O direito resolutório dos herdeiros do doador em função de descumprimento de encargo pelo donatário – Por Eduardo Silva Bitti

03/10/2017

No caso presente nos autos 00056742220144036119, que tramitaram[1] junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, perdeu-se grande oportunidade de tentar colocar fim em uma das dúvidas mais interessantes dos contratos de doação, a questão da possibilidade dos herdeiros de doador poderem pleitear a revogação de doação de imóvel por descumprimento de encargos por parte de donatário.

Tal situação levantava uma necessidade que aparentava estar soterrada pelos escombros do Código Civil de 1916, mas que, até hoje, possui reflexos.

O atual Código Civil em vigor trata a matéria com a afirmação, no artigo 560, de que o direito à revogação é intransmissível aos herdeiros do doador, mas aqueles podem prosseguir na ação iniciada por aquele, “continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de ajuizada a lide”.

Tal dispositivo é perigoso pois, supostamente, teria sido derivado de norma semelhante existente no diploma material de 1916 e, em tese, rechaçaria a legitimidade de herdeiros para propor pedidos de revogação em qualquer circunstância.

Há, inclusive, julgados de tribunais do país que enfrentam o assunto multitemporal com a bandeira da impossibilidade revocatória em tal sentido, como ocorreu no da Apelação nº 1015878-85.2013.8.26.0100, realizado em 10 de março de 2015 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que teve como relator o Desembargador Guilherme Santini Teodoro.

O argumento utilizado em tais hipóteses é o da ausência de legitimidade de herdeiros para o pedido de revogação, ainda que por descumprimento de encargo, o qual estaria amparado na ideia de que tal ação supostamente tinha, como até hoje aparentaria ter, natureza personalíssima, apesar de alguns, diga-se incoerentemente, como Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald[2], afirmarem que o requerimento quanto à execução do encargo também poderia ser realizado pelos herdeiros. O mesmo pensamento com relação à norma anterior é também visto em obras como as de Silvio de Salvo Venosa[3].

A ação revocatória, contudo, nunca possuiu tal conotação personalíssima na doação modal, uma vez que são claras as diferenças entre as tentativas de revogação de doação por encargo e as por ingratidão.

O Código Civil de 1916 abordava o tema do artigo 1.181 ao 1.187, tendo como ponto nevrálgico da questão revocatória a leitura dos artigos 1.183 a 1.185.

No artigo 1.183, precisamente, preceituavam-se justificativas nas quais era possível a revogação por ingratidão. O artigo 1.184, contudo, possuía texto possuía redação dúbia, dizendo que “a revogação por qualquer desses motivos pleitear-se-á dentro em um ano, a contar de quando chegues ao conhecimento do doador, fato, que a autorizar”.

A dubiedade estava justamente na utilização do vocábulo “desses”, contração usada para referir-se a algo que esteja próximo. Afinal, naquela sequência de dispositivos, duas interpretações seriam cabíveis quanto ao que estaria mais próximo, sendo a primeira a relação de motivos par a revogação por ingratidão e a segunda, a totalidade de informações relacionadas ao assunto, incluídas as que abordavam revogação por encargo no parágrafo único do artigo 1.181.

Tal duplicidade interpretativa, aparentemente banal, desaguava no imediatamente posterior artigo 1.185, que preceituava que:

“O direito de que trata o artigo precedente não se transmite aos herdeiros do doador, nem prejudica os do donatário. Mas aqueles podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de contestada a lide”.

A dúvida, mais uma vez, seria: qual o direito de que tratava “o artigo precedente”, notadamente o 1.184?

A resposta a essa pergunta possivelmente inspirou interpretações equivocadas sobre a redação do atual artigo 560 do Código Civil de 2002, que tentaram retirar a legitimidade dos herdeiros em todas as situações.

Sabe-se, entretanto, que sempre esteve claro o fato de que a revogação da doação por encargos nunca possuiu tal natureza personalíssima, até porque não se trata de ação revocatória.

Veja-se, o próprio Superior Tribunal de Justiça, nos julgamentos dos recursos especiais 131.660/SP, 32.496/SP, 69.682/MS, 27.019/SP e 2.725/SP, retirou do artigo 1.184 do Código de 1916 o prazo de prescrição da revocatória da doação modal, considerando, dizendo que “a extinção da doação por inexecução de encargo não é caso de revogação, mas sim de resolução por incumprimento”.

De fato, tais decisões da Corte Superior deixaram claro que o direito de que tratava o artigo 1.184 e que não se transmitia aos herdeiros do doador, conforme disposto no artigo 1.185, era tão somente aquele decorrente da revogação por ingratidão.

Logo, não se concorda aqui com a tese de que somente o doador poderia efetuar a revogação da doação por encargo, excluindo-se os herdeiros quanto à tal legitimidade, pois tratam-se de matérias distintas. E esta discordância serve tanto para o Código Civil de 1916, como o de 2002.

O Desembargador Francisco Loureiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento, em 14 de maio de 2015, da Apelação Cível 0002742-62.2013.8.26.0286 expressou voto no sentido que não se aplica o artigo 560 do Código Civil a doações por encargo, levando em conta os dizeres de Sylvio Capanema de Souza[4], para quem:

“(…) a legitimação ativa se alarga, para os herdeiros do doador, após a sua morte, para qualquer interessado e para o Ministério Público, como já visto. Ressalte-se que poderão os herdeiros do doador, após a sua morte, demandar pela revogação da doação, mesmo que o doador, em vida, não tenha demonstrado interesse em promove-la, o mesmo se aplicando ao Ministério Público, na hipótese acima aventada.

O tratamento diferenciado é de fácil explicação, já que a ingratidão encerra um inafastável componente subjetivo, que só o doador poderia aferir, enquanto o não cumprimento do encargo se mede por critérios objetivos que obedecem a experiência comum dos fatos da vida”.

Na verdade, prefere-se a noção de que a utilização da palavra “revogação”, como retirada da voz manifestada pelo doador, somente é possível em casos de ingratidão, pois tanto no artigo 1.187, II, do Código Civil de 1916, como no artigo 564 do correspondente diploma civil atual, não se diz possível revogar por ingratidão em hipóteses de doação por encargo.

Com isso, não se trata de direito de revogar, mas, sim, nos casos de descumprimento de encargo, de direito de resolver o negócio jurídico, o que transferível aos herdeiros do doador.

Notas e Referências:

[1] A decisão foi ratificada em âmbito do Superior Tribunal de Justiça sem verificação da referida questão de mérito por força de problemas de ordem meramente processual no agravo em recurso especial 907.362-SP, tendo como relator o Ministro Herman Benjamin.

[2] Cf. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos. V. 4. 5 ed. São Paulo: ATLAS, 2015, p. 747.

[3] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. V. 3.  6 ed. São Paulo: SARAIVA, p. 122.

[4] SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao novo Código Civil: das várias espécies de contrato. V. 8. Rio de Janeiro: FORENSE, 2004, pp. 285 e 286. 

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