O duplo grau de jurisdição é princípio de natureza processual decorrente da ideia de devido processo legal e garante o acesso do jurisdicionado a uma instância revisora de decisões judiciais.
Há na doutrina brasileira uma discussão estabelecida a respeito de ser ou não o duplo grau de jurisdição um princípio de natureza constitucional e isto se deve ao fato de não haver previsão constitucional expressa, o que, segundo alguns, não é suficiente para fazer descrer que o princípio goze dessa natureza, até mesmo porque a própria Lei Maior estabelece as competências recursais dos tribunais superiores.
Luiz Guilherme Marinoni teceu severas críticas ao duplo grau de jurisdição, atribuindo a ele a culpa pelo desprestígio da sentença[1].
Mais recentemente, no entanto, na obra “Precedentes Obrigatórios”, ao que parece, Marinoni evoluiu no entendimento, de modo a considerar a necessidade de que haja previsibilidade para os litigantes sobre o julgamento que será feito pelo Poder Judiciário. Assim, conforme ele, um sistema corretamente estruturado de respeito aos precedentes levará a que a parte sucumbente conforme-se com a decisão proferida em primeira instância e isso acontecerá se ela perceber que há conformidade entre esta e a posição dos tribunais.[2]
Isso nada mais significa que um sistema recursal, decorrente de uma norma principiológica de duplo grau de jurisdição, é pressuposto necessário, seja para firmar o precedente obrigatório, como quer Marinoni, seja para corrigir equívocos decorrentes do não atendimento às orientações jurisdicionais superiores nas sentenças de primeira instância, ao que seria, então, conferida legitimidade e prestígio não pela impossibilidade de interposição de recurso, mas, sim, pela previsibilidade da decisão das instâncias superiores, confirmando-a, se for o caso.
Nelson Nery Jr., na sua clássica obra a respeito dos Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, assevera que a Constituição de 1824 previa expressamente a garantia absoluta do duplo grau de jurisdição e que as constituições que se seguiram a ela, incluindo a de 1988, limitaram-se a prever a existência de tribunais e fixar-lhes suas respectivas competências recursais, sem que isso significasse, entretanto, garantia absoluta ao duplo grau de jurisdição[3].
Ao reconhecer que há apenas previsão implícita do duplo grau de jurisdição na ordem constitucional, mas não qualificá-lo como uma garantia absoluta, Nery indica a possibilidade de o legislador infraconstitucional limitar o direito ao recurso no âmbito do Processo Civil, pois entende que a garantia é absoluta no âmbito do Processo Penal, dada a previsão do art. 8º, n. 2, letra h do Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário e que vige no país na qualidade de norma constitucional, já que disciplina sobre direitos fundamentais[4].
A importância do duplo grau de jurisdição é destacada por Calmon de Passos, que considera que o direito de impugnar qualquer decisão judicial é de natureza fundamental, “decorrência necessária e essencial do sistema democrático, que impõe o império da lei e repugna toda e qualquer forma de arbítrio”[5].
Na mesma linha é o magistério de Humberto Theodoro Jr., para quem a garantia do duplo grau de jurisdição é fundamental para assegurar a plenitude do contraditório. Vale dizer, se a decisão judicial é necessariamente o fruto do efetivo diálogo processual e “não pode ser construída como ato de autoridade restrito à vontade singular e isolada do juiz (...), a observância do duplo grau de jurisdição é o remédio adequado e irrecusável”[6].
E prossegue o professor mineiro:
Sem ele, na verdade o contraditório não seria efetivo, pela possibilidade de a voz do litigante perder-se a meio caminho da marcha do processo, nunca sendo ouvida, nem considerada. O recurso se apresenta como o meio de sanar o julgamento abusivo, forçando a necessária consideração do Judiciário sobre a contribuição da parte. Pouco importa que o julgamento seja afinal favorável ou contrário à pretensão da parte. O que não pode faltar, no processo democrático, é a adequada resposta do julgador à sua defesa.[7]
Na mesma linha das lições de Calmon de Passos e Humberto Theodoro Jr., entendendo ser o duplo grau uma garantia fundamental, é importante frisar que ele tem íntima ligação com o direito fundamental de acesso à justiça, já que se trata de possibilidade que se dá ao jurisdicionado de escalar degraus na organização judiciária, a fim de buscar a reforma ou a anulação da decisão que não lhe tenha agradado.
