O direito de não nascer e as fronteiras entre os conceitos de pessoa e vida no caso Nicolas Perruche

16/11/2015

Por Guilherme Wunsch – 16/11/2015

Na data de 17 de abril de 1982 o médico da família Perruche constatou que a filha do casal, então com quatro anos de idade, apresentava uma erupção cutânea tipicamente de rubéola. Em 10 de maio de 1982, a Senhora Josette, de 26 anos, também apresentou erupções semelhantes às da filha, juntamente com o quadro febril e de nós linfáticos, que são os sintomas da rubéola. A partir disso, em 12 de maio de 1982 uma primeira amostragem obtida a partir de exames realizados na Senhora Josette não confirmou ser caso da doença. Entretanto, na segunda amostragem houve a confirmação de ser caso de rubéola. E, nesta mesma oportunidade, verificou-se que a mãe de Perruche estava grávida.

Eis assim que, em 14 de janeiro de 1983, deu à luz Nicolas Perruche que apresentou todas as manifestações da Síndrome de Gregg, como graves distúrbios neurológicos, surdez bilateral, retinopatia – ausência de visão no olho direito e glaucoma – e doenças cardíacas, envolvendo a assistência permanente de uma terceira pessoa. Naquele então, afirmou-se ser indiscutível que a condição da criança foi a conseqüência da rubéola congênita contraída na gestação. Por conta desse cenário, o médico e o laboratório que realizou os exames na Senhora Josette foram condenados pelo Tribunal de Cassação da França pelo erro cometido quando da análise da primeira amostra que não havia diagnosticado a rubéola na mãe de Nicolas. Assim, ambos suportaram a condenação solidária com suas respectivas seguradoras para pagar um subsídio de quinhentos mil francos em relação aos danos pessoais sofridos.[1]

O acórdão Perruche possibilita o debate justamente entre o conflito de uma vida santificada e de uma vida digna. Em outras palavras, é a dicotomia entre uma bioética que defende a vida como um caráter absoluto, logo, indisponível, e aquela que defende a qualidade de vida, ou seja, a vida que merece ser vivida, cuja escolha caberia ao próprio indivíduo e às suas capacidades de escolha autônoma.  A decisão tomada pela Corte de Cassação Francesa reconheceu que dès lors que les fautes commises par um médecin et um laboratoire dans l’exécution des contrats formés avec une femme enceinte avaient empêché celle-ci d’exercer son choix d’interrompre as grossesse afin d’éviter la naissance d’un enfant atteint d’um handicap, ce dernier peut demander la réparation du préjudice résultant de ce handicap et cause par les fautes retenues.[2]

O caso em discussão é emblemático porque permite discutir os limites e as possibilidades dos avanços tecnológicos e biotecnológicos no sentido da determinação da própria natureza humana. Veja-se que um aparente simples erro médico, que não determinou corretamente o estado de saúde da senhora Josette, impediu a interrupção daquela gestação. A questão da técnica não está na coleta do material genético da mãe de Perruche que permite atestar alguma doença, ela está na possibilidade de impedir a continuidade da gravidez a partir do momento em que se conclui, ora, se a mãe está com rubéola, a chance de o bebê nascer com graves deficiências é praticamente total.

O Direito Privado contemporâneo vem acompanhado de diversos adjetivos. Diz-se constitucionalizado, publicizado, repersonalizado, despatrimonializado. Pois, é essa última característica que interessa para a abordagem deste capítulo. Sucintamente, é preciso ter a idéia de que a despatrimonialização significa que o legislador não está mais limitado à disciplina das relações patrimoniais. Na esteira do texto constitucional, que impõe inúmeros deveres extrapatrimoniais nas relações privadas, tendo em mira a realização da personalidade e a tutela da dignidade da pessoa humana, o legislador mais e mais condiciona a proteção de situações contratuais ou situações jurídicas tradicionalmente disciplinadas sob ótica exclusivamente patrimonial ao cumprimento de deveres não patrimoniais.[3]

Como bem propõe Perlingieri, individua-se uma tendência normativo-cultural; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim em si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).[4] Trata-se da passagem de uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores existenciais.

