a expressão “acknowledge that proper use”[7] e, na leitura literal, presume a existência de sentidos próprios – posição que, no entanto e mais adiante, não é a sua – preexistentes para esses dois termos. Nesse passo, os reconciliadores acreditariam em formas de reconciliar a tensão entre essas duas instâncias a partir de ajustes do judicial review, por meio de quatro diferentes, e em certos casos divergentes, técnicas discursivas:
v) o processualismo democrático, segundo o qual a Suprema Corte viabiliza e mesmo garante a participação popular no sistema de justiça;
vi) o processualismo republicano que, noutro movimento, sugere um papel mais ativo das cortes no processo deliberativo, sobretudo por meio de cidadãos virtuosos (no caso, os magistrados);
vii) o minimalismo, de que são representantes Alexander Bickel e Cass Sustein, segundo o qual o judicial review deve atuar da forma mais restrita possível e, inclusive, de forma deferente às demais instâncias democráticas deliberativas; poderíamos adicionar, aqui, os sistemas de controle de constitucionalidade que conferem ao judiciário a penúltima, e não a última, palavra;
viii) o constitucionalismo popular, de que são representantes Larry Kramer e Mark Tushnet, segundo o qual a democracia é um dado necessário ao constitucionalismo, e segundo o qual o povo deve ser encarregado de dar o último sentido do texto constitucional.
2.2. O metagrupo do discurso da não-unidade
Para os autores inseridos neste metagrupo, não há como unir constitucionalismo e democracia. Eles estão distribuídos, por sua vez, em dois grupos: da reafirmação e da dissolução.
Segundo o grupo da reafirmação, a separação entre constitucionalismo e democracia é um fato incontornável e isso, no final das contas, seria bom, no sentido de que livrar-se da tentativa de conciliar as duas instâncias leva-nos a encarar a judicial review como uma atividade da prudência, e não uma necessidade lógica do liberalismo.
Para Frank Michelman, por exemplo, as tentativas de negar ou conciliar a contradição entre tais instâncias estão fadadas ao fracasso; e, na linha de Kelsen, é preciso acreditar no constitucionalismo uma vez que, afinal, não existe outra maneira objetiva de guiar os julgamentos da Corte e conferir-lhes, de forma sistemática e orientada ao próprio ordenamento, legitimidade.
De outra parte, o grupo da dissolução é contrário às posições da negação e da reconciliação (ambas inseridas no metagrupo da unidade). Para os do grupo da dissolução, a negação e a reconciliação são antimajoritárias e removem do debate político questões constitucionais centrais, tais como direitos fundamentais e o devido processo legal; constrangem mecanismos de atuação política democrática; e, afinal, tais posições apoiam a judicial review, rejeitada pelas posições inseridas no grupo da dissolução.
O grupo da dissolução rejeita, também, as técnicas inseridas no discurso da unidade que distinguem entre reinos distintos da política ou reinos da expressão popular. Dessa rejeição podem ser identificadas duas correntes: o processualismo leigo, para o qual a justificação da prevalência da maioria é baseada em direitos subjetivos; e o populismo, para o qual a justificação da prevalência da maioria é baseada na participação popular.
Ademais, autores inseridos na posição populista da dissolução, como Mark Tushnet, fazem distinção entre uma Constituição espessa (thick Constitution) e uma Constituição fina (thin Constitution), privilegiando esta última, transferindo para a sociedade civil as responsabilidades pela defesa de regras e princípios constitucionais.
3. Da contestabilidade ao paradoxo
Conforme vimos atrás, para os argumentos liberais progressistas abordados por Sultany, saber o que é a boa vida constitui tema incontornável do debate sobre constitucionalismo e democracia. Recorde-se, também, tratar-se de tradição liberal que buscou na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, ferramentas analíticas da sua ética das virtudes e, das formas mais diversas, as pôs a serviço das suas teorias acerca do papel da Suprema Corte e da participação popular na reafirmação – ou construção – da democracia e do constitucionalismo estadunidenses.
Além disso, é importante ver que o liberalismo político clássico de Locke e Hobbes foi deixado pra trás, quanto mais quando a definição do que é a boa vida foi deslocada do dogma liberal clássico – muitas vezes preso ao jusnaturalismo – para assumir um lugar de disputa semântica.
Essa contestabilidade espraia-se igualmente para os conceitos de democracia e constitucionalismo.
No caso da democracia, afirma Sultany, as divergências conceituais podem ser distribuídas em dois campos: na concepção agregadora, que encara a democracia como um processo competitivo semelhante ao mercado, no qual as preferências dos diversos atores são reunidas; e a concepção deliberativa ou republicana, que encara a democracia como um processo dialógico dirigido o produzir consensos de forma racional.
No caso do constitucionalismo, segue Sultany, as origens do conceito são diferentes – Inglaterra, França e Estados Unidos – e são apropriadas de formas igualmente distintas. Para alguns teóricos, constitucionalismo tem que ver com a legitimação do direito a partir do processo e do devido processo legal. Para outros autores, porém, continua Sultany, constituionalism is an illusory and self-deceptive project. It is an attempt to escape from the reality of politics by mere verbal utterances[8].
