O engodo: disciplina militar e excelência acadêmica

10/05/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A maior parte dos leitores do Empório do Direito conhece a sensação: após quase duas décadas no ensino básico (ensino infantil, fundamental e médio) e a extenuante carga assimilatória dos cursos preparatórios emerge a tensão derivada do incerto resultado obtido nos exames de seleção para o ensino superior. Mas, será mesmo incerto o resultado?

No dia 16 de fevereiro de 2019 a jornalista Tânia Monteiro cravou: “USP cancela matrícula de alunos de colégios militares; Exército fala em ataque político”. Em menos de 24 horas a resistência ofertada pela Universidade de São Paulo aos alunos formados por colégios militares mobilizou a alta cúpula das forças armadas, o Ministro da Educação e o Governador de São Paulo, esse último chefe da esfera pública de poder a quem se vincula a USP.

O resultado não podia ser diferente. No dia 17 de fevereiro de 2019 a USP reforma a decisão que havia tomado, garantindo que os estudantes graduados pelas escolas das forças armadas pudessem acessar a Universidade de São Paulo a partir do sistema de reserva de vagas, afinal os colégios militares são públicos, atendendo, pois, as taxonomias arbitrárias fixadas pela lei de acesso diferido.

O objetivo da coluna em construção não é refletir sobre a constitucionalidade da regra que promove a reserva de vagas ou sobre a autonomia universitária e a legitimidade do ato administrativo. Não. O intuito é colocar em evidência alguns não ditos, começando pelo precário laço tecido entre educação e autoridade.

A violência como argumento empregado para militarização das escolas

Não é de hoje que o Brasil é um país extremamente violento. Basta ter em mente a empresa colonial (MBEMBE, 2018), a escravização de corpos e a concentração econômica e simbólica advinda do período. O presente são desdobramentos e inovações deletérias que possuem passado. Todavia, qualquer reflexão sobre a violência não abre mão da reconstrução do “jogo de oposições categoriais” que arbitrariamente nomeia o violento em contraposição ao pacífico (MALOLAMO, 2014). O pacífico, em bom luso-português, atrai para si sentidos idênticos à brancura, à masculinidade, à propriedade e a todos os comportamentos articulados pelas referidas categorias, ou seja, às ações próprias daqueles que as detêm ou delas subalternamente se beneficiam.

O violento, por outro lado, se constitui no avesso definido pelo jogo categorial. Violenta, portanto, é a negra noite em relação ao dia; a sem terra em relação ao latifundiário; a que reclama em relação ao que tem. As ações, os gostos, as falas, o cheiro, o humor e as palavras daquelas e daqueles colocados ao sul das oposições categorias nomina-se violência.

No âmbito do sistema escolar, pois, quaisquer traços que não encontrem o modo de ser, agir e pensar do tipo não violento, isto é, euro-ocidental, são vistos quando muito com condescendência. Na maior parte das vezes, porém, o sentido que é imposto a tais características se encerra no rechaço e no etiquetamento. A presença dos traços não universais – traços estranhos ao tipo euro-ocidental – no interior da escola dispara a atenção de Cronos, abrindo contagem para execução sumária. Como em uma emboscada, professores, funcionários e a própria escola aguardam a manifestação das disposições que desconhecem, nomeando, a partir de nova oposição categorial, os bons e os maus alunos.

O que as oposições categoriais que definem o significado da violência e o abismo construído entre o bom e mau aluno escondem são as condições históricas de definição dos sentidos que a informam. A violência intolerável, fruto da simbiose entre o poder de nomeação do Direito e a alocação do monopólio de utilização da força no Estado, não revela as violências epistêmicas e físicas – a cisão entre os dois termos já é fruto da asfixia euro-ocidental – postas em exercício para sua construção.

Em outros termos: a noção de violência intolerável soa intuitiva ao ponto de se apresentar como única ilegítima, impedindo, ao descontextualizar, que a violência dirigida sobre os corpos e sistemas simbólicos estranhos à modernidade seja vista como tal. Sem desconsiderar a imposição histórica da subalternidade como forma original de violência, isto é, racismo epistêmico e violência simbólica, a proteção contra a violência intolerável positivada nas normas jurídicas nem sequer chegaria a existir.

