O DIQUE AMEAÇA RUIR

29/06/2018

Este é o título do segundo capítulo da minha dissertação de Mestrado, mas não é de minha autoria. Foi sugerido pelo meu orientador Marcos Catalan, e prontamente aceito (não apenas porque entendi que refletia exatamente o que eu queria dizer, mas também porque não ouso discordar dele), quando pretendia dizer, no referido capítulo, o que está prestes a ocorrer, ou talvez já tenha ocorrido, com o Poder Judiciário, considerando o número de demandas em trâmite, em especial, aquelas que envolvem litígios jusconsumeristas.  

Ciclicamente, produz-se em massa, consome-se em massa e demanda-se em massa”1 e o índice de congestionamento do Poder Judiciário e, especialmente, a evolução do número de processos que tem como objeto conflitos de consumo demonstram esta realidade.

O Relatório Justiça em Números, do qual se pode extrair a evolução do número de processos no Poder Judiciário brasileiro, aponta que a taxa de congestionamento, nos anos de 2014 e 2015, atingiu os percentuais de 71,4% e 72,2%, e superou estes números no ano de 2016, quando atingiu 75%. Nestes anos, as ações judiciais versando sobre Direito do Consumidor ocuparam os primeiros lugares entre os assuntos mais demandados, tanto no Poder Judiciário, como, especificamente, nas Turmas Recursais e Juizados Especiais Cíveis. No ano de 2014, existiam no acervo do Poder Judiciário mais de dois milhões de ações em trâmite que versavam sobre responsabilidade do fornecedor e indenização por danos extrapatrimoniais, de modo que estes processos ocuparam o terceiro lugar entre os assuntos mais demandados (4,01%). No ano de 2015, houve redução do número de processos em relação ao ano anterior. Mesmo assim, havia um acervo de mais de um milhão e meio de ações envolvendo Direito do Consumidor, totalizando 4,10% dos feitos que tramitaram no Poder Judiciário2.

A produção em série significou o surgimento de bens de consumo mais frágeis, pois o uso de novas tecnologias não significou maior durabilidade. Pelo contrário, uma maior produção para uma população crescente foi acompanhada pela necessidade de que indivíduos consumam cada vez mais e, portanto, a produção de bens cada vez mais frágeis e menos duráveis é fundamental para o desenvolvimento da sociedade de consumo. O objetivo é produzir bens que possam ser substituídos, sempre, com a maior rapidez possível.

Neste cenário, as principais lides de consumo têm como origem práticas mercadológicas que acabam por gerar o descumprimento das normas de Direito do Consumidor. De acordo com o Boletim do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor, as principais causas de controvérsias levadas aos PROCONS, no ano de 2016 dizem respeito a: 1º problemas com cobrança, 2º problemas com contrato, 3º vício ou má qualidade de produto ou serviço, 4º problemas com SAC, 5º problemas diversos com produtos e serviços. 

Além das lesões sofridas pelos consumidores, outras causas podem ser apontadas para a judicialização em massa dos litígios de consumo. Uma pesquisa, encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça e elaborada pela Fundação Getúlio Vargas/SP3, apontou que existem muitos incentivos para o aumento da judicialização dos conflitos na área de Direito do Consumidor, entre eles: o baixo custo de ingressar com ações aliado a uma grande possibilidade de sucesso, especialmente nos Juizados Especiais; a advocacia de massa que estimula o requerimento de indenizações por dano moral e a propositura de ações judiciais em grandes quantidades sobre demandas idênticas; a legislação processual que estimula o tratamento individual de demandas de massa em vez de tratá-las coletivamente e evitar a proliferação de casos repetitivos e a ausência de uniformização jurisprudencial dos Tribunais Superiores a respeito de matérias.

A pesquisa apontou, ainda, que nos últimos anos a classe média passou de 62 milhões de consumidores para 92 milhões entre os anos de 2005 e 2010. Contudo, grande parcela destes novos consumidores, frequentemente, não é adequadamente informada pelos fornecedores e instituições bancárias a respeito dos produtos e serviços financeiros que passaram a adquirir. Além disso, a existência de cláusulas abusivas nos contratos acompanhada de serviços de atendimento ao consumidor falhos são outros fatores de estímulo ao ajuizamento de ações judiciais que poderiam ser evitadas.

Outrossim, ainda que o consumidor tenha à disposição outras formas de solução dos conflitos, junto ao próprio fornecedor ou por meio da via administrativa junto aos órgãos de proteção e defesa do consumidor, os números apontam que a via judicial acaba sendo a via eleita quando ocorre uma lesão. Tal fato, não pode ser imputado apenas a um fator, mas a ausência de efetividade das vias não judiciais também contribui para o aumento dos casos levados ao Poder Judiciário.

Outra questão a ser enfrentada consiste na lógica econômica que muitas vezes orienta as estratégias dos fornecedores, que preferem responder a processos judiciais, a implantar medidas efetivas que busquem a prevenção de danos e facilitar o acesso do consumidor4. O infrator se utiliza da relação custo benefício entre o lucro obtido com a manutenção da conduta danosa e o custo de eventual indenização a ser paga aos que postularem em juízo5

 O número elevado de ações judiciais que têm como objeto o Direito do Consumidor não configura um dado positivo, consequência de uma concepção crescente de cidadania, ou prova de que o em nosso país o consumidor tem garantido o acesso efetivo à justiça. Na verdade, um Estado em que os direitos fundamentais são efetivamente respeitados não pode apresentar índices muito elevados de demandas judiciais sobre esses direitos. É verdade que o dique ameaça ruir, se já não ruiu.

Notas e Referências

1 MONTEIRO FILHO, Carlos Édison do Rêgo. O problema da massificação das demandas consumeristas: Atuação do PROCON e proposta de solução à luz do Direito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 188, nov./dez., 2016, p. 297.

2 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em: 25/06/2018.

3.Disponível em:   http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/f7b1f72a0d31cc1724647c9147c4b66b.pdf. Acesso em 25/06/2018.

  1. MONTEIRO FILHO, Carlos Édison do Rêgo. O problema da massificação das demandas consumeristas: Atuação do PROCON e proposta de solução à luz do Direito. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 188, nov./dez., 2016.
  2. AZEVEDO, Fernando Costa de. Uma introdução ao direito brasileiro do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 69, jan./mar., 2009.
  3. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Desenvolvimento Econômico, Capitalismo e Direito do Consumidor no Brasil: Afastando o argumento de “Paternalismo Jurídico”. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 108, nov./dez. 2016.

 

 

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