O Direito Administrativo no Brasil e a consensualidade: uma aproximação possível e necessária

01/03/2020

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

Quando se fala em excesso de judicialização no Brasil, é comum se pensar em números absolutos, levando em conta a quantidade de processos judiciais em tramitação e o número de habitantes que compõe a população brasileira[1]. No entanto, em uma análise qualitativa desses números, é fácil verificar quem são os poucos atores que predominam neste cenário de litigância, tendo a Administração Pública ocupado lugar de destaque[2].

Em um primeiro momento, pode-se cogitar que a presença maciça dos entes públicos na arena judicial é decorrente da complexidade das relações em que se encontra envolvido o Estado, desde o advento da Constituição Federal de 1988. Com efeito, o poder constituinte ampliou o leque de obrigações a cumprir pelo poder público, em especial no que diz respeito à concretização de políticas públicas de cunho social.

Sem ignorar as falhas do Estado enquanto garantidor do bem-estar social, seja por razões econômicas ou má gestão política, também contribui para o fenômeno da judicialização da Administração as próprias bases do Direito Administrativo brasileiro. É dizer, o conjunto de regras e princípios que compõem o regime jurídico-adminitrativo, aliado à possibilidade da revisão das decisões administrativas pelo Poder Judiciário (além da impugnação pelos órgãos de controle) favorecem um cenário predominado pelos processos judiciais, quando se trata das relações do poder público em geral.

Sobre a base em que se fundou a dogmática do Direito Administrativo brasileiro, remete-se à influência advinda do Estado liberal francês, tendo o Conseil d’Etat como órgão que ao mesmo tempo criava as regras desta nova ciência e as aplicava por meio dos julgamentos administrativos. Muito embora no Brasil as atividades do Conselho do Estado restringiram-se à área consultiva, inclusive se extinguindo com o advento da República, em 1889, é possível afirmar que sua origem autoritária ainda assombra a regulamentação das relações em que se envolve a Administração.

Conforme esclarece Vasco Perera da Silva[3], o estabelecimento de um regime jurídico diferenciado ao Estado visou protegê-lo de eventuais ataques da sociedade, em um momento histórico de contestação de privilégios, pós Revolução Francesa. Além de blindar as autoridades administrativas, os julgamentos inicialmente desenvolvidos no âmbito do Conseil d’Etat também visavam preservar algumas prerrogativas ao Estado quando em conflito com o cidadão, de modo que regras mais benéficas incidissem quando se tratasse de alguma condenação do poder público, por exemplo.

É claro que esta formatação de uma Administração mais autoritária e distante dos administratados serviu para aquele determinado contexto, em que do Estado era esperada uma postura essencialmente abstencionista, só excepcionada para atos de preservação do direito da liberdade, valor máximo da sociedade iluminista. À medida que o contexto social modifica e evolui, também o Estado se adapta para atender às crescentes demandas oriundas do crescimento econômico, sem esquecer das prestações sociais.

A partir daí, desenvolve-se uma nova relação do Estado com o indivíduo, na qual este não se restringe à posição de mero destinatário de normas, mas igualmente de sujeito de direitos. O ato administrativo autoritário e unilateral cede espaço para o contrato administrativo, como forma de realização das obrigações constitucionalmente impostas ao Estado, as quais demanam o auxílio do setor privado para serem cumpridas de modo eficiente.

No Brasil, este novo arranjo na interação entre Estado e sociedade inicia-se a partir da Constituição Federal de 1988, impulsionado por meio de princípios e valores como a dignidade da pessoa humana, a eficiência da Administração Pública e uma sociedade mais justa e igualitária. E o Direito Administrativo, por sua vez, enquanto ramo do Direito que estuda – e se adapata - à estrutura do Estado, seus atos e suas relações externas e internas, também vem sofrendo modificações em sua teoria.

Relações mais horizontais e consensuais com os entes públicos vêm ganhando força, incentivadas pela doutrina contemporânea[4] e por legislações esparsas que colocam o Estado em patamar mais igualitário com o setor privado. Esta onda consensual também atinge o modo de resolução de conflitos em que se envolve o poder público, em que métodos extrajudiciais começam a se adotados para tentativa de solução, a exemplo da conciliação e da arbitragem.

Ocorre que, conforme destacado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro[5], o Direito Administrativo brasileiro sofre influência não somente do direito francês, mas também do italiano, alemão e dos países que adotam o sistema da commom law. Disso decorre, entre outros fatores, que temos um regime jurídico próprio que regula as relações do Estado, diferente daquelas incidentes sobre o setor privado e, ao mesmo tempo, temos a possibilidade de revisão dos atos da Administração pelo Poder Judiciário.

