O direito à saúde é um direito absoluto? – Por Clenio Jair Schulze

23/11/2015

Uma questão importante é saber se o direito à saúde pode ser restringido ou limitado.

O presente artigo tem por finalidade tentar responder a questão e estabelecer uma compreensão adequada quanto ao conteúdo constitucional do direito à saúde.

A Constituição consagra no artigo 6º a saúde como direito social. Mas é no artigo 196 que fixa as balizas, ao mencionar que A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Um pensamento inicial conduz à ideia de que se trata de um direito absoluto. Isso se dá em razão da noção geral segundo a qual sem saúde não há dignidade humana. As decisões judiciais, em geral, deixam de enfrentar tal questão, fundamentando que o direito à saúde está previsto na Constituição e que por isso cabe ao Estado prestar toda e qualquer política a fim de concretizá-lo, condenando o ente público a prestar tratamentos e fornecer produtos, medicamentos e novas tecnologias.

Neste sentido é a posição do próprio Supremo Tribunal Federal, ao utilizar costumeiramente apenas argumentos jurídicos para condenar entes públicos ao fornecimento de medicamentos[1].

Esta não é, entretanto, a melhor forma de enfrentar a questão.

É incontroverso que existe o dever estatal de prestar de forma articulada os serviços de saúde preventivos e curativos, individuais e coletivos, no seu aspecto mais amplo possível. Trata-se da dimensão objetiva do direito fundamental à saúde, que produz uma eficácia irradiante e condiciona a atuação do legislador, do administrativo e do julgador, no exercício e controle daquelas políticas públicas de saúde.

Isso significa que o Estado está cercado de um tríplice plexo de deveres: (a) dever de respeito: que proíbe o Estado de violar o direito fundamental à saúde; (b) dever de proteção: no qual o Estado não pode permitir a violação do direito fundamental à saúde e (c) dever de promoção: em que o Estado deve proporcionar condições básicas para o pleno exercício do direito fundamental à saúde[2].

Ao mesmo tempo, também se protege a dimensão subjetiva do direito fundamental à saúde. Assim, na hipótese de descumprimento – imediato ou potencial – do princípio da integralidade na saúde, permite-se ao cidadão a possibilidade de solicitar ao Estado-Juiz o respeito e a reparação da violação àquele direito fundamental.

É essencial, portanto, investigar a amplitude do direito à saúde à luz da própria extensão da atuação jurisdicional.

Um aspecto limitador é o texto da própria Constituição, que restringe o direito à vida ao reconhecer a pena de morte na hipótese de guerra declarada (artigo 5º, XLVII, a).

Neste caso, se a vida pode ser limitada é inegável que o direito à saúde também pode sofrer restrições.

Tal previsão se coaduna com a lição já assentada na melhor doutrina, que não admite a existência de direitos absolutos[3]. Além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal já preferiu várias decisões rejeitando a existência de direitos absolutos[4].

Outro ponto a destacar é a inexorável escassez financeira. Não se pode imaginar que a Constituição confere a todo brasileiro o direito a ter a melhor prestação de saúde existente no mundo. Isso não está escrito no artigo 196 da Carta Magna e em nenhum outro dispositivo constitucional. É verdade que “não há disposição expressa e clara de que o dever do Estado está limitado aos ‘recursos disponíveis’, dando a falsa impressão, ao intérprete literal, de que estes direitos são absolutos.”[5]

Assim, o panorama delineado no sistema jurídico brasileiro, que contemplou a saúde como direito fundamental social, não pode prescindir da análise do aspecto fático atinente às limitações financeiras e de recursos humanos e tecnológicos.

É inegável que a concretização dos direitos – de todas as dimensões – exige uma atuação positiva do Estado, na elaboração, na proteção, na implementação e na efetivação. Significa que a prestação dos direitos sociais tem um custo (custo dos direitos).

