O “discurso contra a corrupção” como fetiche da (ir)racionalidade do capitalismo: por quem, por que e como a política é estigmatizada no Brasil

04/04/2016

Por Enzo Bello - 04/04/2016

Há certas expressões tidas como consensuais na vida política. Símbolos construídos ao longo da história como conquistas civilizatórias, episódios ou mesmo barbáries que devem ser lembradas para não se repetirem. De um lado, tem-se os “direitos humanos”, a “cidadania”, a “dignidade humana”, a “solidariedade”; de outro, a “ditadura”, o “nazismo”, o “fascismo” e o “racismo”. Uma vez invocada qualquer dessas palavras, há uma tendência de manifestação imediata em relação a elas, seja em defesa, seja em ataque.

Certa vez, Slavoj Zizek ousou escrever um texto intitulado “contra os direitos humanos”. Seu argumento é muito simples: somos favoráveis aos “direitos humanos” por motivos óbvios: humanísticos, filosóficos, normativos etc. Porém, se o que se entende hegemonicamente por “direitos humanos” denota práticas, por exemplo, como as da política externa de “guerra ao terrorismo” do ex-presidente George W. Bush, ao exterminar centenas de milhares de pessoas sob a justificativa de “levar as luzes, a liberdade e a democracia para o Oriente médio”, então sou contra, afirmou o filósofo esloveno.

Nesse sentido, a proposta aqui é abordar um tema recorrente na vida política, que por vezes ganha uma elevada notoriedade no debate público, numa perspectiva diferente da tradicional e abstrata (ética, jurídica etc.); com um olhar a partir da materialidade das relações sociais. Trata-se do fenômeno da corrupção e sua construção discursiva contemporânea num processo político de disputa por hegemonia na sociedade capitalista neoliberal. Mas, afinal, o que é o “discurso contra a corrupção”? Como ele é construído e aplicado no Brasil?

A partir da observação do concreto, Marx formulou a categoria “fetichismo da mercadoria”, demonstrando que a figura da mercadoria servia para mascarar um conjunto complexo de relações sociais subjacentes à produção de bens com valor econômico para a circulação no mercado. Ou seja, através de uma reificação (Lukács) que objetifica seres humanos e dinâmicas sociais, cria-se a falsa ilusão de “leis naturais” (“isso sempre foi assim”, “a corrupção é endógena ao ser humano” etc.) que estruturam a sociedade. Mas qual sociedade? É preciso colocar os pés no chão observar os fenômenos sociais em seus contextos históricos.

Antropocentrismo, racionalidade e individualismo são as marcas estruturantes da figura do “homem moderno”. A subjetividade iluminista é constituída no paradigma da modernidade e correspondente ao modo de produção capitalista espraiado mundo afora de modo autoritário e violento pelo processo de colonização. Para além da sua definição filosófica, em sua versão “carne e osso” o “homem moderno” é um sujeito individual, racional, do gênero masculino, branco, proprietário, religioso, heterossexual e chefe de família (patriarca).

Por trás da abstração da liberdade e da igualdade formais (a fraternidade, coitada, sempre esquecida), das declarações de direitos dos séculos XVII e XVIII, e das constituições dos séculos XX e XXI, prepondera no plano material a propriedade privada. Afinal, esta é o fundamento da marca distintiva do capitalismo em relação aos modos de produção anteriores: a divisão social do trabalho calcada na propriedade privada dos meios de produção. A partir daí, persistem algumas características do homo economicus do capitalismo – situado no âmbito privado, pautado por lemas como competição, concorrência, disputa; dotado de personalidade egoísta; mobilizado pela meritocracia em direção ao horizonte da vitória, do sucesso, do lucro e, assim, da prosperidade.

Esses são a sociedade e o sujeito referenciais a serem considerados quando se fala em “corrupção”, que, segundo Aurélio (o dicionário), significa corromper, decompor, depravar, desmoralizar, subornar. Portanto, algo negativo que deve ser evitado, reprovado e coibido, tal como as práticas relativas às expressões perniciosas apresentadas acima.

Bem, se todos somos (e é de bom tom que sejamos) contra a corrupção, então como identificá-la para que possamos evitar, criticar e condenar suas práticas? Alguém da área do Direito bem intencionado, porém afobado, prontamente diria: a partir das normas jurídicas! Nestas há definições, tipificações e recriminações abstratas referentes a condutas que, em tese, possam prejudicar a moralidade, a confiança, a coisa pública, entre outros bens jurídicos importantes.