De acordo com o exposto acima, a unicidade de jurisdição, típica dos países do commom law, foi incorporada no país a contar da Proclamação da República, em 1889. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, no entanto, não há balizas claras do que pode ou não ser revisto pelo Poder Judiciário diante de impugnações a algum ato administrativo[6]. Regras mais engessadas de um lado e ampla possibilidade de revisão de outro inevitavelmente conduzem ao quadro que hoje se apresenta, de excesso de judicialização no que diz respeito às questões que envolvem o Estado.

Se antes a máxima do “julgar é administrar”, aplicável ao Conseil d’Etat enquanto órgão que julgava e regulamentava os atos do Estado, era tida como autoritária, hoje tal jargão se aplica para definir a presença maciça no Estado no processos judiciais, cabendo ao próprio Poder Judiciário, ao julgar, definir o que deve a Administração ou não fazer.

A este quadro se adiciona a ampla legitimidade que possuem o Ministério Público e os Tribunais de Contas para questionar a atuação estatal[7], da mesma forma sem limites muito claros do espaço de interferência -  e de deferência - ao que decidido pelo agente púbico e, por consequência, ao que estabelecido ou pactuado com o particular. É nesse caldeirão de atores e de jogo de forças institucionais que a consensualidade vem tentando se inserir, com a finalidade última de trazer melhores resultados no que diz respeito às funções do Estado e a sua interface com a sociedade.

Para a consolidação desta nova realidade, não deve haver nem heroísmo nem ingenuidade. A mudança para um paradigma mais voltado ao consenso e com maior participação da sociedade na formação da vontade administrativa não prescinde de um verdadeiro despir de egos institucionais e até pessoais, em que a convergência para soluções sensatas, econômicas e razoáveis seja o horizonte final. Ou o engajamento na construção de soluções mais criativas e racionais é total, por parte dos órgãos públicos e poderes do Estado, ou não se avançará na sua implementação. Neste último caso, perdemos todos.

 

Notas e Referências

BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Transações administrativas. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O direito administrativo brasileiro sob influência dos sistemas de base romanística e da common law. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 8, 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae/edicao/08. Acesso em 21/01/2020.

DE LESSA CARVALHO, Fábio Lins; RODRIGUES, Ricardo Schneider. O tribunal de contas no Brasil e seus congêneres europeus: um estudo comparativo. A&C-Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 18, n. 71, p. 225-248, 2018. Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/issue/view/79. Acesso em 04/02/2020.

SILVA, Vasco Pereira da. O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009

SUNDFELD, Carlos Ari. Um direito mais que administrativo? In: MARRARA, Thiago (Org.). Direito administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014, p. 47-69

[1] Segundo os dados levantados pelo relatório Justiça em Números 2019, há 78,7 milhões de processos judiciais em tramitação na justiça brasileira. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/8ee6903750bb4361b5d0d1932ec6632e.pdf. Acesso em 10/02/2020.

[2] Em levantamento de dados elaborado pela Associação dos Magistrados Brasileiros, intitulado “O Uso da Justiça e o Litígio no Brasil”, fez-se o diagnóstico em onze tribunais de justiça do país, abrangendo os anos de 2010 a 2013. Consta nas conclusões do relatório: “Verifica-se, no caso brasileiro, uma propensão ao litígio por um grupo concentrado de atores – e um dos mais contumazes é a administração pública”. Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em 10/02/2020.

[3]SILVA, Vasco Pereira da. O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009.

[4] A exemplo, conferir: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Transações administrativas. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O direito administrativo brasileiro sob influência dos sistemas de base romanística e da common law. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 8, 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/redae/edicao/08. Acesso em 21/01/2020.

[6] Uma reflexão sobre a definição do interesse público pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público pode ser conferida em: SUNDFELD, Carlos Ari. Um direito mais que administrativo? In: MARRARA, Thiago (Org.). Direito administrativo: transformações e tendências. São Paulo: Almedina, 2014, p. 47-69.

[7] Sobre o tema, conferir o trabalho de DE LESSA CARVALHO, Fábio Lins; RODRIGUES, Ricardo Schneider. O tribunal de contas no Brasil e seus congêneres europeus: um estudo comparativo. A&C-Revista de Direito Administrativo & Constitucional, v. 18, n. 71, p. 225-248, 2018. Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/issue/view/79. Acesso em 04/02/2020.

 

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