Em minha experiência docente na disciplina de direito processual civil, era comum eu me valer de textos selecionados acerca de assuntos que seriam ministrados nas aulas previamente programadas. Esses textos, que tinham a finalidade de fomentar o debate[1] em sala de aula, muito raramente eram lidos pelos alunos com antecedência. As desculpas eram várias, desde o número de laudas a outros compromissos acadêmicos, doenças, enfim, todos os tipos de justificativas eram dados.
Utilizava-me, também, de uma bibliografia que nem sempre se mostrava alinhada com os manuais da moda, daqueles esquemáticos, resumos dos resumos, o que trazia certa desconfiança, máxime quando exigida leituras prévias de obras clássicas e profundas, que em nada se assemelhavam aos textos de predileção dos alunos: as famosas apostilas.
Trago essas informações para situar minha experiência docente frente à crise já anunciada no artigo anterior. Quando da apresentação da disciplina e da explicação dos métodos que iriam ser utilizados ao longo do semestre, sempre questionava à turma acerca da finalidade pela qual cada um dos alunos tinha ingressado no curso de direito. Semestre após semestre a resposta era sempre a mesma, 90% (noventa por cento) dos discentes almejavam se submeter a um concurso público.
Nessa toada, os 10% (dez por cento) restantes, de uma forma ou de outra, iriam se submeter ao exame da OAB. Ou seja, a totalidade dos alunos estava ali para se submeter a uma prova que está inserida na crise paradigmática da não superação do positivismo sintático, onde o que é exigido não passa de uma análise rasa do texto normativo, decorebas e pegadinhas, perguntas que só têm qualquer utilidade porque deduzidas pelas bancas que elaboram o certame.
Nesse contexto, os concursos públicos e o próprio exame da Ordem dos Advogados do Brasil, (retro)alimentam esta realidade, formando um círculo vicioso e não virtuoso. Os concursos repetem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos preparatórios, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas por aqueles que são responsáveis pela feitura das provas (terceirizados – indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da administração pública).[2]
É o que já vem sendo chamado de “duplipensar” do direito[3]. Não se estuda para conhecer algo; se estuda apenas para ser aprovado. Se o que é cobrado no concurso público ainda está inserido no modelo de positivismo exegético e apresenta-se sumarizado, motivos não há para qualquer aprofundamento ou reflexão mais acurada, bastando evitar as pegadinhas e treinar memorização, ainda que, vencido o prazo de validade, o amontoado de informações transforme-se em uma vaga lembrança.[4]
Ainda dentro da perspectiva do duplipensar do direito, tem-se o texto do professor Geovane Moraes, intitulado A arte de ser um aluno ruim, que descreve, dentro da experiência do autor, o perfil do estudante de sucesso para concursos ou OAB. Pela contundência do texto, permito-me transcrever um longo trecho[5]:
Costumo sempre falar nas minhas aulas que o aluno de direito que possui a maior facilidade de passar em provas da OAB é aquele que na época da graduação era fraco, ruim ou péssimo.
[...]
E antes que comecem a me atirar pedras, me permita dizer que se trata de uma constatação sociológica. Faça um exercício mental. Lembre-se dos piores alunos da sua turma. Aqueles que você tinha certeza quem sequer iriam terminar o curso. Agora se lembre dos melhores, os queridinhos dos professores. Qual dos dois passou mais rápido na OAB? Qual dos dois passou mais rápido em concursos? Qual dos dois está progredindo mais rápido na profissão?
[...]
O bom aluno sabe demais e por isso ele briga com a prova. OAB não é lugar para você defender o que acha mais certo ou errado, mais lógico ou ilógico, mas sim para responder exatamente o que a banca quer que seja respondido. Fugir disso é pedir para não passar. Caso a FGV queira que seja você indique como resposta da soma de 2+2 o resultado 05, é isso que você vai ter que responder.
[...]
Conheça com intimidade os Códigos, esteja atualizado com a jurisprudência, faça o máximo de questões que você puder, de preferência da banca que está organizando sua prova. E o mais importante: não queira que a prova concorde com você. Você é que deve concordar com a prova.
Nos últimos anos, após alguma relutância, ingressei no mundo dos cursinhos preparatórios para concurso, não sem antes analisar em que poderia contribuir para os alunos que almejam aprovação em certames inseridos no modelo descrito neste texto. Certo é que tive a permissão de não me ater exclusivamente ao entendimento dos tribunais, tampouco a resumos e manuais ou esquemas mentais, muito embora, por diversas vezes, me pegue dizendo: o certo é assim, mas se isso cair na prova a resposta é outra.
