O DOLO SENTENCIAL COMO POSSIBILIDADE DE DECLÍNIO DA ORDEM JURÍDICA

08/10/2021

O quão prejudicial é proferir uma sentença desprovida de imparcialidade?

Coluna Espaço do Estudante

Reiteradamente, as correlações dos problemas do direito partem de um anexo estrito da análise da lei ou dos seus aplicadores. Esta, força inicial para visto sobre o que diz respeito à jurisdição, muitas vezes, sendo o critério necessário para tirarmos conclusões se um sistema judicial cumpre - ou não - com a funcionalidade que se destina. Mostra, que de forma não hegemônica, algumas perspectivas adversas surgem e apresentam apontamentos seguros sobre outras formas de observar os fenômenos jurídicos em sentido epistemológico. Uma destas óticas é a do processualista uruguaio, considerado um dos maiores da América Latina: Eduardo Couture.

Dada as devidas ressalvas sobre o que o termo “jurisdição” tem ontologicamente, sobre a visão do próprio autor, Couture tenta mostra que a sentença pode ser o meio mais fiel de observação da confiabilidade de quão um sistema jurídico se atém ao cumprimento da justiça como um norte, e não unicamente suas leis. Argumentando que, a máxima do direito nacional-socialista: Kampf vieder auf das subjektive Recht (i.e. Lute novamente pelo direito subjetivo), é um fator direcional para um direito caso por caso, que tende em interesses enviesados politicamente sobre o que irá ser emitido sentencialmente (COUTURE, 1958, p. 70); ou, também mostrando o mesmo problema sob a égide do comunismo de Lênin, utilizando o tribunal como um instrumento de poder (COUTURE, 1958, p.17). Sendo esses lemas, uma sobreposição do uti singulo (i.e. interesse particular) sobre o uti civis (i.e. interesse coletivo).

Sobre a temática anterior, destrinchei-me em outro artigo com abordagem de alguns outros processualistas. Pondo em enfoque a sentença propriamente dita, Couture diz, sob panorama exegético socrático no livro de Críton, quando levanta a possível imutabilidade da coisa julgada através da sentença, que este mecanismo é a essência para entender o aspecto teleológico da jurisdição: 

Sócrates: "Você acha que pode persistir, sem ser arruinado, aquela cidade em que as decisões judiciais nada podem fazer e em que os particulares as anulam e colocam à sua discrição, senhorio?". (SÓCRATES apud COUTURE, p.492, 1958, tradução nossa)

Essa discussão parte da análise axiológica do processo civil, onde o Couture fala da importância da sentença como um dos fins a serem cumpridos pelo direito, o fim último da jurisdição: fazer coisa julgada (COUTURE, 1958, p.36). Esta, que porta um caráter atemporal, pois o judiciário pode se manter mediante uma Constituição substituída, na substituição do chefe do executivo, mas diferentemente, a coisa julgada é aspecto essencial da jurisdição, sendo o que caracteriza o ato jurisdicional, na hipótese de dolo sentencial: a ordem jurídica cai vertiginosamente.

E sobre o parágrafo anterior, Couture relata:

Uma Constituição pode ser substituída por outra Constituição; uma lei pode ser revogada por outra lei; um ato administrativo pode ser revogado por outro ato administrativo; um ato jurídico privado pode ser modificado e substituído por outro ato jurídico; mas uma sentença proferida com autoridade de coisa julgada não pode ser substituída ou revogada por outra sentença. (COUTURE, p.39, 1958, tradução nossa)

Vale salientar que a sentença não é um fim em si mesmo, nem a sua imutabilidade, assim como os fins do Estado não se resumem a ela. No entanto, quando falado a respeito da jurisdição, até onde o direito, cumprindo sua função social, que segundo o italiano Chiovenda em Instituciones de Derecho Procesal Civil, é a atuação dos entes públicos, guiados pela lei, substituindo a atividade dos particulares para solucionar conflitos (1936), pode, através da sentença resolutiva, viciar-se ou agir com dolo. O italiano apresenta sobre tal discussão, a existência de uma corrente de direito livre (Freirechtsbewegung), que cultivam defensores de um aparato sentencial desprovido do embargo positivo da lei, sobejamente interpretativo. Entretanto, o autor coíbe logo em seguida, falando que ao desvincular o método científico de abordagem do direito, viajamos entre uma ciência da interpretação que ressalta arbitrariedade; e de que, quanto mais voltamos a - totalidade da - atenção aos motivos determinantes de uma ação, mais tendemos a ter um movimento de reação (CHIOVENDA, 1992, p.93). Este movimento, sendo inconcebível para com a figura do juiz.