Partindo dessa idéia, já se pode questionar o significado de uma decisão da lavra daquela exarada pela Corte de Cassação Francesa no caso Nicolas Perruche à luz do ordenamento jurídico brasileiro, se ele significa a real proteção à dignidade da pessoa humana ou se ela nada mais significa uma valoração patrimonial ao corpo (que, no caso, seria o corpo imperfeito, resultante de um nascimento errado, uma vida que não merece ser vivida).

No século XIX definiu-se, pela primeira vez, o corpo como coisa, em seu sentido jurídico moderno, incluindo-o entre as coisas fora do comércio. Fechara-se a porta para a comercialização do corpo, mas permaneceu aberta a entrada do corpo para o jogo de trocas de titularidades, ou seja, o seu trânsito intersubjetivo, por meio de relações jurídicas.[5]

Mas a intersubjetividade do corpo, em seu sentido fático, só veio a se tornar viável na segunda metade do século XX. O Direito não precisou aguardar os avanços tecnológicos do século passado para se ver diante do problema da transferência da titularidade de elementos que, embora ligados ao ser humanos e a sua expressão social, apresentavam-se materialmente destacados do sujeito.[6]

O tratamento jurídico do corpo humano evidencia que ele possui um significado, dotado de sentidos e comportando correlações construídas pelas novas tecnologias. Ou seja, o corpo não é apenas um elemento do indivíduo, mas do ambiente.[7] Logo, o homem é percebido como indivíduo e integrante da espécie humana, que comunga de identidades e potencialidades genéticas que exigem o respeito à sua autonomia, mas indicam a necessidade de limitação da sua liberdade jurídica de disposição corporal, o que se assemelharia à leitura contemporânea dos direitos da personalidade, especialmente quando se considera que a indisponibilidade de tais direitos seria relativizada na leitura civil-constitucional deste instituto jurídico.

Se o ordenamento jurídico modifica-se para colocar no ser humano, no homem, a sua razão de ser significa que institutos clássicos como contrato, propriedade e família, os pilares do Direito Civil devem ser relidos à luz dos dispositivos constitucionais, colocando sempre os interesses da pessoa em primeiro lugar, para que ela não se torne uma mercadoria, mas sim o verdadeiro protagonista das relações jurídicas. E isso possui total influência sobre a questão do desenvolvimento científico: ora, a uma terceira pessoa é delegada a função de descoberta de novas técnicas capazes de melhorar a vida humana, o que deve, no mínimo, atentar para o risco de uma instrumentalização da vida humana, produzida sob condições e em função de preferências e orientações axiológicas daqueles terceiros.[8]

Mais do que isso, quando a senhora Josette sujeitou-se ao exame que erroneamente não detectou a rubéola, submeteu-se a um controle, a um poder detido pelos médicos. E, num segundo momento, sujeita-se ao poder dos juízes da Corte para assegurar uma indenização pelo direito de não nascer do seu filho Nicolas. Logo, a vida humana, ao menos no caso Perruche, constantemente está nas mãos de um terceiro, e eis aí o risco de patrimonializar o corpo humano. Caso ainda se queira polemizar mais um aspecto, poder-se-ia dizer que, da mesma forma que a mãe de Nicolas estava sujeitada ao poder de terceiros, Perruche estava sujeitado ao poder dela, quando tornara-se sujeito jurídico representado de uma relação processual indenizatória, basicamente uma cobrança pela falha na execução contratual, grosso modo o que simboliza a decisão da Corte Francesa.

