Coordenador: Marcos Catalan
Ressemantizar o direito é dar novos contornos ao estático evidenciando a dinamicidade social, pois o direito é ritmo de vida. No ordenamento jurídico a redução dos fenômenos à norma ocorre com a apreciação deste direito por sua teoria geral, qual seja a teoria do fato jurídico, responsável, com especial enfoque nas relações de consumo, por eliminar as manifestações de vontade que não condizem com os preceitos do CDC e afrontam a Constituição. Ressalta-se que as duas normas mencionadas foram responsáveis pela ampliação interpretativa do direito privado, fazendo com que a consideração clássica da teoria do fato jurídico fosse também necessária. A proposta, dessa forma, é considerar as mudanças que o CDC traz ao direito ao readequar as relações intersubjetivas a partir de uma interpretação hermeneutizada adequada, posta por uma leitura atualizada da teoria do fato jurídico.
Muito se escuta sobre a importância do aprendizado e aplicação da teoria do fato jurídico para a boa compreensão do direito, mas pouco se aprofunda sobre a teoria durante a formação do estudante, o qual no futuro exercerá atividade jurídica e terá como material de trabalho a redução dos fatos da vida (seja dos clientes ou da sociedade quando do exercício da função pública) ao – mundo – jurídico. O desconhecimento dos pressupostos teóricos incide em uma má aplicação/incompreensão do direito, fazendo com que se multiplique as distorções quando da consideração dos sentidos postos pela Constituição, pelo CDC e pelo próprio caráter existencial do humano, que perpassa a normativa estática apregoada ao que é lei e reside no espaço dinâmico para alcançar a adaptação social.
A teoria do fato jurídico, sem maiores complexidades, inicia com a incidência da norma aos fatos, seguida pela verificação dos planos da existência, da validade e da eficácia. No que importa ao direito do consumidor, com maior frequência cuidará de retirar do mundo jurídico aquelas manifestações de vontade eivadas por algum vício, cujo grau do dano causado pela invalidade será classificado segundo seu efeito no mundo, anulável ou nulo, sendo o segundo o mais grave para o direito.
Posta a necessidade de consideração da teoria do fato jurídica, ressalta-se que estrutura clássica da teoria introduzida por Pontes de Miranda apregoa-se à pandectista alemã e francesa, voltadas a uma visão positiva do significado do direito, marcadas pela matematização do direito (norma incide sobre fatos relevantes com consequências previstas e sem possibilidade de expansão através da interpretação). Por esta consideração o direito reduzir-se-ia à regra – tornando-se norma, mais tarde, com Kelsen.
Ocorre que conforme muito bem demonstram diversos estudos de eminentes sociólogos, o direito existe antes da norma, o que faz com que seja repensada a teoria em seu sentido clássico. Não é por outra razão que do nascimento da teoria do fato jurídico, somente 6% da população utilizava do direito, dado que este respondia somente à classe dominante, cenário que veio a mudar somente posteriormente, com a constitucionalização do direito, onde restou acrescido ao Direito valores como justiça social e valores sociais, chamado “sociologismo do direito”. Busca-se justiça social para a massa que não era atingida pelas ideologias liberais da época, como resposta ao velamento do sujeito.
Nesse sentido, em seu livro de sociologia, menos conhecido que suas obras dogmáticas, Pontes faz esboços do que acredita ser o direito, qual seja a partir de um ponto intermediário entre o estático e dinâmico – para que assim ocorra a segurança social, diferente da segurança jurídica que a sociedade apregoou-se. Acredita-se que esta consideração de Pontes faz com que seja possível uma releitura da teoria do fato jurídica clássica para outra que absorva de forma mais ampla a dinâmica do existir. Com a análise, a sociedade é o direito e alimenta o direito.
A ressignificação tem influência direta no dualismo direito público e privado (ocorrendo a aproximação de ambos), dado que nasce a teoria do fato jurídico com amplo caráter privado, cenário alterado com a constitucionalização do direito, pois a teoria absorve fluxos das correntes publicistas e sociais do direito. O direito não é mais de uns, o direito é de todos. Os paradigmas do direito passam por um período de transição do antigo paradigma científico cartesiano, que vincula a realidade é lei num simples silogismo, pela complexidade social, que requer desse sistema muito mais do que o silogismo. Requer uma sociedade que pense e repense suas estruturas e que isso tenha reflexo imediato e direto no direito.
A partir deste cenário, com o efeito da publicização e socialização do direito, o CDC, que expressa em seu fundamento valores profundos da constitucionalização do direito, faz com que pulverize o direito a todos em uma sociedade que tem uma relação consumo-trabalho exageradamente próxima. A sociedade do consumo gera indiretamente no consciente inconsciente coletivo arquétipos de necessidades, que com a aceleração das relações sociais e de suas possibilidades de relação fortalecem uma angústia apregoada ao existir e aprisiona o ser a uma objetificação de si ao mundo. Nesse sentido, se a sociedade exige que consumamos, é necessário que o direito efetive tutelas, a fim de evitar amplas lesões.
Por estas razões muito tem influenciado na reestruturação da teoria do fato jurídico o direito do consumidor, que de uma mera aplicação que busca a proteção do consumidor cria uma hermenêutica ampla e que vem a absorver junto as estruturas do direito civil em sua teoria do fato jurídico que vem a ser reformulada em sua base e estrutura rígidas. O código civil, mesmo que posterior à Constituição, ainda carrega consigo um grande conservadorismo. O CDC, ao reger as relações privadas, supera o código civil em muito dos seus dispositivos, com especial atenção às possibilidades de invalidade da norma, pois o CDC institui o princípio geral da boa-fé objetiva – causa de nulidade – e possui prazos prescricionais e decadencais mais amplos que o Código Civil. Ainda, o CDC absorveu nos seus sentidos a hipossuficiência e a transindividualidade, o que o código civil não havia sido capaz de realizar, bem como foi capaz de tutelar tanto a nível individual quanto a nível coletivo.
A releitura da teoria do fato jurídico exige que conheçamos a clássica estrutura do direito, bem como saibamos que na atualidade não é possível que essa estrutura do direito corresponda efetivamente às complexidades sociais. Assim, o CDC possibilita uma ressemantização da normativa e ampliação da interpretação pela teoria do fato jurídico, projetada em uma reestruturação e reformulação do direito civil em institutos amplamente relevantes à vida do direito e do ser.
Bibliografia
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