O Direito ao silêncio e a ilicitude da prova na confissão informal 

08/04/2021

 Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário 

Tornou-se consenso ouvirmos falar que o cenário de desumanidade das confissões obtidas por meio de torturas somente foi superado com a consagração do direito ao silêncio, discurso tão uníssono já não encontramos acerca dos conteúdos que compõem esse direito.

Apesar do direito ao silêncio não se confundir com a prerrogativa contra a autoincriminação conhecida também pelo brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, guarda com ela profunda relação. Nas irrepreensíveis palavras de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade “o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação estão incindivelmente ligados”.[1] Ora, em não sendo garantido ao acusado o direito de permanecer em silêncio, será ele compelido a confessar fatos que podem levar à sua incriminação.

Embora o direito inglês durante os séculos XVI e XVII já previsse o privilege against self-incrimination, o qual era invocado pelas cortes inglesas do commow law em face dos tribunais eclesiásticos, foi somente no século XVIII que o direito ao silêncio se firmou. Fruto do fortalecimento do sistema acusatório e das garantias processuais do acusado, em especial, a introdução da defesa técnica.

Na verdade, o privilege against self-incrimination[2] foi introduzido no direito inglês como princípio argumentativo, que permitia oportunizar ao acusado se manifestar em favor de sua defesa, contrariando a versão dos fatos contra si alegados. Muito embora não fosse ele sujeito a torturas para confessar, não lhe restava alternativa senão falar. Em um sistema que admitia a pena de morte, em que os jurados julgavam levando em consideração sua convicção pessoal e no qual calar representava não ter outra versão dos fatos, falar tornava-se obrigatório.[3] Quem cala consente, afinal...

A possibilidade de confiar a outrem a defesa, permitiu ao privilege against self-incrimination sair do campo da retórica e torna-se efetiva. Podemos assim afirmar que o direito ao silêncio e, por sua vez, a garantia contra autoincriminação são criações da defesa, como afirma Sandra de Oliveira e Silva[4].

É preciso ter em conta que em um processo penal democrático, nem acusado, nem investigado podem ser tratados como objetos processuais, a ambos se reconhece o caráter de sujeito, que podem  reclamar para si todas as garantias de um sistema de proteção aos direitos e garantias individuais.

É atentado contra o princípio da presunção de inocência exigir a participação do acusado[5] na produção de provas que lhe são adversas. Portanto, compete exclusivamente à acusação provar a imputação sem utilizar elementos probatórios obtidos através de meios coercivos ou em afronta à vontade do acusado.

Não cabe ao acusado colaborar com os instrumentos para sua acusação, senão quando assim a lei timbrada pela excepcionalidade previr. Nessas hipóteses, a assistência adequada da defesa técnica e esclarecidamente sobre as consequências de sua cooperação são inescapáveis.

Dada a importância do direito ao silêncio e do privilégio contra a não autoincriminação para a salvaguarda dos direitos e garantias individuais, ambos foram merecidamente acolhidos na maioria das legislações processuais penais democráticas da atualidade, além de receber guarida em documentos internacionais, e.g.: Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º), do Pacto Internacional do Direitos Civis e Políticos (art. 14º) e Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica – art. 8º, 2, g), do qual o Brasil é signatário. A Constituição Federal de 1988, no inciso LXIII, do art. 5º, assegura ao preso o direito de permanecer calado e ao Estado, o dever de esclarecimento ao acusado acerca do direito fundamental ao silêncio.

O direito ao silêncio e a garantia contra a não autoincriminação receberam resguardo infraconstitucional,[6] constitucional e convencionalmente na ordem jurídica brasileira, conferindo ao acusado a liberdade esclarecida de declarar ou não. Aqui é preciso ter em conta, que o acusado deve decidir livremente se e como quer declarar, não sendo permitido ao Estado o uso de qualquer coação, meio enganoso ou fraudulento para obtenção de declarações do acusado, tampouco valer-se de sua omissão[7]. As declarações prestadas pelo indiciado ou acusado devem ser guiadas pelos princípios da liberdade e voluntariedade, sob pena de inegável vulneração aos direitos fundamentais.