Embora inserido nesse universo dos concursos públicos, sempre tento mostrar aos alunos que não basta estudar por resumos e apostilas, tampouco treinar técnicas de memorização, seguindo mapas mentais. Sei que muitas vezes não sou compreendido diante dessa minha preocupação de ir além dos manuais e informativos de jurisprudências, porque, na verdade, é apenas isso que é cobrado nos concursos. Se só isso é exigido, como fazer o aluno entender que tem que ir além, que tem que realmente entender a matéria que está estudando e não apenas decorá-la?
Como já salientado no texto acima transcrito, se mostra verdadeira a idéia de que os alunos que se aprofundam brigam com a prova, identificam erros na formulação das questões que os alunos ditos “ruins” não alcançam. Encontro-me diante de um paradoxo: o direito não é simples e não deve ser estudado por manuais rasos ou de pegadinhas, tampouco por informativos de jurisprudências, mas se instar meus alunos a estudar por livros profundos, que levam o direito a sério, posso estar prejudicando os objetivos deles. Esse jogo em sala de aula se mostra bastante complexo, mas creio que consegui encontrar um meio termo que, se não é satisfatório para mim, está sendo bem recebido pelos alunos.
Sempre que posso e o tempo me permite, analiso as decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal em suas idiossincrasias, mostrando o que elas têm de bom e também de ruim. Indico livros que vão além dos manuais simplificados e, dentre esses, sempre escolho aqueles que tratam a matéria com mais profundidade. Não raro não me limito a apenas um manual, faço uma junção de vários naquilo que eles têm de melhor. Enfim, tendo trabalhar o direito de uma forma simples, porque o ambiente assim me impõe, mas com a profundidade necessária à formação do futuro profissional do direito.
Esse duplipensar do direito já tomou de assalto as salas de aulas das faculdades, exigindo um novo modelo de professor e outra abordagem conteudística.[6] Como a maioria das pessoas que procuram uma faculdade de direito objetiva aprovação em concurso público, o ensino é adaptado às necessidades do mercado de consumo. O mesmo se diga dos professores, que têm a todo custo que prender a atenção dos alunos, nem que para isso tenham que fazer paródias de músicas ou se travestir de astros pop, expondo o assunto nos limites tênues exigidos pelos concursos.
Se os alunos já ingressam na faculdade pensando nos concursos, elas (faculdades) já estão adaptadas ao mercado consumidor e tentam ofertar o que o aluno procura. Hoje as faculdades já oferecem aos alunos material didático elaborado pelos professores, que não passam, na sua maioria, de apostilas com recortes, muitas vezes sem nexo algum, de livros que já tratam o direito de forma simplificada.
Os alunos, por sua vez, limitam-se a estudar por essas apostilas, descuidando de aprofundar a matéria por livros que tratam o direito a sério. O mesmo se diga das provas que são aplicadas aos alunos. Na maioria das vezes são elaboradas nos moldes dos concursos públicos, objetivas, sem que o aluno tenha que argumentar nada, tampouco justificar suas respostas, bastando marcar um X na opção escolhida[7], com base naquelas apostilas ou livros simplificados.
Certa feita, quando paraninfo de uma turma de formandos, o orador, em um trecho de seu discurso, enaltecendo a dificuldade de se formar num curso tão complexo como o de Direito, assim asseverou: “[...] conseguimos, depois das dificuldades, de cinco mil páginas lidas, chegamos até aqui [...]. Nesse instante fiz uma conta rápida, mil páginas por ano, 2,7 páginas por dia... Aí me perguntei: onde estamos errando? E a crise se desvela!
Notas e Referências:
[1] Sobre o tema: PEIXOTO, Daniel Monteiro. Debate. in Métodos de Ensino em Direito: conceitos para um debate. GHIRARDI, José G. (org.). São Paulo: Saraiva, 2009.
[2] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 33.
[3] O duplipensar no ensino jurídico – ou de como conviver com o paradoxo – Por Danilo Nascimento Cruz. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/tag/duplipensar/
[4] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 34.
[5] Lenio Streck percebeu a importância do texto referido, fazendo referência expressa a ele em sua obra: Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
[6] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 34.
[7] Aqui faço um adendo. Nem sempre essa opção por provas objetivas é do professor, mas com turmas com mais de 50 alunos, com prazo diminuto para entrega das notas, o professor quase nunca tem alternativa que não se submeter a esse modelo de prova.
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