Circunstancialmente à teoria de Couture, em retorno ao seu aparato teórico a respeito do dolo sentencial já versado anteriormente, cabe caracterizá-lo pragmaticamente. Assim, ao corpo jurídico substituir as partes num processo, seguindo a explanação de Chiovenda, o dolo sentencial (i.e. a conduta judiciária enviesada) ofende um dos aspectos essenciais da jurisdição, que configura a superioridade jurídica frente a autotutela ou os meios de resolução de conflitos no âmbito privado, sendo a estrutura dialética do processo (COUTURE, 1958, p.491): a possibilidade da tese do autor e antítese da defesa, que no sentindo de síntese da coisa julgada, perde seu sentido quando o juiz tende o pêndulo da justiça para uma das partes.

A defesa da causa contrária, ou mesmo a autoria falha do improbus litigator, merecem seu apreço do corpo jurídico. Assim como, o “homem bom” que comete o delito contra o “o homem mal”, ou o homem mal que comete sua ofensa contra o homem bom, que em sentido aristotélico em Ética a Nicômaco, ambos se mostravam merecedores da tutela jurídica, pois, a atividade jurídica deveria considerar apenas o caráter distintivo do delito, tratando as partes sem maiores distinções perante sua personalidade (ARISTÓTELES, p.104). Para o filósofo, o juiz se configurava como justo na medida que conseguia estabelecer igualdade entre as partes e suas demandas, buscando equilibrá-los, principalmente, na atividade sentencial.

Ergo, o impacto do dolo sentencial não é resumido à sentença, provém de uma série de irregularidades, as quais comprometem, especificamente, o instituto da jurisdição e o instituto processual. Estes, assemelham em seu panorama teleológico, e seus poderes não se submetem nem à atividade administrativa ou legislativa, funcionam num sentido de “poder-dever”, prima facie, a faculdade de julgar é do juiz, seu dever administrativo é de prosseguir o julgamento, e assim deve fazê-lo. A jurisdição, neste caso, cumpre-se mediante um processo adequado, fornecendo possibilidades de defesa e um concurso probatório, onde, o devido processo legal, para Couture, é um princípio contido na própria definição jurisdicional (1958, p.62).

Fazendo-se entender que a atividade judicial deve apontar em sentido contrário ao redundante aspecto interpretativo, alguns juristas enxergavam essa margem interpretativa como inevitável. Com isso, além da epistemologia jurídica que caminha para o positivismo, os processualistas também fizeram ciência com mecanismos que tentassem coibir essa conduta, previam no método histórico[1] uma correlação necessária. Este, que versava sobre as decisões buscarem, primeiramente, a fundamentação em texto legal, certo e sem dubiedades; na ausência deste, deveria se buscar objetividades no tecido inorgânico (i.e. aspecto normativo em potencial), sob panorama econômico e social.

Parte da doutrina alemã[2] se debruçou em sentido contrário à imutabilidade da sentença e sua influência sociológica, no sentido de que os direitos “permaneceriam” válidos na personalidade do indivíduo ou, em vezes, no meio coletivo e moral. No exemplar casuístico de sociedades que se revoltam perante decisões jurídicas injustas, embora, para o direito a decisão seja res iudicata, indiscutível. Entretanto, tal postura é considerada contra legem por parte doutrinária dissonante, e que afeta à ciência do direito em sua gênese, pautando-se sob fins distintos para a sociedade e para o corpo jurídico.

Conclui-se que, haja vista a análise decorrente da ótica de processualistas, a sentença configura importância correlacional com a eficácia do direito. Com isso, ao fazer coisa julgada mediante dolo sentencial do corpo jurídico, pecamos em condenarmos uma conduta e, analogamente, condenamos a lei, no sentido de que a coisa julgada prevalece acima da lei; caso contrário, debateríamos demasiadamente o alcance da lei e sua eficácia, invalidando a coisa julgada ou tornando-a ideal longevo. 

 

 

Notas e Referências

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, seleção de textos de José Américo Motta Pessanha, 4. ed., São Paulo: Nova Cultural, 1991.

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituciones de Derecho Procesal Civil, Madrid, I, 1936.

CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de Derecho Procesal Civil: Madrid, Editorial Reus, 1922.

COUTURE, Eduardo. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1958.

HELLWIG, Konrad. Wesen und subjektive Begrenzung der Rechtskraft, Alemanha: Scientia Verlag, 1967.

SALEILLES, Raymond. Le Code Civil et la méthode historique, 1903, p.21.

[1] SALEILLES, Raymond. Le Code Civil et la méthode historique, 1903, p.21

[2] HELLWIG, Konrad. Wesen und subjektive Begrenzung der Rechtskraft, Alemanha: Scientia Verlag, 1967.

 

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