O discurso de combate à criminalidade e a relativização de direitos fundamentais: um grito de alerta - Por Rodrigo Medeiros da Silva

16/10/2017

 

O Brasil, após a promulgação da Constituição de 1988, ainda caminha na construção da democracia, que, seguramente, é uma obra em constante aperfeiçoamento. As conquistas de direitos e garantias fundamentais são progressivamente alcançadas e devem ser o foco de uma sociedade que ainda convive com desigualdades abissais. No entanto, há, no campo das garantias processuais penais, muito a se fazer em razão das arbitrariedades perpetradas pelas diferentes agências estatais, seja a Polícia, o Ministério Público ou mesmo a Justiça Criminal. Ademais, assistimos a episódios caracterizados por uma pirotecnia formidável, mas que podem resultar em prejuízos incomensuráveis a investigados e acusados, que tem a seu favor a presunção de inocência.

A Operação Lava Jato, que há mais de três anos é amplamente veiculada na mídia, é pródiga em mitigações de direitos fundamentais. Pode-se citar as conduções coercitivas que desde 2013 levou, só a Polícia Federal, a cumprir 6.027 mandados em 2.266 operações.[1] Este tipo de ação está prevista nos artigos 201, § 1º; 218, 260 e 278, todos do Código de Processo Penal; artigo 80 da Lei 9.099/1995; e artigo 187 do Estatuto da Criança e do Adolescente. De uma simples leitura desses dispositivos, percebe-se que a condução coercitiva pressupõe o descumprimento de uma intimação ordenada por um magistrado. Mas são verificadas recorrentes inovações por parte do Judiciário. A decisão do Juiz Sérgio Moro que determinou a condução coercitiva do ex-presidente Lula traz como fundamento o receio da ocorrência de tumultos durante o depoimento.[2] Ora, essa hipótese não está prevista em lei. Pode-se inovar e cercear a liberdade de um investigado, ou seja, relativizando um direito fundamental, para impedir manifestações, chamadas de tumultos?

Outra inovação surpreendente é a imposição de medidas cautelares, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, a um parlamentar. O artigo 53, § 3º, da Constituição, é claro ao prever a necessidade de manifestação da respectiva Casa Legislativa para manutenção de prisão em prisão em flagrante por crime inafiançável. Mas recolhimento noturno e suspensão de mandato é medida diversa da prisão. Contudo, os ministros da 1ª turma se esquecem de que os poderes são independentes e harmônicos entre si. Não é cabível um Poder interferir em outro a ponto de impedir um de seus integrantes de exercer a sua função parlamentar. Ademais, a Lei nº 12.403, de 2011, tinha claro objetivo de disciplinar as medidas cautelares de natureza penal, vez que a prisão era a medida cautelar por excelência. Aliada a uma situação caótica do sistema prisional, a medida visava não submeter ao cárcere investigados e acusados que não necessitavam da custódia. Portanto, qualquer medida de natureza cautelar deve ser referendada pela Casa Legislativa.

O fato que mais evidencia o exibicionismo em favor de uma mídia irresponsável, foi a prisão do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier. O reitor era alvo de uma investigação denominada “Operação Ouvidos Moucos”, cujo objeto seria supostos desvios de recursos públicos em cursos de Educação a Distância (EaD) oferecidos pelo programa Universidade Aberta no Brasil (UAB) na Universidade Federal de Santa Catarina. Cancellier foi exposto a uma verdadeira execração pública, fruto de um ato de arbítrio, com o beneplácito do Poder Judiciário. Convém salientar que os fatos investigados remontam ao ano de 2006, ou seja, dez anos antes de Cancellier assumir o cargo de reitor. Em 14 de setembro, o reitor, Luiz Carlos Cancellier, foi preso sob o argumento de risco de interferência na investigação.[3] A ampla divulgação da prisão temporária do reitor aliada à espetacularização e à proibição de comparecer às instalações da UFSC, levou-o ao suicídio, diante de tamanha humilhação a que foi submetido após anos de serviços prestados à universidade. Cancellier atirou-se no pátio interno de um conhecido shopping de Florianópolis na manhã de 2 de outubro, uma segunda-feira.

A morte do reitor Luiz Carlos Cancellier deve incitar a reflexão da comunidade jurídica sobre as reiteradas práticas abusivas por parte do aparato policial, apoiadas pelo Judiciário e pelo Ministério Público. Os direitos fundamentais são deixados de lado. A Constituição rasgada e relativizada, com execuções penais com decisão condenatória de segunda instância, mesmo pendente recurso a instâncias superiores. A presunção de inocência inexiste, bem como o amplo direito de defesa e do exercício do contraditório.

Cancellier foi vítima da rotulação rotineiramente perpetrada por um Estado que busca separar os sujeitos que supostamente reproduzem comportamentos desviantes.[4] Cria-se uma ideologia de definição daqueles que seriam eleitos “inimigos” e se exerce um poder simbólico no sentido de empreender a exclusão do rotulado e legitimar o binômio dominados versus dominadores.[5] Neste rumo, convém lembrar de Michel Foucault que afirmava que o cárcere exerce função simbólica significativa no sentido de impor um estado de subjugação do sujeito perante o poder do Esta­do, configurando importante instrumento de projeção de poder.[6] O próprio Cancellier relatara, em artigo publicado no Jornal O Globo, quatro dias antes do seu falecimento, que foi submetido à humilhação, sendo, inclusive, despido de suas vestes. Esta prática tem um efeito psicológico estupendo e leva o preso a ser objeto de um exercício de poder do Estado algoz.

Conclui-se, em rápidas palavras, que mesmo após conquistas importantes advindas com a promulgação da Constituição de 1988, os direitos fundamentais são desrespeitados de forma clara e sem qualquer constrangimento. Presunção de inocência, direito a ampla defesa, exercício do contraditório, observância do devido processo legal, dentre outros, são deixados de lado em nome do combate à criminalidade. E se ficar provado que o reitor Luiz Carlos Cancellier em nada contribuiu para o suposto desvio de R$ 80 milhões da UFSC? Como bem indagou o ex-Senador Nelson Wedekin durante a cerimônia fúnebre:   

“Que autoridades são essas que, ao invés de nos proteger, causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade? Não se passa o País a limpo assim”.[7] 

 

Que a sociedade não abra mão dos seus direitos e lute, cada vez mais, pelo respeito a todo e qualquer ser humano. Combater a criminalidade, notadamente a corrupção, em nome de uma suposta moralidade não é cabível no Estado Democrático de Direito. Esta prática é mais usual nos regimes totalitários. Mas, A realidade não demonstra uma aspiração por um regime totalitário? Fica a provocação! 

 

 

 

[4] SILVA, Rodrigo Medeiros da. Modernidade, direitos humanos e rotulação: os reflexos do “labeling approach” na vida social e na concretização de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 61.

 

[5] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 10-11. 

 

[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 32. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 13-20. 

 

[7] Disponível em https://www.cartacapital.com.br/revista/973/luiz-carlos-cancellier-vitima-do-estado-policial. Acesso em 10 out 2017.

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