O recurso à força física ou ameaças de sanções com o objetivo de constranger o acusado a prestar declarações que o possam incriminar não encontra dificuldades no reconhecimento da ilegalidade das provas por esses meios obtidas. Não é demasiado reforçar o comando constitucional de proibição da tortura, de tratamento desumano ou degradante ao acusado (art. 5º, II). Da mesma forma, devem ser rejeitadas as provas colhidas por meios enganosos ou fraudulentos. Embora o código de processo penal brasileiro (art. 185 e ss) não repita a fórmula do seu correspondente português (art. 126, nº 2, al.a), que expressamente veda a utilização de meios enganosos,[8] podemos aplicar o mesmo raciocínio ao direito brasileiro, pois ao acusado é vedado qualquer promessa travestida de verdade ou pressão[9] com fins a fazê-lo colaborar com a investigação. Defesa de posição diversa é frontalmente contra o dever de lealdade processual e até mesmo violadora do princípio da dignidade humana.

Nesse escrito, nos preocupamos, sobretudo, com as ditas conversas ou interrogatórios informais e nos perguntamos: poderíamos ter a segurança na declaração da ilegalidade das provas obtidas quando praticada a dita confissão informal? Isso tudo sem esquecer que reconhecemos nem sempre ser fácil identificar quando são ultrapassados os limites das técnicas lícitas de interrogatório e as pressões diretas ou indiretas sofridas pelo acusado ou quaisquer meios que afetem psicologicamente sua compreensão, voluntariedade ou memória.[10]

O teor do julgamento do recurso em Habeas Corpus 192.798, de São Paulo, 2ª Turma do STF, j 24.02.21, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, nos apresenta algumas respostas a esses questionamentos.

O recente julgado do STF trata do caso de condenação às penas de 11 anos e 6 meses de reclusão, em regime fechado, mais pagamento de 1.526 dias-multa, por ter incorrido nas condutas dos arts. 180, caput, do Código Penal, 33, caput, e 35 c.c. art. 40, VI, da Lei n. 11.343/2006 - receptação, tráfico de drogas com causa de aumento e associação para o tráfico; sobre a última condenação pesava a controvérsia do recurso.

Não temos dúvidas da maior vulnerabilidade e despreparo do sujeito quando detido e não advertido da possibilidade de calar sobre os fatos que pesam contra si, mas teria recebida essa circunstância especial atenção do direito brasileiro?

No caso, pleiteou a defesa a absolvição do acusado em vista do juízo de piso ter fundamentado a condenação em declarações colhidas em interrogatório informal realizado por policiais no momento da abordagem ao sentenciado. Foi de posse das informações obtidas por meio dessa confissão informal que os policiais empreenderam uma busca na casa do acusado. Registre-se que os policiais não observaram o dever constitucional de informar ao acusado sobre seu direito de permanecer em silêncio. As declarações utilizadas para fundamentar a sentença condenatória foram obtidas por policiais no momento da prisão do acusado sem a imprescindível presença de defensor e ainda ante a ausência da advertência sobre seu a possibilidade de calar.

Pensamos sobre o julgado:

A ilicitude da prova não pode circunscrever-se ao interrogatório formal. A proibição de provas deve abarcar todos os momentos de contato com o acusado. Assim, no decurso das buscas e apreensões, revistas, reconhecimento de pessoas, reconstituição de fatos e como não poderia deixar de ser na detenção ocorrida no momento do flagrante.

É vedado aos órgãos e autoridades judiciais, de persecução penal e investigação policial manter qualquer contato com o detido com vista a obter informações que não sigam rigorosamente as regras estabelecidas para um interrogatório formal.

Prevendo a lei formalismos específicos para a aquisição de conteúdos declarativos do acusado,[11] qualquer prova amealhada de forma diversa deve ser reconhecida como ilícita. Nessa senda, a prova fornecida ou descoberta por vias da conversa ou o interrogatório informal é inservível para fundamentar a condenação do acusado.

A redação do art. 5º, LXIII, da Constituição Federal é clara ao estabelecer um dever de esclarecimento a ser seguido por todas as autoridades competentes para o interrogatório do acusado, alcançando ainda o deito e todos os atos praticados no curso da tramitação processual e até os atos anteriores ao processo.

