O Direito Processual menosprezado pelos interesses políticos circunstanciais - Por Afrânio Silva Jardim

13/09/2016

Inicialmente, desejo esclarecer que não advogo, não sou filiado a qualquer partido político e não tenho qualquer interesse pessoal em relação aos fatos concretos de que vamos aqui tratar. Falo como professor de Direito Processual, pelo longo período de trinta e seis anos e cidadão permanentemente cultor do valor JUSTIÇA.

Nesta oportunidade, vamos tratar de dois temas jurídicos de grande relevância e de absoluta atualidade. Nos dois primeiros estudos, vamos cuidar de enfrentar aspectos procedimentais (quesitação) do julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Estas questões estão sob futura apreciação do Supremo Tribunal Federal. Lá existem processos com pedidos de anulação, total ou parcial, do mencionado julgamento.

Cabe esclarecer que não vamos entrar no mérito de tal julgamento, mas apenas tratar de questões relativas à quesitação respondida pelos senadores. Vale dizer, temas processuais que se inserem na minha atividade acadêmica. Em segundo lugar, vamos nos ocupar de alguns aspectos da problemática da competência no processo penal. Também aqui partimos de um caso concreto de total atualidade. O Tribunal de Justiça de São Paulo, poucos dias atrás, via incidente processual próprio, declarou ser competente o juízo da 13ª. Vara Federal de Curitiba para receber ou rejeitar uma denúncia oferecida contra o ex-presidente Lula. Cuida-se de denúncia apresentada por promotores de justiça do Ministério Público paulista.

Feitos estes esclarecimentos prévios, passamos abaixo ao enfrentamento das questões acima anunciadas, em tópicos distintos.

1 – SOBRE A ALEGADA NULIDADE DO JULGAMENTO DO IMPEDIMENTO DA PRESIDENTE DILMA.

Tomamos conhecimento pela imprensa que existem processos, no Supremo Tribunal Federal, com pedidos de anulação apenas do segundo quesito, formulado pelo Min. Lewandowski, relativo à perda dos direitos políticos da acusada.

Não vou entrar no mérito das respostas dadas a estes quesitos pelos senadores. Aqui vale a pena repetir: minha preocupação é absolutamente técnica, como professor associado de Direito Processual Penal por 36 anos (UERJ) e Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Rio de Janeiro. Entendo que o julgamento é uno, incindível, embora fracionado em dois quesitos, como ocorre normalmente no Tribunal do Júri. Trata-se mesmo de uma questão de lógica, perceptível até por um leigo em Direito.

A toda evidência, ao saberem que a decisão seria objeto de duas perguntas, ao menos em tese, os senadores optaram pelas suas decisões, considerando este fracionamento. Vale dizer, é possível que alguns tenham respondido pela perda do cargo da presidente, já pensando em negar o segundo quesito, para não agravar ainda mais a situação da acusada. O próprio senador Cristovam Buarque, no momento em que se discutia se haveria o fracionamento ou não da acusação, pediu a palavra e disse que desejava ter a possibilidade de retirar a presidente Dilma do relevante cargo, “a bem do Brasil”, mas não puni-la pessoalmente, porque aí a dúvida deveria favorecê-la. Isto está gravado.

Em resumo, há uma vinculação direta entre as respostas aos quesitos. Assim, a resposta dada ao segundo quesito pode ter decorrido daquilo que foi decidido no primeiro quesito. Por outro lado, talvez se tenha decidido o primeiro quesito de uma determinada forma, porque haveria o segundo quesito. O julgamento é psicológico e juridicamente uno. Ou se anula todo o julgamento ou não se anula nada.

Vale a pena repetir: não é possível anular apenas a resposta ao segundo quesito, pois quem votou no primeiro estava “de olho” no segundo, e isto poderá ter determinado como o senador decidiu estes referido primeiro quesito.

2 - NÃO É JURIDICAMENTE VÁLIDO UM JULGAMENTO ONDE AS TESES DA DEFESA NÃO PODEM SER APRECIADAS PELOS JULGADORES. IMPEDIMENTO DA PRESIDENTE DILMA.