Terceiras pessoas decidiram quanto valia o corpo mal nascido, a vida indigna de Perruche, e isto nada mais é do que o Direito enquanto instrumento de poder e regulação social diante das (in)suficiências que o desenvolvimento da biotecnologia origina. E assim a decisão simbolizaria uma pretensa disponibilidade da vida enquanto direito da personalidade. E, como diz Habermas, indisponível não é apenas aquilo que a dignidade humana tem. A nossa disponibilidade pode ser privada de alguma coisa por bons motivos morais, sem por isso ser intangível no sentido dos direitos fundamentais em vigor de forma irrestrita e absoluta.[9]

Por essas razões, é que Habermas prossegue afirmando que a vida humana desfruta de dignidade e exige respeito, pois já que se pode recorrer ao termo dignidade é porque ele cobre um amplo espectro semântico e apenas evoca o conceito mais específico da dignidade humana.[10]

O problema em se buscar descobrir o que significaria a patrimonialização do corpo humano dialogando com um Direito que formalmente respeita vida e pessoa reside justamente em algo que até já se debateu anteriormente, a dificuldade da cultura filosófica e jurídica contemporânea em definir o que é a pessoa humana, dotando-a de dignidade. Vicente Barreto aponta que a dignidade humana enquanto idéia-valor necessita para a sua compreensão e aplicação racional nos sistemas jurídicos que se recuperem os seus fundamentos ético-filosóficos para que possa exercer a função que dela se espera no Estado Democrático de Direito. Falar da dignidade humana sem que situe esta idéia no quadro da antropologia filosófica e da ética resulta lançar o valor que ela representa no vazio dos discursos políticos e jurídicos.[11]

No sentido ontológico da pessoa humana ela se apresenta como um ser racional e consciente, e, por essa razão, é sujeito de direitos e deveres permitindo que se elabore um sistema de normas legais cujo centro é a responsabilização do ser em vista das manifestações de sua livre vontade. A determinação de tal responsabilidade refere-se à própria definição sobre o que é a pessoa humana, imputável em virtude de sua ação perante terceiros.

Se é tarefa complexa definir o que é pessoa, mais complexa ainda será a missão de definir a responsabilidade da pessoa pelos seus atos, residindo neste aspecto mais uma das dificuldades encontradas para determinar o real significado do caso Nicolas Perruche, até porque o Direito não encontra uma resposta para esta questão, que é de natureza moral. Dada essa insuficiência jurídica, Barreto novamente explica que precisamente, por não termos respostas claras e definitivas, na ciência biológica, na doutrina e na legislação jurídica, é que a reflexão filosófica é chamada a participar do debate.[12]

O Direito, enquanto instância de decisão, precisa compreender o que é a pessoa humana e de como ao lado de sua natureza ontológica existe a sua realização existencial (dimensão de dignidade). Deve ele exercer a função de assegurar o tratamento da pessoa dentro dos parâmetros normativos a serem definidos na legislação e que refletirão em uma concepção ético-filosófica do ser humano e da sociedade, já que a bioética, da mesma forma, não encontra as respostas para a complexidade, mesmo que ambos não possam olvidar de uma reflexão filosófica sobre a pessoa humana, até para que não impossibilitem a sua plena realização individual e coletiva.

Diante de todo o cenário é preciso questionar, assim como faz Francesco Donato Busnelli, de quem é o corpo que nasce.[13] Apresentam-se diferentes elucidações acerca da qualificação proprietária do corpo. De início, o corpo que nasce é de quem o fabrica. Discorre Busnelli que nesta leitura o corpo que nasce é de quem o fabrica para realizar um desejo próprio e/ou de outrem. Ou, ainda, poderia evidenciar o aspecto do poder de fabricar crianças, destinado às mulheres como uma nova fonte de atividade produtiva. Logo, o corpo que nasce é de quem o fabrica para vendê-lo, ou de qualquer forma, cedê-lo a outros. Em terceira hipótese, o corpo que nasce é de quem o escolhe, fabricando-o, se possível, a imagem e semelhança sua ou de outrem.[14]

Outra leitura permite referir que o corpo que nasce é uma pessoa abstrata dissociável do ser humano. Assim, o corpo que nascerá ou não nascerá é de uma pessoa, perfeitamente dissociável do ser humano nascente e conceitualmente distinguível daqueles que o geram. Em outras palavras, o corpo nascido é uma pessoa meramente abstrata, inventada para ser conectada a um direito, igualmente abstrato, a não nascer, e destinada a se dissolver com o nascimento da pessoa física, a qual, nascendo deficiente, poderá agir em juízo para requerer danos derivados da violação do direito ostentado através do seu duplo abstrato.[15] O corpo que nasce representa, portanto, uma pessoa abstrata, mesmo que, filosoficamente, ela se apresente como real.

