O Direito e a técnica e o Direito enquanto técnica em interfaces com o Direito do Trabalho

25/04/2017

Por Guilherme Wünsch – 25/04/2017

O desmedido crescimento da técnica tornou-se uma das preocupações do homem do século XX. A ameaça da técnica desmedida e independente pode constituir-se em um problema à medida que se o homem já não domina a técnica que criou, mas é dominado por ela, pode destruir-se a sim mesmo mediante suas obras. Em tal contexto, referem Stork e Echevarría que o desenvolvimento da maquinaria técnica torna a ação do homem menos relevante até torná-lo um objeto desta cadeia. O homem se converte em um instrumento de produção, sendo transformado por um processo de possibilidades técnicas. É em tal relação que o conflito entre o homem e a tecnologia se desvela em sua crueza.[1]

É comum ouvir-se falar que o homem vive atualmente na era tecnológica. Convém, todavia, apresentar algumas especificações sobre tal terminologia, mormente pautando-se pelos estudos de Álvaro Vieira Pinto, para quem , o conceito de era tecnológica encobre, ao lado de um sentido sério, outro tipicamente ideológico, em que se faz crer que hoje se vive a felicidade de se estar nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade.[2]A abordagem do autor foca no estudo do homem dentro de seu processo de hominização, a partir de dois preceitos fundamentais: o primeiro, que trata da aquisição, pela espécie humana, da capacidade de projetar e o segundo é a conformação de um ser social, condição necessária para que se possa produzir o que foi projetado. Destes dois conceitos, surge uma definição filosófica de técnica como a arte de fazer surgir sempre algo novo.

Tal definição é proposta pelo autor em análise a partir do seu apontamento de que o problema filosófico da técnica é a consciência viva dos efeitos da acumulação tecnológica, sua multiplicação e grandiosidade dos produtos. Como alude Álvaro Vieira Pinto, com o advento da Revolução Industrial e do modo capitalista de produção, as técnicas, gerando uma produção abundante e fortalecendo um poder econômico nas mãos de uma fração social, tornaram-se objeto de consideração entre otimistas que enxergavam a possibilidade da realização de melhores condições de vida para a humanidade, assim como por aqueles que na procura de causas dos males atormentadores da maioria dos homens, começaram a “investigar o significado dos maquinismos e das técnicas a fim de descobrir se não seriam acaso eles os agentes da patente miséria do povo”.[3] Assim, se reconhece que em todas as ações humanas há uma técnica enquanto manifestação da vida, eis que a capacidade humana de invenção, do qual a técnica é a sua manifestação exterior, define um produto de vida, que existe no homem.

A idade da técnica modifica o conceito de meios de comunicação eis que não coloca mais os indivíduos em contato com o mundo, mas com a representação midiática do mundo, que torna “próximo o longínquo, presente o ausente, disponível aquilo que, de outra forma, estaria indisponível”.[4] Com os milhões de imagens e vozes que envolvem a atmosfera torna-se impossível se falar em uma comunicação na primeira pessoa, pois os meios de comunicação não são mais ‘meios’ à disposição do homem, mas sim verdadeiras experiências que o modificam. Por fim, a era tecnológica modifica o conceito de psique, eis que o próprio conceito de mundo é modificado pelos meios de comunicação, tornando o indivíduo incapaz de compreender o que verdadeiramente significa viver na idade da técnica, especialmente quando há a necessidade de potencializar-se as faculdades intelectuais sobre as emotivas, para se observar a “cultura objetivada nas coisas que a técnica exige, em detrimento e à custa daquela subjetiva dos indivíduos”.[5]

É neste sentido que Alain Supiot afirma quando considera que nessa diferenciação, opõe-se a concepção transcendental ou jusnaturalista que vê no Direito a expressão de princípios universais e intemporais, e, de outro, uma concepção instrumental, que vê no Direito uma pura técnica. Como refere o autor em análise, para uns, o problema está em submeter as técnicas aos grandes princípios que o Direito revelaria, ao passo que, para outros, o Direito seria como que uma carroça, capaz de transportar qualquer conteúdo normativo que seja, de sorte que tudo que é tecnicamente realizável deveria acabar sendo juridicamente permitido.[6]

É interessante observar que Alain Supiot considera que essa relação entre Direito e técnica se relaciona com o Direito do Trabalho, sendo umas de suas representações mais precoces e claras. Dividida essa relação em três tempos, tem-se, em um primeiro momento, a Revolução Francesa com o assentamento das bases jurídicas da economia de mercado e da revolução industrial. Já no segundo momento, tem-se o maquinismo industrial como fonte das condições de trabalho desumanas e degradantes, com a exploração do trabalho da mulher e das crianças, e, em um terceiro momento, tem-se o desenvolvimento do Direito do Trabalho servindo aos países industriais como forma de limitação da sujeição do ser humano às ferramentas, com a sua proteção física, fazendo do trabalho um instrumento de bem-estar.