O dever de informação imposto ao estado juiz, estado acusação e às autoridades policiais não é mera formalidade sem valor, mas parte integrante do conteúdo do direito ao silêncio. Sem o dever de advertência o direito ao silêncio e a garantia do nemo tenetur se ipsum accusare ficariam desamparados. O afastamento desse dever reclamada um sancionamento severo dos órgãos de fiscalização da autoridade que dele não se utilizou e, especialmente, a impossibilidade das informações obtidas por esse meio fazerem parte do conteúdo cognitivo da decisão judicial.

O substrato do direito ao silêncio além do dever de advertência a que estão submetidos as autoridades judiciárias, membros do ministério público e a polícias, se compõe ainda do direito de ser acompanhado e aconselhado por profissional de preparação jurídica adequada e de sua livre escolha, para atuar no exclusivo interesse de sua defesa (art. 5º, LXIII).

Não estamos aqui a dizer que o direito à defesa técnica seja circunscrito ao processo penal, absolutamente; contudo, em vista do bem jurídico em jogo, a liberdade, a assistência letrada[12] assume singular importância nessa seara.

Como se disse anteriormente, o direito ao silêncio nasceu do contributo da defesa. Essa afirmação nos leva a compreensão da centralidade do instrumento da defesa técnica ao longo do processo penal e não só na durante o interrogatório formal. A figura do defensor deve estar presente em todos os atos processuais que reclame a presença do acusado e sempre que ele a solicitar. O que nos deixa um pouco mais esperançosos na construção de um processo penal democrático, é que e não parece outro o entendimento do julgamento do recurso em Habeas Corpus 192.798, de São Paulo, 2ª Turma do STF, j 24.02.21, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

 

Notas e Referências

[1]In DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas(parecer)DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa; PINTO, Frederico de Lacerda da. Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova. Almedina, Coimbra, 2009. p.37.

[2] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo - princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. Editora Saraiva, 2ª ed. São Paulo. 2012, p. 35.

[3]SILVA, Sandra Oliveira e. O arguido como meio de prova contra si mesmo - considerações em torno do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.  Almedina, Coimbra, 2018. p.100.

[4] SILVA, Sandra Oliveira e. op. cit. p.101.

[5]Também entendemos ser extensivo ao investigado e ao detido, por exemplo, aquele preso em flagrante mas que ainda não foi sequer indiciado.

[6]Referimo-nos ao art. 186, do Código de Processo Penal. Nas nos esqueçamos também do art. 379, do CPC, contudo, por se tratar de previsão em outra seara jurídica não teceremos mais comentários.

[7] Nos referimos aos mecanismos de solução consensual previstos na legislação penal brasileira, tais como: transação pena, colaboração premiada e ANPP.

[8] Como esclarece José Maria Ascecio Gallego. El derecho al silencio como manifestación del derecho de defensa. Tirant lo blanc. Valencia. 2017, p. 193,  nesses casos têm lugar as ocasiões em que para obter as declarações do acusado se introduz em sua cela alguém com a finalidade conseguir sua confiança e, em consequência, fazer declarações acerca do fatos imputados contra e si e também quando atuam os agentes encobertos. Referindo-se à primeira situação, o TEDH reconheceu no caso Allan C. Reino Unido violação do direito ao silêncio e à não autoincriminação. Quanto aos agentes encobertos, não desconhecemos a existência no ordenamento jurídico brasileiro da previsão legal acerca dos chamados métodos ocultos de investigação e assentimentos no seu uso em casos específicos e detalhadamente delimitados.

[9]Aponta José Maria Ascecio Gallego. op.cit., p. 193, que o uso de perguntas capciosas e sugestivas, engano, ameaça de prisão provisória são formas que afetam psicologicamente a compreensão, voluntariedade ou memória do acusado. Acrescenta ainda que produz efeito semelhante a adoção pelo juiz de una postura próxima a la acusasión,  ocorrida em maior escala em processos em que a opinião pública exerce forte pressão, nos casos dos chamados Jueces estrella. Sobre esta última podemos nos atentar para os recentes episódios de suspeição do magistrado de Curitiba. 

[10] Nesse sentido José Maria Ascecio Gallego. op.cit. p. 180/182.

[11]SILVA, Sandra Oliveira e. op. cit. p. 357/387.

[12]Reforçamos aqui o papel da defensoria púbica, instituição dotada de autonomia e com relevo constitucional (art. 134, da Constituição Federal) destinada à defesa dos hipossuficientes.

 

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