Sob o aspecto técnico, entendemos que houve nulidade no Impeachment da presidente Dilma, tendo em vista as duas quesitações GENÉRICAS.

AS principais teses da defesa não foram indagadas aos julgadores, no caso, aos senadores.

Em relação aos três decretos de suplementação de verbas, assinados pela acusada Dilma, uma de suas teses principais é de que ela não teria obrado com dolo, já que assinou tais atos se louvando em inúmeros pareceres técnicos da assessoria de vários ministérios. Ademais, tudo estaria de acordo com o entendimento, até então vigorante, do Tribunal de Contas.

Já em relação ao atraso no pagamento do Banco do Brasil, decorrente do financiamento da safra agrícola, no ano de 2015, uma das teses principais, (preliminar de mérito, pois prejudicaria as demais teses, quais sejam, não se tratar de empréstimo e não haver prazo previsto na legislação específica), foi que não haveria qualquer conduta da acusada, seja como autora, seja como partícipe.

Note-se que, na petição inicial do Impeachment, se imputou o suposto crime à então presidente em razão de ela ter se reunido com o Chefe do Tesouro Nacional (citando pessoa que já não mais ocupava o cargo em 2015 ...). Por outro lado, o relatório do senador Anastasia, que foi objeto do julgamento, procurando contornar a fragilidade desta acusação, passou a falar de autoria de crime omissivo, embora invocasse um dever de agir genérico.

Desta forma, deveria ficar esclarecido previamente qual era efetivamente a acusação em relação a este aspecto e ser elaborado quesito específico sobre esta tese defensiva.

Vejam a minha proposta de quesitação abaixo, partindo, inclusive, de conceitos que estabeleci no trabalho intitulado O SIGNIFICADO TÉCNICO DA EXPRESSÃO “JULGAMENTO JURÍDICO E POLÍTICO DO IMPEACHMENT” DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, de ampla aceitação e publicado no site Empório do Direito:

Primeiro, deve ser indagado o ASPECTO JURÍDICO da acusação, na seguinte forma:

1º. Quesito: indagar se a acusada praticou as condutas que lhes são imputadas, DESCREVENDO tais ações no plano fático.

2º. Quesito: respondido positivamente o primeiro quesito, devemos indagar se tais condutas foram praticadas dolosamente (não há crime de responsabilidade culposo).

3º. Quesito: devemos indagar se tais condutas caracterizam crimes de responsabilidade (tipicidade objetiva das ações).

Afirmados positivamente os três primeiros quesitos, entraríamos no ASPECTO POLÍTICO do julgamento, devendo ser formulado o seguinte quesito:

4º. Quesito: indagar se a acusada deve ser absolvida, esclarecendo as consequência jurídicas de eventual condenação.

Note-se que a pergunta deve ter esta forma, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência e tendo em vista o que preceitua o Cod. Proc. Penal em relação ao Tribunal do Júri, de aplicação subsidiária ao processo de Impeachment.

O que acima sustentamos, além de ser juridicamente correto, segundo nos parece, é também uma questão de lógica, de fácil compreensão até mesmo por leigos. Fica aqui a nossa modesta contribuição, na qualidade de professor de Direito Processual Penal.

Em resumo: a forma genérica proposta pelo presidente do STF não contempla a tese defensiva da ausência de dolo em relação à emissão dos três decretos e procura contornar o problema da acusação, pois a defesa alega não haver conduta da presidente Dilma nas chamadas “pedaladas”.

Caberiam as seguintes indagações:  Se houvesse conduta, ela seria autora ou partícipe? Autora, por conduta comissiva ou omissiva? Ela é partícipe? Qual a conduta de participação que deve ser narrada no quesito específico? Note-se que não há participação omissiva em crime comissivo ...

Certo que a quesitação apresentada no mencionado julgamento pode estar em conformidade com a lei n.1079/50. Entretanto, a sua aplicação não pode jamais violar os PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. Tais princípio devem ser respeitados em qualquer tipo de processo. A Constituição Federal prevalece em face de qualquer regra infraconstitucional.