Esta segunda acepção para a expressão corpo que nasce parece se aproximar bastante do caso Nicolas Perruche, já que garante justificar um direito de não existir, um direito de não fazer nascer vidas infelizes, merecendo-se, por isso, o pedido de ressarcimento do dano a favor do ser nascido com deficiência. Então veja-se como é possível sim encontrar posicionamentos que dissociam a pessoa de seu corpo, estabelecendo a este último um valor, não num viés axiológico, mas compensatório, monetarizado.

Uma interpretação desta natureza possibilita, de igual forma, considerar que o corpo que nasce é uma coisa, porque seria independente do seu sujeito. Essa acepção está ligada a uma tutela real do embrião, significando uma proteção da vida anterior ao nascimento como valor de interesse geral e constitucional, independentemente do fato de o sistema jurídico se esforçar na direção de uma qualificação em sentido subjetivo. O corpo que nasce visto como um sujeito independente é um indivíduo que deve ser considerado titular de um direito a ser abortado, qual reivindicação própria, predominante sobre aquele da mãe-tutora, se as enfermidades e sofrimentos que possam vir a ocorrer prevalecessem sobre o valor de sua existência.[16]

Para Bourguet, o corpo não é pensado como sendo originariamente do sujeito, mas como um objeto apropriado, assimilado, de tal forma que a encarnação não difere fundamentalmente da apropriação de uma coisa. E prossegue, a exemplo das coisas, ou antes, muito mais ainda que as outras coisas, o corpo é transportado para a esfera da subjetividade como se não fosse nativamente dessa esfera. Determinando-se dessa maneira a relação entre o corpo e a pessoa, ele passa a existir em uma alteridade originária insuperável.[17] Haveria uma coisa da qual alguém é proprietário, que produz coisas, das quais alguém também é o proprietário.

E Brunello Stancioli considera que a importância do corpo para a determinação da pessoa ainda é essencial, porquanto haja pertinência em rever o papel da corporeidade na determinação da pessoa, sob a ótica da ciência contemporânea. O autor entende que é possível conciliar a noção de pessoa, como construção intersubjetiva e cultural, com um referencial teórico compatível com os avanços neurobiológicos e fisiológicos. Assim, afirma que uma base sensível para a pessoa humana é fundamental, pois não há como pensar a pessoa humana em termos quase angelicais, deslindada de qualquer menção a um organismo, seja ele biológico, bioquímico, ou, de forma mais complexa, biofísico-químico.[18]

Na proposta cunhada por Stancioli percebe-se que o corpo seria algo passível de manipulação em vista dos avanços biotecnológicos, eis que as intervenções médicas testam o organismo humano a níveis de manipulação extremos. Por isso, como já fora referido, ele considera que a pessoa é um ser local e global, que tem identidade, direitos de personalidade, que pode renunciá-los, mas ser pessoa nunca será possibilidade a ser esgotada.

Percebe-se, dessa forma, que a dimensão corpórea do ser encontra diferentes modelos de visão, até porque não há voz uníssona no sentido de se estabelecer o que é a pessoa e se ela pertence a um alguém e se pode ser reduzida ao mero determinismo biológico. No plano teórico, o acórdão da Corte Francesa parece não estar vinculada à dimensão corpórea da pessoa, buscando o respeito á sua dignidade, especialmente quando considera que il nous semble donc possible de conclure que l’appréciation du droit qu’à un enfant de demander la réparation du préjudice consécutif à un handicap d’origine endogène ne peut se faire sur le terrain simpliste, sinon erroné, du lien de causalité envisagé biologiquement (...).C’est en réalité sur le terrain du principe fondamental du respect de la personne humaine que pourrait se trouver, le cas échéant, la justification d’un refus de réparer le préjudice de l ’enfant. Là est le véritable coeur de la difficulté.[19]

Ocorre que a própria Corte entendeu que o princípio do respeito à pessoa humana é, de alguma forma, questionado quando se aceita a ideia de se compensar a deficiência que afeta uma vida, o que justificaria, inclusive, negar a indenização. Entretanto, ao continuar referindo seus argumentos, a Assembléia Plenária considerou que, quanto ao argumento de admitir o dano à criança, é preciso descobrir onde está o verdadeiro significado do respeito pela pessoa humana.