Se ambos os conceitos que constituem marcos do campo descrito por Sultany são contestáveis, a correlação de ambos – neste ponto, é necessário salientar, com Sultany, que essa correlação não é evidente e nem intrínseca a eles; ou seja, não é um dado natural – é ainda mais problemática e, muito além da contestabilidade, favorece a percepção de um paradoxo entre constitucionalismo e democracia.
Sultany promove, então, a distinção entre possíveis abordagens do paradoxo. Para os racionalistas, paradoxos são erros lógicos; tome-se, como exemplo, a infração ao princípio da não contradição. Para os empíricos, paradoxos derivam da falta de informação. De outro modo, aqueles que assumem uma abordagem kantiana e dialética (Sultany não especifica bem de qual dialética trata, se platônica, aristotélica, kantiana ou hegeliana), a existência dos paradoxos é coisa normal. Se tomamos o pensamento de Hegel, que avança em relação à epistemologia kantiana, a dialética começa precisamente com a quebra do princípio da não-contradição.
A par dessas informações, Sultany chega a uma conclusão relevante para o seu artigo, qual seja, de que [t]o begin with, there are not necessarily generic approaches to all paradoxes because the same scholar could be a rationalist with respect to one paradox and an empiricist with respect to another. More importantly, the chosen pattern of reasoning does not necessarily predict the conclusion with respect to the specific paradox at hand[9].
4.Considerações finais
Esta leitura recorta de, forma limitada e descritiva, e aliás em nada exauriente, a leitura que Nimer Sultany faz do estado da arte do debate sobre uma pretensa, hipotética, tensão entre constitucionalismo e democracia, que tem como centro a chamada dificuldade contramajoritária, ou seja, a atuação da Suprema Corte no controle de constitucionalidade de normas oriundas dos demais poderes da República.
No artigo publicado na Harvard Civil Law-Civil Rights Review, Sultany esclarece não ter a pretensão de resolver o problema e, muito ao contrário, questiona os termos do debate que erigiu como premissa a existência de uma distinção entre constitucionalismo e democracia. O seu trabalho, nesse sentido, opera conscientemente nas oficinas do discurso, uma vez que, de saída, dá ao leitor o alerta de que a sua proposta é organizar, no plano da narrativa, as posições mais proeminentes sobre a dificuldade contramajoritária.
A sua análise, entretanto, vai mais além e demonstra que a negação, aceitação, o enfrentamento ou a fuga diante da (pretensa) tensão entre constitucionalismo e democracia podem ser desviantes de um problema central, qual seja, os mecanismos de justificação e legitimação da autoridade que controla os efeitos das normas dentro do sistema de justiça, esteja ela situada ou não dentro do poder judiciário, denominado por Alexander Hamilton “the least dangerous branch”. Para esse problema, da mesma forma, o autor não oferece solução.
Notas e Referências
[1] Nimer Sultany, The State of Progressive Constitutional Theory: The Paradox of Constitutional Democracy and the Project of Political Justification. Harv. C.L.-C.R. Rev. (2012). Disponível em http://harvardcrcl.org/wp-content/uploads/2009/06/Sultany.pdf Acesso mais recente em 19.08.2018.
[2] No caso Citizens United v. Federal Election Comission, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 21.01.2010, com maioria apertada dos votos (5 a 4), pela inconstitucionalidade de lei que impedia corporações e sindicatos de utilizar de suas receitas com o fito de financiar campanhas políticas. A Suprema Corte fundamentou a sua decisão com base na primeira emenda constitucional, que versa sobre a liberdade de expressão. Assim, a Corte declarou sem efeitos a Seção 203 do Bipartisan Campaign Reform Act, de 2002, bem como a Seção 441(b) do Federal Election Campaign Act, de 1971. A Suprema Corte, naquela ocasião, também anulou no total ou em parte outras duas decisões suas: Austin v. Michgan Chamber of Commerce (1990) e McConnell v. Federal Election Comission (2003).
[3] No caso Lawrence v. Texas, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 26.06.2003, por 6 votos a 3, pela inconstitucionalidade de lei do Texas que criminalizava “sexual intercourse”, ou seja, relação sexual entre adultos do mesmo sexo. Por consequência, outras tantas leis de mesmo teor, até então vigentes em outros estados estadunidenses, foram declaradas inconstitucionais. Nesta decisão, a Suprema Corte revogou os efeitos de outra sentença sua proferida no caso Bowers v. Hardwick (1986), que havia reafirmado a constitucionalidade de lei do estado da Geórgia que vedava a prática de relação sexual entre pessoas do mesmo sexo.
[4] Ibid. p. 388.
[5] Em tradução minha, “superam a alegada tensão e justificam a revisão judicial”.
[6] Em tradução minha, “reconhecem o uso próprio”.
[7] Em tradução minha, “constitucionalismo é um projeto ilusório e autoenganador. É uma tentativa de escapar da realidade da política por meio de meros enunciados verbais”.
[8] Em tradução minha, “para começar, não existem, necessariamente, abordagens gerais para todo tipo de paradoxo porque um mesmo teórico poderia ser um racionalista, no que diz respeito a um paradoxo, e um empiricista, no que diz respeito a outro. Ainda mais, o padrão argumentativo escolhido não prediz, necessariamente, as conclusões atinentes a um específico paradoxo em questão”.
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