Porém, antes, depois e além das conceituações jurídicas – por sinal, técnicas e desconhecidas pela maioria das pessoas –, há uma construção ideológica da “corrupção” no imaginário social, a partir de sujeitos, espaços e meios concretos. Como identificou Gramsci, o senso comum começa a ser construído pela família, no âmbito privado e mediante a transmissão de valores e conhecimentos consolidados. Em outra faceta, há uma reprodução dialética por instituições (escolas, universidades, imprensa etc.), no espaço público e através da difusão de informações.

Por mais que exista uma técnica jurídica para defini-lo, a semântica do fenômeno da corrupção é, em linhas gerais, formulada e assimilada pela maioria das pessoas (pois leigas em termos de técnica jurídica) a partir de discursos formulados e propagados no espaço público por meios de comunicação de massa. Evidencia-se a corrupção enquanto fenômeno e como discurso. Assim nasce uma concepção hegemônica que caracteriza – por vezes, independentemente dos fatos – o termo que denomino “discurso contra a corrupção”.

Trazendo a discussão para a realidade brasileira contemporânea, afinal: em linhas gerais, (i) quem, (ii) por que e (iii) como constrói o “discurso contra a corrupção”?

Quem? Os grandes meios de comunicação social, que são objeto de oligopólio – vedado pela Constituição Federal de 1988 (art. 220, §5º) – de alguns grupos privados empresariais, que exploram de modo pouco plural e nada imparcial (ora, são empresas, visam ao lucro!) os canais de difusão de informações (rádio, TV aberta e fechada, jornais impressos e eletrônicos). As principais instituições estatais repressivas (polícias, Ministério Público, Poder Judiciário, Tribunais de Contas), cujos profissionais – em sua maioria oriundos dos estratos mais abastados da sociedade – aplicam aquelas normas jurídicas interpretando-as a partir da semântica que aprenderam em suas (também de elite) famílias, escolas, universidades, e que recebem cotidianamente daquelas empresas de mídia.

Por quê? Para definir parâmetros de comportamento e estigmatizar determinados sujeitos. Como é recorrente na sociedade capitalista, há um objetivo claro de se privilegiar a dinâmica privada do mercado (aquela competitiva, do homem avarento) através da desqualificação da Política (com “P” maiúsculo, no sentido gramsciano) e do Estado como meio e espaço democráticos para a tomada de decisões públicas e soberanas.

Como? Nos grandes meios de comunicação é frequente a publicação de factoides, notícias sem comprovação, versões parciais sem se ouvir a todos os envolvidos, sempre numa perspectiva de fiscalização, denúncia e condenação. Tem sido usual o alarde midiático em ações e decisões que caracterizam a ausência da imparcialidade e impessoalidade na condução de investigações, acusações e julgamentos, bem como a constante e pirotécnica violação a direitos e garantias fundamentais de cidadãos e instituições por membros do Ministério Público e da magistratura que se investem na função de missionários responsáveis por uma cruzada moralizadora contra “políticos corruptos”.

Nos termos em que é formulado e aplicado, o “discurso contra a corrupção” é seletivo e dá a falsa impressão de que o fenômeno só ocorre no espaço da Política, do Estado e por alguns sujeitos. Será? Ou os recentes escândalos de corrupção no Brasil não partiram de vultuosos financiamentos de campanhas eleitorais por grandes empresas privadas? Ou não existe (muita) corrupção em entidades privadas supranacionais (FIFA e COI, por exemplo), em empresas particulares de comunicação e nas instituições estatais persecutórias e repressivas? Ou a diferença talvez esteja na seletividade qualitativa e quantitativa de casos apurados e que ganham nenhuma, alguma ou muita repercussão midiática? Antes de se apontar o dedo, é preciso olhar para dentro e fazer o dever de casa. Isso nem sempre ocorre, por exemplo, em órgãos de imprensa que devem fortunas ao fisco e em instituições estatais persecutórias e repressivas que não investigam e responsabilizam seus próprios membros com o mesmo rigor que o fazem com outros cidadãos.

O “discurso contra a corrupção” mascara um conjunto de relações sociais, políticas e econômicas nem sempre publicadas e, de fato, não alcança a complexidade e a totalidade do fenômeno da corrupção.


Enzo BelloEnzo Bello é Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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