Se as necessidades humanas são ilimitadas, o mesmo não acontece com os direitos e, principalmente, com os recursos disponíveis. Preciosas são as palavras de Holmes e Sunstein[6]: 

"Os direitos costumam ser descritos como invioláveis, peremptórios e determinados. Todavia, isto é mero floreio retórico. Nada que custe dinheiro pode ser absoluto. Nenhum direito cuja eficácia pressupõe o gasto seletivo dos recursos dos contribuintes pode, em última instância, ser protegido unilateralmente pelo Judiciário sem observância das consequências orçamentárias que afetam a competência dos outros Poderes.

É mais realístico e mais realístico e mais produtivo definir os direitos como poderes individuais derivados da qualidade membro ou afiliado a uma comunidade política e como investimentos seletivos de recursos coletivos escassos, feitos para alcançar objetivos comuns e resolver o que é sentido como um problema comum urgente.

Mas os direitos não podem ser tornados efetivos de um modo imutável por razões comezinhas também: a efetividade está sujeita a restrições orçamentárias que variam de ano para ano. [...]. Levar o curso dos direitos em conta é então se portar com um administrador prudente que se indaga sobre como alocar inteligentemente recursos ilimitados, levando em conta o amplo espectro de bens e utilidades públicas. Os direitos assegurados em lei, têm custos de oportunidade; quando um direito é tornado efetivo, outros bens valiosos, inclusive direitos, são postos à margem, pois os recursos consumidos para dar eficácia àquele direito são escassos. A questão é sempre: poderiam os recursos públicos ser alocados com mais justiça de um outro modo?"

Fica claro, portanto, que a escassez é inexorável, mesmo no que tange à saúde.

A tese da ausência de limites é superável quando se analisa a saúde a partir da perspectiva coletiva, ou seja, no âmbito global, tendo em mira todos os habitantes do país. Na percepção macro, nada é ilimitado. Neste aspecto, importa anotar que as políticas públicas de saúde são criadas e executadas com a finalidade de proteger a saúde de todos, tal como determinado pelos artigos 6º e 196 da Constituição.

É verdade que o Brasil possui uma economia de referência mundial e uma carga tributária que representa quase um terço do total da produção nacional, contudo, o orçamento anualmente destinado para a saúde não é suficiente para a cobertura completa de todas as ocorrências (o mesmo acontece com a educação, com o lazer e todos os outros direitos sociais).

Aliás, não há lugar no mundo que tenha um modelo de sistema de saúde completo, perfeito e impecável, exatamente porque existe a limitação financeira e de recursos humanos e tecnológicos.

As limitações, contudo, não podem e não devem servir de escudo aos agentes públicos – especialmente gestores e legisladores – para negar a concretização do direito à saúde.

Desta forma, considerando que o direito à saúde é limitado, o papel do Poder Judiciário é encontrar o equilíbrio nesta contínua colisão entre escassez de recursos e concretização do direito à saúde. E a judicialização é um poderoso instrumento para tal finalidade.


Notas e Referências:

[1] “O Poder Público não pode se mostrar indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional”. (RE 429903/RJ), “O preceito do artigo 196 da Constituição Federal assegura aos necessitados o fornecimento, pelo Estado, dos medicamentos indispensáveis ao restabelecimento da saúde.” (ARE 744170 AgR/RS).

[2] MARMELSTEIN, George. Direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009.

[3] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 276 e seguintes. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 49. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 265

[4] HC 93250/MS, Segunda Turma, Relatora Min. ELLEN GRACIE, j. 10/06/2008, DJe-117 26-06-2008; RE 455283 AgR/RR, Segunda Turma, Relator Min. EROS GRAU, j. 28/03/2006, DJ 05-05-2006, p. 39 e ADI 2566 MC/DF, Tribunal Pleno, Relator Min. SYDNEY SANCHES, j. 22/05/2002, DJ 27-02-2004, p. 20.

[5] FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Entre a usurpação e a abdicação? O direito à saúde no judiciário no Brasil e da África do Sul, pág. 125. In: Constituição e política na democracia: aproximação entre direito e ciência política. Daniel Wei Liang Wang. Organizador. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

[6] HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass R. The Coast of Rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Co., 1999, p. 97. Tradução livre.


 

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