Dentro do contexto, a suspensão da história que define as oposições categoriais e as noções de violência passa a nutrir as maciças reivindicações por uma escola autoritária e disciplinar. Supostamente, o modelo autoritário de escola seria capaz de neutralizar – como em um fratricídio, uma vez que cometido contra subcidadãos brasileiros – os estudantes que não possuem as predisposições culturais exigidas no sistema de ensino, restaurando a ordem e a figura de autoridade que em tese deveria estar às mãos de agentes e instituições escolares. Veja: a escuta e a valorização das falas realizadas dentro da escola deixam de ter como referência o capital científico, vinculando-se aos perfis de autoridade.

Sem perceber que os atos de violência imputados aos “maus alunos” são constituídos pelo diletantismo e desempenho dos alunos benquistos a escola gira em torno de si, entregando a falsa impressão de que as disputas havidas com os alunos “problemáticos” podem ser resolvidas a partir da repressão. Em decorrência da desigual estrutura linguística que a compõe a escola torna-se ainda menos democrática, desconsiderando o papel que cumpre na reprodução do apartheid epistêmico e consequente apartheid étnico-racial.

Nascidos para o sucesso: militarização e excelência acadêmica

Se as escolas públicas devêm ser militarizadas para dar conta da indisciplina dos alunos “problemáticos” que a frequentam, o desempenho acadêmico dos egressos dos colégios militares surge como suposta comprovação empírica do argumento. Além da disciplina, os alunos que frequentam as escolas das forças armadas apresentam desempenho expressivo nos exames que dão acesso ao ensino superior (BENEVIDES; SOARES, 2016). A expectativa de sucesso e ascensão social, portanto, consubstancia a legitimidade social que a militarização do ensino extrai, em um primeiro momento, da violência definida a partir do sistema simbólico euro-ocidental, dos seus intérpretes legítimos e do Estado.

No texto “Educação a distância pra quem” apontei, a partir de Pierre Bourdieu, que o desempenho escolar dos alunos em geral está vinculado à concentração de capital econômico-familiar e, principalmente, ao índice de capital cultural (escolarização e incorporação da cultura válida) dos familiares mais próximos (avós, pai, mãe e tios). No contexto, os exames exigidos para ingresso nas escolas militares indicam que os futuros cadetes – os selecionados – possuem concentração significativa de herança simbólica familiar (capital cultural), de forma que as escolas militares contam com alunos que não representam as bases da população nacional, mas, sim a classe média e sua preponderante brancura. Afirmar, portanto, que a adoção do regime pedagógico e administrativo militar resulta em melhor desempenho educacional exige – como se fosse necessário – a apresentação de pesquisas científicas que apontem resultados em tal direção, uma vez que estudos desenvolvidos no campo da educação e da sociologia indicam o contrário (FREITAS, 2018; BENEVIDES; SOARES, 2016).

A noção de capital cultural corrobora os dados extraídos do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) de 2015. Embora o ENADE não faça distinção entre a organização acadêmica das escolas públicas, ou seja, não referencie quais alunos são egressos de escolas militarizadas e quais alunos foram graduados por escolas geridas por secretarias da educação, o contraste entre as respostas ofertadas pelos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, universidade pública federal, e pelos alunos da Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, centro universitário de organização administrativa mercantil, confirmam as condicionantes da categoria analítica bourdieusiana.

O questionário respondido pelos estudantes indica que 24% dos alunos/consumidores da FADERGS, centro universitário de organização administrativa mercantil, provêm de famílias que possuem renda de 1,5 a 4,5 salários mínimos, ou seja, de R$ 1.086,01 a 3.258,00 reais à época da coleta dos dados. A realidade da UFRGS é bem diferente. Na UFRGS, instituição pública de ensino superior organizada na forma universitária, ou seja, obrigada a aliar ensino, pesquisa e extensão, o maior índice de alunos (48,7%) advêm de famílias que recebem de 10 a 30 salários mínimos, isto é, de R$ 7.240,01 a R$ 21.720,00. A primeira condicionante de Bourdieu, ou seja, acúmulo econômico implica melhor desempenho escolar, foi verificada.