O acesso à justiça, como se viu no tópico específico, não há de significar apenas o acesso a um grau de jurisdição, mas também a possibilidade de verificar o acerto da decisão a partir da análise de um órgão diverso daquele que a proferiu em primeiro lugar.
Embora não se possa dizer que o duplo grau de jurisdição sempre garantirá o acerto das decisões, é fato que a possibilidade de recursos confere maior racionalidade ao sistema processual e pode, se bem manejada (o que nem sempre ocorre, infelizmente), qualificar a prestação jurisdicional.
No Brasil, entretanto, a existência do que se convencionou chamar de “litigância excessiva” gerou um sentimento relativamente comum na sociedade de repúdio aos recursos. É bastante comum que se encontrem personalidades populares nos veículos de comunicação expondo opiniões no sentido de que o grande problema do sistema processual brasileiro é a existência de um sem-número de recursos, o que torna o processo moroso e inefetivo.
Esse senso comum da sociedade acaba tendo efeitos na comunidade jurídica, principalmente em alguns setores do Judiciário que se veem diante de uma quantidade considerável de demandas sem que haja uma estrutura que possa suportá-la. Nesse seio, então, frutifica a chamada “jurisprudência defensiva”, a partir da qual se despreza o direito ao recurso do jurisdicionado, com base em justificativas inadequadas, que não sobrevivem a uma análise constitucional séria.
Embora sejam inúmeros os exemplos que podem ser coletados ao longo da história, um bastante recente, já na vigência do CPC/2015, foi dado pelo Superior Tribunal de Justiça ao decidir sobre a possibilidade de comprovação posterior da existência de feriado local no dia da interposição do Recurso Especial.
A decisão deu-se no AREsp nº 957821/MS. Resumidamente, o agravo em Recurso Especial foi interposto pela parte no primeiro dia útil seguinte ao fim do feriado de Corpus Christi, que é de natureza local, embora seja gozado em todo o país e, em tese, o dia do vencimento do prazo era no feriado e este fato não foi comprovado pela parte recorrente no momento da interposição.
Diante disso, negou-se seguimento ao recurso interposto, por decisão monocrática. Contra ela foi manejado o recurso de agravo interno e, nele, a Corte Especial do STJ travou a discussão sobre a possibilidade de comprovação posterior da tempestividade. O julgamento iniciou-se com o voto do Min. Raul Araújo, que entendeu sobre a possibilidade de comprovação posterior da tempestividade, nos seguintes termos: “a não comprovação de feriado local no ato da interposição de recurso é vício formal, sanável, que pode ser corrigido por determinação do relator do recurso, sendo que, caso o relator não conceda tal oportunidade, poderá o recorrente fazer a juntada do documento em questão quando da interposição de agravo interno”.
Entretanto, a partir do voto-vista da Min. Nancy Andrighi, o julgamento tomou rumo diverso e entendeu a Corte Especial do STJ que, “seja em função de previsão expressa do atual Código de Processo Civil, seja em atenção à nova orientação do STF, a jurisprudência construída pelo STJ à luz do CPC/73 não subsiste ao CPC/15: ou se comprova o feriado local no ato da interposição do respectivo recurso, ou se considera intempestivo o recurso, operando-se, em consequência, a coisa julgada.”
Na linha do voto que abriu a divergência, percebe-se claramente a visão defensiva da jurisprudência para o bloqueio de recursos a partir do momento em que se colocam em posição de equivalência a intempestividade e a não-comprovação da tempestividade.