3 - EQUÍVOCOS EM RELAÇÃO À COMPETÊNCIA DO JUIZ SÉRGIO MORO NA CHAMADA OPERAÇÃO LAVA-JATO.

Inicialmente, cabe um esclarecimento, em face do título deste breve estudo. Não se trata de debater a competência jurisdicional de um juiz, de uma pessoa física, mas sim a competência da 13ª. Vara Federal de Curitiba, tendo em vista o que se convencionou chamar de “Operação Lava-Jato”. A justificativa para que todos estes processos sejam julgados neste órgão jurisdicional é o fenômeno processual da conexão entre infrações penais. Então vamos examinar a questão sob o aspecto técnico, já que lecionamos a matéria por cerca de trinta e seis anos ... Procuraremos ser claros e didáticos, de modo que até um leigo possa entender.

A conexão entre infrações penais ocorre nas hipóteses expressamente previstas no artigo 76 do Cod. Proc. Penal. A conexão pode ampliar a competência de um determinado órgão jurisdicional para que haja um só processo e para que ocorra um só julgamento de dois ou mais crimes conexos. Dispõe o art. 79 do mencionado diploma legal: “A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento, salvo...”.

Vamos dar um exemplo didático: alguém furta um carro na comarca “A” para roubar um banco da comarca “B”. Cada crime, em princípio, seria processado e julgado na sua comarca. Entretanto, para que haja unidade de processo e julgamento, uma das duas comarcas vai ter sua competência prorrogada e vai processar e julgar os dois crimes em conjunto. (conexão teleológica).  No exemplo ora apresentado, o furto do carro e o roubo do banco serão objeto de processo único da competência da comarca “B”, por aí ter sido consumado o crime mais grave, (art. 78, inc. II, letra “a”).

Assim, o que o legislador deseja – e nem sempre será possível – é que as infrações penais (crimes e contravenções) sejam julgadas em conjunto, quando forem conexas, evitando-se julgamentos contraditórios e também por economia processual. Se tais infrações forem da competência de foros ou juízos diferentes, a unificação em um só processo levará à prorrogação da competência de um e a subtração da competência do outro. Deseja-se o julgamento em conjunto, em um só processo, vale a repetição.

No caso da “Lava-Jato”, a única conexão possível entre infrações, levando-se em consideração os vários processos, seria a chamada conexão instrumental ou probatória, regulada no inc. III, do art. 76 do Cod. Proc. Penal, que tem a seguinte redação: “quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”.  Não se cuida aqui de prova comum a dois crimes, mas sim de uma questão prejudicial homogênea. Por exemplo: o furto é conexo com a receptação pois, se não houve o furto, juridicamente não poderá haver a receptação (adquirir coisa de origem ilícita).

Desta forma, não concordamos com a interpretação elástica que parte da jurisprudência outorga à conexão instrumental, possibilitando a ampliação da competência da 13ª. Vara Federal de Curitiba. Mesmo assim, muitas infrações ali processadas e julgadas não têm prova comum. Apenas algumas têm origem, por vezes remota, nos crime perpetrados contra a Petrobrás S.A., pessoa jurídica de direito privado (fora da competência da justiça federal). Parece que é invocado um primeiro crime da competência da justiça federal, já processado e julgado de há muito. Entretanto, esta não é nossa questão central. Prosseguimos.

Partindo do que dispõe o legislador, conforme acima mencionado, enfrentemos uma outra questão, lógica e de fácil entendimento. Havendo conexão, os crimes devem ser objeto de um só processo para que haja um só julgamento, vale dizer, todos sejam julgados através da mesma sentença. Nada obstante, se os crimes já foram processados em autos separados e já houve um julgamento de mérito, não há por que modificar as competências de foro, de juízo ou de justiça. Vale dizer, já não mais haverá possibilidade de julgamento conjunto dos crimes conexos.

O código de processo penal trata da questão, consoante regra que transcrevemos abaixo: “Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, SALVO SE JÁ TIVEREM COM SENTENÇA DEFINITIVA. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação de penas” (artigo 82, os grifos são nossos).