Eis assim que o prejuízo a ser reparado é aquele resultante da deficiência que trará para a criança uma vida de sofrimento, cargas, restrições e custos de todo o tipo. Neste sentido, il est d’ailleurs possible de relever dans certains pays une évolution sur le terrain de l’action dite en "Wrongful life" (c’est à dire l’action engagée par ou pour l’enfant en réparation de son propre préjudice, l’action en "Wrongful birth" ne concernant que le préjudice de la mère et/ou du père).[20] Portanto, a Corte de Cassação Francesa reconheceu o direito que a mãe de Nicolas Perruche possuía de ser informada sobre sua saúde e da criança a qual ela deu à luz, o que não ocorreu diante do erro cometido pelo médico da família e pelo laboratório responsável pelo exame não realizado adequadamente.

Assim, reconheceu o nexo de causalidade nas falhas cometidas, pois, sem elas, os danos poderiam ter sido evitados e seria melhor que a criança não viesse ao mundo, ou seja, não nascesse. O dano teria sido evitado, removendo-se o embrião deficiente, impondo-se uma obrigação de resultado ao médico que se consubstancia no nascimento de uma criança saudável.

Os pais de Nicolas foram suprimidos, com a negligência médica, do direito de interromper a gravidez ou até mesmo de se prepararem psisologicamente e fisicamente para acomodar uma criança deficiente, ao passo que Nicolas não teve escolha senão nascer deficiente, sem o poder de impedir o seu nascimento. Logo, o dano real reconhecido pela Corte são as várias doenças e condições gravemente incapacitadoras de uma vida normal, agravadas pela falta de cuidados paliativos, resultantes do erro de diagnóstico médico.

Assim, a criança é titular de um direito que lhe foi violado, o direito de não nascer, em função de sua vida errada, porque o seu nascimento é uma lesão que em si mesma viola o respeito à dignidade. O interesse em Perruche nascer não era legítimo.

Uma decisão como esta do caso Nicolas Perruche provoca inúmeos posicionamentos. Alex Gosseries, por exemplo, pergunta por queo acórdão Perruche é inadequado. E diz que dans le cas de type Perruche, il y a peut y avoir différentes raisons de contester l'application de la responsabilité pour faute conduisant à la réparation d'un dommage à l'enfant. L'on peut s'interroger en fait sur la realité d'une faute. L'existence d'un lien de causalité qui soit suffisamment direct pour satisfaire aux conditions de l'article 1382 C. Civ. peut être mise en doute. L'on peut aussi douter de la possibilité d'évaluer l'ampleur du dommage à l'enfant et de la réparabilité de ce dommage. Enfin, l'on peut mettre en cause la possibilité même d'un dommage à l'enfant dans ce typ de cas. C'est cette dernière position que nous développerons ici. (...) Par contre, nous défendrons l'idée selon laquelle il est incorrect d'affirmer que ce handicap est constitutif d'un dommage.[21]

O que Gosseries defende, na verdade, é que, em geral, o próprio indivíduo está em condições de avaliar a sua existência, para que não se desencadeie na sociedade um eventual direito a morrer e, assim, o caso Perruche quando debate a questão do nível de vida digna de ser vivida il n'a été prétendu que leurs vies se situaient en dessous d'un tel seuil de dignité, ce qui fait que le concept de dommage, même ainsi étendu, y est inapplicable.[22]

Por provocar reações diversas e ser alvo de críticas quanto à decisão da Corte de Cassação Francesa foi promulgada a Lei nº 2002-303, de 4 de março de 2002, relativa aos direitos de pacientes e á qualidade do sistema de saúde.[23] Logo no artigo 1º ficou estabelecido que nul ne peut prévaloir d'un préjudice du seul fait de sa naissance, ou seja, ninguém pode reclamar por danos em razão apenas do seu nascimento.