Seja em relação ao Direito do Trabalho ou a demais ramos do Direito Privado, é inegável que a relação entre Direito e técnica não ratifica apenas uma relação pautada pela conjunção ‘e’. Não se trata de aqui estudar apenas o Direito e a Técnica, mas sim constatar que o Direito é parte da própria técnica. O Direito serve como forma de proteger o “homem das fantasias de onipotência geradas pela potência das máquinas”.[7] O que se verifica é a existência de questionamentos levantados pelas novas tecnologias, que provocam o Direito, sem fazê-lo desaparecer neste cenário, senão pelo contrário, a provocação da técnica ao Direito evidencia que ele se encontra atrasado em definições relativamente ao progresso técnico e que não pode querer submeter os avanços científicos a princípios jurídicos de caráter imutável. Agora já não mais falando em Direito e técnica, mas sim Direito enquanto técnica, desvela-se a necessidade de tornar o seu conteúdo um reflexo dos avanços tecnológicos a partir de valores humanos.

Eis assim a possibilidade de afirmação da técnica como um horizonte último a partir do qual se descobre todos os campos da experiência, não no sentido procedimental, mas como uma condição que decide o modo de se fazer experiência. Ou seja, a mudança daquela condição homem-sujeito e técnica-instrumento para a técnica que dispõe da natureza e do ser humano, que agora encontra-se nesse horizonte já desvelado pela técnica, que decide a forma como ele irá perceber, pensar, sentir e projetar as coisas.

Resta claro que na sociedade tecnocientífica múltiplas questões se colocam e evidenciam interrogações que não se bastam apenas no campo legislativo, conquanto dimensionem a insuficiência de uma mera aplicação normativa aos dilemas colocados pelos avanços biotecnológicos. Trata-se da busca de um ponto convergente, em que Direito e Tecnologia consigam estabelecer um diálogo que assuma, como principal, eixo condutor, a responsabilidade ética humana sobre os seus atos.


Notas e Referências: 

[1] STORK, Ricardo Yepes. ECHEVARRÍA, JavieAranguren. Fundamentos de antropologia: um ideal de excelência humana. Tradução: Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2005. p.126. Além da relação apresentada pelos autores, importa referir, a título de informação, que estes também utilizam a terminolgiatecnocracia como o poder de uma técnica que aprisiona o homem e à atitude prepotente de se fazer uso dela contra a naturezxa. É um termo que designa a técnica como força dominadora, sendo um funcionamento autônomo do plexo de instrumentos que não reconhece a pessoa singular. É um uso excessivo da técnica po parte da vontade de poder, a qual usa a hegemonia da ação esquecendo-se das atitudes de respeito, ajuda ou amor. Com a tecnocracia, aparece a pretensão de converter a natureza em um puro objeto de domínio a serviço dos ditames humanos.

[2] Para Álvaro Vieira Pinto, esta impressão é ocasionada pela existência de diversos sofismas. Um deles consiste na conversão da obra técnica em valor moral. A sociedade capaz de criar as estupendas máquinas e aparelhos atualmente existentes, desconhecidos e jamais sonhados pelos homens de outrora, não pode deixar de ser certamente melhor do que qualquer outra precedente. As possibilidades agora oferecidas aos possuidores dos recursos para a conservação da vida, a aquisição de conforto e meios para ampliar a formação cultural não encontram paralelo no passado. Logo, esta época é superior a todas as outras, e qualquer indivíduo hoje existente deve dar graças aos céus pela sorte de ter chegado à presente fase da história, onde tudo é melhor que nos tempos antigos. Com esta cobertura moral, a chamada civilização técnica recebe um acréscimo de valor, respeitabilidade e admiração, que, naturalmente, reverte em benefício das camadas superiores, credoras de todos esses serviços prestados à humanidade, dá-lhes a santificação moral afanosamente buscada que, no seu modeo de ver, se traduz em maior segurança. PINTO, Álvao Vieira. O conceito de tecnologia. v.1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p.41.

[3] PINTO, Álvao Vieira. O conceito de tecnologia. v.1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p.143.

[4] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica.Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p.21.

[5] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica.Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p.22.

[6] SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução: Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.140.

[7] SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução: Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.144. Como refere Supiot, o Direito cumpre uma função dogmática, de interposição e de proibição. Essa função confere-lhe um lugar singular no mundo das técnicas:a de uma técnica de humanização da técnica.

GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica.Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006.

PINTO, Álvao Vieira. O conceito de tecnologia. v.1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

STORK, Ricardo Yepes. ECHEVARRÍA, JavieAranguren. Fundamentos de antropologia: um ideal de excelência humana. Tradução: Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2005.

SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução: Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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