Afirma-se no voto que a não-comprovação da tempestividade no momento da interposição do recurso leva à conclusão sobre a sua intempestividade, que se traduz em vício grave e insanável, logo, não podendo ser permitida a comprovação posterior.
Trata-se, evidentemente, de um erro. O recurso foi interposto tempestivamente, o que não ocorreu foi apenas a comprovação disso no momento da sua interposição. Mas ocorreu posteriormente, em novo recurso.
Ou seja, não houve o vício da intempestividade. Este, sim, insanável. O vício foi outro: a não comprovação da tempestividade. E equipará-los é um equívoco imperdoável, que indica o baixo apreço ao direito de recurso.
O CPC/2015 estrutura-se na ideia de que a finalidade do processo é a prolação de uma decisão de mérito, devendo ser superados os vícios processuais que admitam correção. É verdade que não se pode levar ao exagero essa perseguição à decisão de mérito e é evidente que o juiz não pode superar toda e qualquer invalidade processual em nome da aplicação do direito material.
O processo deve ser encarado como uma garantia e as formalidades estabelecidas merecem ser respeitadas, já que oportunizam segurança jurídica e previsibilidade aos litigantes.
Entretanto, no caso que se analisa, o formalismo foi exacerbado. Equiparar a não-comprovação da tempestividade com a intempestividade, tendo havido, posteriormente, a comprovação de que o recurso era tempestivo, é equivocado, porque confunde conceitos e porque se dá à formalidade um peso que ela, no caso, não merece. O processo deixa de ser uma garantia do jurisdicionado e passa a ser um instrumento de contenção do exercício do seu direito.
É evidente que o acerto está no voto do Min. Raul Araújo, que ficou vencido no julgamento colegiado, no sentido de considerar que a não comprovação da existência de feriado local seria vício sanável. E ele o fez baseado justamente no senso que se colhe a partir da leitura do CPC/2015, que indica a necessidade de saneamento dos vícios formais sempre que possível, para possibilitar que o mérito seja analisado.
O jurisdicionado que recorre não raro é visto como um inconformado a ser combatido, em razão da quantidade de recursos que entulham os tribunais. De todo modo, não se pode olvidar que eles são decorrência da quantidade de demandas, que, por sua vez, decorrem de uma série de problemas sociais e econômicos que assolam o país.
Definitivamente, não é o fechar das portas nas instâncias superiores que levará a uma racionalização do número de demandas que chegam ao Poder Judiciário brasileiro.
É necessário que a garantia do duplo grau de jurisdição seja encarada com a seriedade que merece, a fim de que entendimentos de jurisprudência defensiva sejam revistos. Se há uma garantia constitucional de acesso a instâncias superiores por meio de recursos, ainda que o Judiciário esteja assoberbado, sofrendo diariamente com o excesso de demandas, não se pode transferir ao jurisdicionado o pesado ônus disso, com base em posicionamentos como o que se referiu acima, em total descompasso com a própria legislação.
Notas e Referências:
[1] “O leigo, quando se depara com um juiz na instrução, e depois espera ansiosamente a sentença, imagina que ela terá algum efeito na sua vida. Entretanto, com o duplo grau, a decisão do juiz não interfere em nada na vida das pessoas; ela é, talvez, um projeto da única e verdadeira decisão: a do tribunal”. (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5ª ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 215.).
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 165.
[3] NERY JR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2004, p. 211.
[4] NERY JR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2004, p. 214.
[5] PASSOS, J. J. Calmon de. Súmula vinculante. In: Ensaios e artigos, vol. II. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 95.
[6] THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. I. 57ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 60.
[7] THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. I. 57ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 60.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5ª ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
NERY JR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2004.
PASSOS, J. J. Calmon de. Súmula vinculante. In: Ensaios e artigos. Vol. II. Salvador: JusPodivm, 2016.
THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Vol. I. 57ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
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