Logo, a norma estipulou que a pessoa nascida com uma deficiência devido à  negligência médica pode obter indenização por danos quando o ato ilícito tenha sido causado diretamente, ou quando a deficiência tenha se agravado, ou quando não adotadas as medidas adequadas para mitigá-la. É uma clara resposta ao caso de Nicolas Perruche, tanto que a lei é conhecida popularmente como a Lei anti-Perruche.

Destarte, é preciso refletir o que é a vida digna de ser vivida. A decisão Perruche pode ser criticada quando apresenta um direito de não viver uma vida que seria indigna de ser vivida, bem como por significar uma não aceitação ao diferente, tirando daquela vida humana a qualidade de bem jurídico que deve ser protegido. Como diz Agamben, o conceito de uma vida sem valor aplica-se antes de tudo aos indivíduos que devem ser considerados incuravelmente perdidos em seguida a uma doença ou ferimento e que, em plena consciência de sua condição, desejam absolutamente a liberação e tenham manifestado de algum modo esse desejo.


 

Notas e Referências: 

[1] Todas estas referências foram obtidas a partir da leitura do inteiro teor do acórdão referente ao julgamento do caso Nicolas Perruche, disponibilizado na página eletrônica da Corte de Cassação Francesa.

[2] Uma vez que os erros cometidos por um médico e um laboratório na execução dos contratos com uma mulher grávida a impediram de exercer sua opção de interromper sua gravidez para evitar o nascimento de uma criança com deficiência, pode solicitar uma indenização por danos resultantes da deficiência causada por esses erros. (Tradução do autor).

[3] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.p.10.

[4] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.p.33.

[5] GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.65.

[6] Cita Gediel que sob a influência da doutrina dos direitos da personalidade, no tratamento jurídico do corpo humano, é possível identificar três tendências básicas: a primeira admite a unidade e indissociabilidade corporal, e via de conseqüência, inadmite o domínio do homem sobre seu corpo, pois este não é coisa externa á pessoa, e, portanto, sujeita ao seu poder; a terceira admite a mesma exterioridade do corpo ao sujeito, mas retira deste o poder de decisão sobre aquele. Da adoção de uma dessas tendências axiológicas resultam tratamentos jurídicos diversos para regular as relações envolvendo o sujeito e seu corpo. Se acolhida a primeira posição, tem-se absoluta impossibilidade de o sujeito estabelecer relações jurídicas tendo por objeto seu corpo ou parte dele. Se recepcionada a segunda posição, corpo e sujeito são distintos, e este pode dispor da titularidade daquele em favor de terceiro, por meio de relações jurídicas. Se adotada a terceira posição, corpo e sujeito são distintos, mas o sujeito não pode dispor de seu corpo livremente, porque sua liberdade jurídica diz respeito apenas ao estabelecimento de relações sobre bens de cunho patrimonial (coisas). In: idem. p.69.

[7] Idem. p.83.

[8] HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?Tradução: Karina Jannini. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.43.

[9] Idem. p.44.

[10] Idem. p.52.

[11] BARRETO, Vicente de Paulo. A idéia de pessoa humana e os limites da bioética. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal et al. Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro; Renovar, 2003.p.220.

[12] Idem. p.229. Explica o autor que o pensamento contemporâneo precisou buscar outros fundamentos ou classificações para a idéia de pessoa humana, em virtude dessa idéia tornar-se, gradativamente, mais relevante para a cultura política e jurídica do Estado Democrático de Direito.

[13] BUSNELLI, Francesco Donato. De quem é o corpo que nasce? Do dogma jurídico da propriedade à perspectiva bioética da responsabilidade. In: MÖLLER, Letícia Ludwig. COSTA, Judith Martins. (org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 347.

[14] Idem. p.348.

[15] Idem. p.350.