Ao fixar olhar sobre o índice de escolarização dos pais o resultado permanece hígido. Na FADERGS, 17,4% dos pais e 15,7% das mães concluíram o ensino superior. Na UFRGS, por outro lado, 39,9% dos pais e 33,5% das mães obtiveram alguma titulação superior. A última pedra necessária para construção do castelo está na categoria raça (categoria estrutural de dominação). Empregando como critério a autonomeação, 79,3% dos alunos da FADERGS se declararam brancos, enquanto 9,1% se declararam pretos e 9,9% se declararam pardos. A UFRGS, por sua vez, alcançou o seguinte resultado: 90,5% brancos; 5,1% pretos e 4,4% pardos.

Retoma-se a questão levantada no primeiro parágrafo da coluna: será mesmo incerto o resultado do estudante universal (branco/herdeiro) nos exames que levam ao ensino superior? Embora o acesso aos resultados obtidos no ENADE de 2015 pelos alunos do Direito da Universidade de São Paulo não estivesse disponível até o fechamento do texto, a contraposição dos resultados alcançados por alunos de um centro universitário privado de organização administrativa mercantil e dos alunos da UFRGS mostram bastante.

O acesso às Universidades Federais é construído pela legitimidade de interpretação da cultura válida e pelo maior índice de concentração do capital econômico. Corpos racializados, nascidos e socializados em um ambiente neocolonial, como o Brasil, não possuem legitimidade epistêmica e titulam quantidades inexpressivas de capital econômico, alcançando, portanto, escassa estadia até mesmo em instituições de ensino superior pouco prestigiadas. O jogo de acesso ao ensino superior repete a lógica dos testes de ingresso nas escolas militarizadas, selecionando os “bons” e repelindo os “maus”.

É verdade que o desempenho de alunos cotistas é tão bom quanto ou superior ao desempenho dos alunos “regulares”, isto é, fregueses da instituição (GUIMARÃES, 2013). No entanto, é preciso lembrar que as políticas afirmativas de acesso contam com provas que selecionam alunos que titulam índices significativos de capital cultural, predispondo-os ao êxito. A simples militarização administrativa e pedagógica das escolas públicas, portanto, não tende, por si só, a entregar melhor desempenho à educação nacional. Muito antes pelo contrário. As casernas, especializadas na morte e na repressão, tendem a enxergar os alunos “problemáticos” como enxergam inimigos em combate. O que na escola conservadora (BOURDIEU, 1966) conduzia à exclusão por dentro, ou seja, a retirada voluntária pela individualização do fracasso coletivo, conduzirá a agressões abertas entre a escola e seus jovens inimigos.        

                                                   

Notas e Referências

BENEVIDES, A. A.; Soares, R. B. Diferencial de desempenho das escolas militares: bons alunos ou boa escola?. In: XXI ENCONTRO REGIONAL DE ECONOMIA, 2016, Fortaleza. ANAIS DO XXI ENCONTRO REGIONAL DE ECONOMIA, 2016.

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura, 1966. In: Maria Alice Nogueira; Afrânio Catani (Org.). Escritos de educação. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. 1979. In: Maria Alice Nogueira; Afrânio Catani (Org.). Escritos de educação. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

ENADE 2015. Exame nacional de desempenho dos estudantes. Relatório de desempenho de curso: Direito. Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Disponível em: http://enadeies.inep.gov.br/enadeIes/enadeResultado/ acesso em 09 de maio de 2019.

ENADE 2015. Exame nacional de desempenho dos estudantes. Relatório de desempenho de curso: Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Disponível em: http://enadeies.inep.gov.br/enadeIes/enadeResultado/ acesso em 09 de maio de 2019.

GUIMARÃES, R. S.. Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio de Janeiro. 1. ed. São Paulo: Selo Negro, 2013. v. 1. 208p .

MALOMALO, Bas’Ilele. Branquitude como dominação do corpo negro: diálogo com a sociologia de Bourdieu. In: Revista da ABPN. v. 6, n. 13. mar. – jun. 2014. p. 175-200.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MONTEIRO, Tânia. USP cancela matrícula de alunos de colégios militares; Exército fala em ataque político. In: Estadão: São Paulo, 2019.  

PAULINO, Rosana. A permanência das estruturas. Impressão digital sobre tecido, recorte e costura. 96,0 x 110,0 cm. 2017.

 

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