Sentença definitiva aqui é sentença de mérito pois, após ela, havendo recurso, o processo sobe para o Tribunal, inviabilizando novo julgamento conjunto com o eventual crime conexo. Não havendo recurso, o primeiro crime estará julgado, não podendo ser julgado novamente com o eventual crime conexo. É tudo muito lógico.

Destarte, um crime consumado em São Paulo ou no Rio de Janeiro, ainda que tenha alguma relação com a corrupção no âmbito da Petrobrás S.A., não tem por que ser processado e julgado pelo juiz Dr. Sérgio Moro, em novo processo. Este crime, ainda que fosse conexo com o primeiro, o qual determinou a competência deste magistrado, não mais poderá ser processado e julgado juntamente com aquele originário. Vale dizer, não cabe ampliar a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para processar e julgar crimes consumados fora de sua seção judiciária. Tal ampliação de competência não se justifica, na medida em que não mais é possível a unidade de processo e de julgamento conjunto. É até mesmo intuitivo.

Por derradeiro, não me venham falar em prevenção. Tal critério de fixação (não modificação) de competência somente tem pertinência quando as diversas infrações conexas (todas elas) já forem da competência do juízo, foro ou justiça. Isto está expresso no artigo 83 do diploma processual penal, não sendo a hipótese da “Lava-Jato”, na maioria dos casos. Vale a pena transcrever o texto legal:

Art. 83: Verificar-se-á a competência por prevenção toda a vez que, concorrendo dois ou mais juízes IGUALMENTE COMPETENTES ou COM JURISDIÇÃO CUMULATIVA, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou queixa”.

Note-se que, se um juiz incompetente, segundo os critérios legais acima, decretar uma prisão temporária ou preventiva, ele não se torna por isso competente por prevenção. Na verdade, ele seria sim incompetente para decretar tal prisão cautelar.

Em resumo: se não mais é possível o julgamento conjunto do crime originário da competência do juiz Sérgio Moro (pois já foi julgado separadamente) com os posteriores crimes, ainda que fossem conexos, não há mais motivo para ampliar a sua competência, em violação ao princípio constitucional do “juiz natural”, pois a nossa carta Magna dispõe expressamente que “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, (art.5º., inc. LIV, Constituição Federal). Cuida-se de uma garantia individual e fundamental.

Por tudo isso, julgo equivocado o Tribunal de Justiça de São Paulo, que decidiu pela competência da 13ª. Vara Federal de Curitiba para processar e julgar o ex-presidente Lula, relativamente ao “caso do apartamento  triplex de Guarujá”. Cabe uma derradeira advertência. O órgão jurisdicional tem que examinar a sua competência TENDO EM VISTA A IMPUTAÇÃO FEITA NA DENÚNCIA. Não pode o juízo entender que o fato é distinto do que consta da acusação para se declarar competente ou não. Isto é até mesmo uma consequência do sistema processual acusatório. Aqui está o segundo grande equívoco do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Caso o órgão jurisdicional entenda que a imputação está em total desacordo com a prova constante do inquérito policial, deverá rejeitar a denúncia com base no art. 395, inc. II, do Cod. Proc. Penal, por falta de suporte probatório mínimo daquilo que foi objeto da imputação feita na denúncia (condição para o regular exercício do direito de ação).

Desta forma, na medida em que a denúncia dos promotores de São Paulo não descrevem qualquer conexão com crimes da competência da justiça federal, o certo seria o juízo da 13ª. Vara Federal de Curitiba suscitar o conflito negativo de competência. Entretanto, não acredito que o faça...

Finalmente, permanecidos os equívocos acima apontados, há de se indagar sobre a atribuição do órgão de atuação do Ministério Público paulista, que teria oferecido a denúncia perante o juízo incompetente... (pressuposto processual de validade da relação jurídica processual).

 

Rio, inverno de 2016.


Imagem Ilustrativa do Post: CEI2016 - Comissão Especial do Impeachment 2016 // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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