[16] Explica Francesco Busnelli que o direito da criança não nascida a dispor da própria vida vem, assim, vigorosamente defendido e contraposto ao poder dos pais, numa espécie de cruzada contra a chamada ditadura dos indivíduos sãos. O discurso apóia-se, em última análise, sobre a atribuição de uma subjetividade plena à criança não nascida e gira em volta do princípio da paridade de tratamento jurídico. In: idem. p.352.

[17] BOURGUET, Vincent. O ser em gestação: reflexões bioéticas sobre o embrião humano. Tradução: Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p.134.

[18] STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p.88.

[19] Portanto, parece possível concluir que a apreciação do direito de uma criança exigir o direito a uma indenização por danos resultantes de uma deficiência de origem endógena não pode ser feita no chão simplista, senão incorreto, do liame biológico. (...) É realmente no terreno do princípio fundamental do respeito à pessoa humana que pode estar a justificação para a recusa em reparar os danos à criança. Aqui está o verdadeiro coração do problema. (Tradução do autor).

[20] Também é possível identificar uma tendência em alguns países no campo da ação conhecida como “vida injusta” (isto é, as medidas tomadas pelo ou para a criança em reparação do seu próprio prejuízo, a ação de nascimento injusto não se relaciona ao prejuízo da mãe e/ou do pai). (Tradução do autor).

[21] Em um caso do tipo Perruche, ele pode e tem diferentes razões para contestar a aplicação da responsabilidade por culpa levando à reparação dos danos para a criança. Pode-se, na verdade, questionar a realidade de uma falha. A existência de um nexo de causalidade que é suficientemente direta para atender aos requisitos do artigo  1382 do Código Civil pode ser questionada. Pode-se também duvidar da capacidade de avaliar a extensão dos danos para a criança e a reparabilidade deste. Finalmente, pode-se questionar a própria possibilidade de danos para a criança, neste caso típico. Esta última posição que desenvolvemos aqui. (...) Ao contrário, vamos defender a idéia de que é incorreto dizer que essa deficiência constitui lesão. (Tradução do autor). GOSSERIES, Axel. Faut-il couper les ailes à l’arrêt Perruche? In: Revue Interdisciplinaire d’études juridiques, n. 48, 2002. Disponível em http://www.uclouvain.be/cps/ucl/doc/etes/documents/perrucheriej.pdf. Acesso em 12/11/2015.

[22] Em que tem sido afirmado que suas vidas estavam abaixo desse nível de dignidade, de modo que o conceito de dano, mesmo estendido, é inaplicável. (Tradução do autor). In. Idem. O autor procura demonstrar a impropriedade dos argumentos encontrados no acórdão Perruche em que se postula uma defesa pelo direito de não viver uma vida que, aparentemente, não merece ser vivida.

[23] Loi nº 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé. Disponível em http://www.legifrance.gouv.fr. Acesso em 12/11/2015.

BARRETO, Vicente de Paulo. A idéia de pessoa humana e os limites da bioética. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal et al. Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro; Renovar, 2003.p.220.

BOURGUET, Vincent. O ser em gestação: reflexões bioéticas sobre o embrião humano. Tradução: Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p.134.

BUSNELLI, Francesco Donato. De quem é o corpo que nasce? Do dogma jurídico da propriedade à perspectiva bioética da responsabilidade. In: MÖLLER, Letícia Ludwig. COSTA, Judith Martins. (org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 347.

GEDIEL, José Antônio Peres. Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.65. 

GOSSERIES, Axel. Faut-il couper les ailes à l’arrêt Perruche? In: Revue Interdisciplinaire d’études juridiques, n. 48, 2002. Disponível em http://www.uclouvain.be/cps/ucl/doc/etes/documents/perrucheriej.pdf. Acesso em 12/11/2015.

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?Tradução: Karina Jannini. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.43.

LOI nº 2002-303 du 4 mars 2002 relative aux droits des malades et à la qualité du système de santé. Disponível em http://www.legifrance.gouv.fr. Acesso em 12/11/2015.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.p.33.

STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p.88.

TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 4. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.p.10.


Guilherme WunschGuilherme Wunsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) fui assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, sou advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS; professor da UNIRITTER e professor convidado dos cursos de especialização da FADERGS, FACOS, FACENSA E IDC.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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