Nesta quadra do ano pululam frases piegas, artigos saudosistas, falas moralistas afirmando que perdemos o verdadeiro espírito do Natal. Hoje, surpreso, li uma novidade: a de que ainda não o encontramos. Alguém revelou que o verdadeiro espírito do Natal jamais foi encontrado. Declarar que perdemos um modo de ser natalino, eu compreendo, pois bem se pode verificar como se viviam essas festividades e como já se as vive diferentemente. Agora, dizer que o tal espírito não foi jamais encontrado é meio estranho, pois, se nunca se o encontrou, não se pode saber como ele é, e talvez não se o reconheça, caso se o encontre. Ademais, em não se o sabendo, nem dá para negar que esteja por aí, ou que já esteve.
Em coisas de espírito com significação religiosa não existe muita lógica, assim, os crentes que se declaram intérpretes de tais percepções comumente estão apanhados por um ânimo de portador de revelação, quer dizer: o sujeito está seguro do que fala, mesmo que não se o entenda, aliás, mesmo que não se entenda a si próprio. Nesse momento, ademais de sedizentes intérpretes de uma ordem excelsa, muitas pessoas são imbuídas por um clima diligente de bondade e compreensão. Ficam tocadas, buscam ser legais, querem negar a dureza do mundo. Por meio mês a maioria se põe em um beatificado estado de contentamento e garante amar o próximo. Aí, acaba em confusão de tudo e remanesce recusando a realidade. Explico:
Os alemães utilizam um termo, Zeitgeist, “cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist exprime, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as genéricas de um determinado período de tempo” (Wikipédia). Ora, o espírito comum à nossa época é este mesmo que vivemos no período de Natal, é o espírito do mercado (Marktgeist). O Natal apenas o exacerba, mas cada um de nós é um ente desse espírito por todo o ano, por toda a nossa vida. Esse momento de compras, de festas, de extravagâncias, de contração de dívidas, de exaltação da mercadoria, enfim, é apenas a hora catártica do nosso useiro modo de vida.
Nessa estação de catarse abundam pruridos morais, declarações descoladas dos fatos, afirmações compungidas de como nos deveríamos comportar ou mesmo ser. São afirmações expiatórias. Catarse é um vocábulo cujo significado foi transformado, mas retomo seu sentido original. Conforme o Houaiss: “na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe”. Quer dizer, muitas pessoas misturam ânsia de consumo e interdito moral e se conflitam: gosto pelo consumo, culpa pelo consumismo. Querem, logo, purgar-se, expulsar esse sentimento de autocorrupção, então se põem a imprecar contra o sistema que elas mesmas alimentam. Deve ser angustiante.
O Natal é uma salada de culturas e interesses. Vem do paganismo, tem a ver com o sol e conjunções astrológicas. O 25 de dezembro em nada se relaciona com o aniversário de Jesus Cristo, foi fixado por decreto de Constantino, imperador romano, instaurador do catolicismo, no século IV. O presépio é representação europeia surgida no século XIII; inclui gado bovino, improvável em Jerusalém. O pinheiro veio da Alemanha, via Inglaterra: o príncipe Alberto, casado com a rainha Vitória, sentiu saudades da sua terra e mandou buscar algo típico, um pinheiro. Virou moda cristã, dado o poder imperial inglês. As bolas vieram de antigos rituais pagãos. As lâmpadas surgiram com Thomas Edison exibindo a sua invenção. Renas existem no Canadá ártico. Duendes são coisa ibérica. O Papai Noel é uma figura do século XIX, um arcebispo turco com roupas da Lapônia, criação e cores da Coca-Cola.
Suponho que isso tudo sejam coisas sabidas. Em sendo, não compreendo as comemorações, os transportes emotivos diante de um Natal que se declara que já não é como um dia teria sido. Não identifico o que se comemora. Nem sei se as pessoas sabem o que estão comemorando. Seria a solidariedade entre os humanos? Mas isso lá é coisa que se restrinja a poucos dias? E se transforme em rituais religiosos misturados com apelos comerciais e ostentação em compras? Vejo esse negócio não exatamente como hipocrisia, mas como kitsch, ou seja, melodramático, de gosto vulgar, estereotipado, querendo expressar valores, mas o fazendo de modo falseado. Proponho que o mundo pense melhor a questão: edificar o espírito de Natal que hoje eu soube que nunca foi encontrado.
A ideia renascentista de fraternidade tornou-se um dístico da Revolução Francesa, uma proposta iluminista para a humanidade. É um valor importante, mas insubsistente, se reduzido a uma festança de fim de ano. Fraternidade não tem dia; só vale se for modo de vida. Então, que o teu Natal não acabe jamais, ou que não tenhas Natal algum. Ou, redundando o deboche do genial Sheldon Cooper: “Eu desejo que você aproveite o período festivo originado nos primórdios da Civilização em homenagem ao deus Sol, mesclado com diversos costumes de várias religiões no decorrer dos séculos, posteriormente incorporado e monopolizado pelo cristianismo e contemporaneamente utilizado como alavanca comercial no ocidente capitalista” (Em nome do Troll, Facebook).
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