O DESAFIO DA GESTÃO PROCESSUAL: DO CASO PARA A LITIGIOSIDADE  

30/07/2021

  Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Jurisdição efetiva é aquela prestada em tempo suportável[1], em um processo judicial sem dilações indevidas, e a partir da gestão racional e eficiente dos meios processuais. Como já apontava Rui Barbosa, em célebre frase, “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”[2].  

Da mesma forma, podemos dizer que processo justo e efetivo é aquele que se expressa no tratamento isonômico das partes, e na prestação tempestiva e eficiente da tutela jurisdicional.

Ainda que pertinentes, essas características não esgotam as qualificações necessárias para a configuração de uma boa prestação jurisdicional, ainda mais diante das novas demandas levantadas pela contemporaneidade. A capacidade de o Poder Judiciário reagir eficientemente aos litígios de uma sociedade tecnológica, globalizada e massificada parece demandar, em certa medida, a reinvenção de meios e perspectivas processuais[3], como a do próprio acesso à justiça, objeto de histórico desafio da processualística[4].

A clássica identificação por Mauro Cappelletti e Bryant Garth das três ondas renovatórias do acesso à justiça já pode ser compreendida como resultado da preocupação com a igualdade de acesso efetivo aos mecanismos de resolução do conflito e de produção de resultados justos, para além da perspectiva meramente individual, a fim de abarcar, também, a abordagem social ou coletiva. Os autores apresentam diretrizes e propostas para uma tutela jurisdicional mais adequada aos novos desafios da realidade contemporânea[5].

A primeira onda renovatória estabelece a necessidade de criação de assistência judiciária aos pobres[6], incluindo a remuneração do advogado pelo Estado para aqueles que não possuírem recursos financeiros, e a dispensa do pagamento dos custos para o ingresso no sistema de justiça[7].    

A segunda solução prática aos problemas de acesso à justiça é a representação dos interesses difusos e coletivos. Nessa segunda onda renovatória, busca-se a ampliação do objeto do processo, tradicionalmente visto sob uma perspectiva bilateral, isto é, como instrumento disponível a autor e réu para a resolução do litígio individual.

Cappelletti e Garth já assinalavam a necessidade da releitura da concepção de processo para a promoção do acesso à justiça na tutela dos interesses da coletividade[8], principalmente, quanto ao tempo razoável para a prestação da jurisdição, a fim de que ela seja mais efetiva, célere e humana[9].

Por fim, a terceira onda renovatória compreende a ampliação da própria concepção de acesso à justiça, a partir da simplificação procedimental no âmbito judicial, da adoção de meios extrajudiciais de resolução do conflito, do emprego de técnicas não adversariais, da mudança estrutural dos tribunais, e do uso de pessoas leigas ou paraprofissionais[10]

Para a melhor compreensão das potencialidades trazidas por essa última onda de acesso à justiça é necessário correlacionar o tipo de litígio, sua complexidade e importância social, com a forma mais eficiente para sua resolução[11].

Segundo Teori Zavascki, o Brasil experimentou uma verdadeira “revolução” na representação dos interesses difusos e coletivos, em virtude da alteração na Lei de Ação Popular, que passou a considerar patrimônio   “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”, e da entrada em vigor da Lei da Ação Civil Pública, a Lei nº. 7. 347, de 24 de julho de 1985[12]

A Constituição Federal de 1988 consagrou o direito fundamental de acesso à justiça no art. 5º, XXXV, ao estabelecer que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Contudo, a previsão de um amplo direito de acesso à justiça frente a um Estado que não tem condições de suportá-lo eclodiu na crise do sistema de justiça brasileiro, especialmente, em virtude da incapacidade de o Poder Judiciário prestar a tutela jurisdicional de forma efetiva e eficiente a demandas cada vez mais numerosas e complexas.

A insuficiência estatal na implementação dos direitos fundamentais, a morosidade do Poder Judiciário, a “jurisprudência lotérica”[13], e o grande acervo processual levaram à criação de órgãos jurisdicionais e técnicas processuais, bem como à reformulação de procedimentos com o objetivo de garantir o acesso à justiça e de otimizar a atuação do Poder Judiciário diante da elevada litigiosidade[14].

Partindo desse raciocínio, a otimização e racionalização dos meios processuais é um dos desafios da processualística para a resolução da litigiosidade, uma vez que o “exercício da atividade jurisdicional é corolário a universalização do acesso à justiça”[15]. Percebe-se, portanto, que racionalização, adequação, tempestividade e efetividade na resolução do litígio são vetores de incremento da efetividade de acesso à justiça[16].

O aumento da complexidade social e da litigância fez com que os órgãos do Poder Judiciário, com destaque para o Conselho Nacional de Justiça, reconsiderassem sua forma de atuação administrativa e jurisdicional para a resolução dos conflitos. Agilidade e produtividade na prestação da tutela jurisdicional, prevenção de litígios, adoção de soluções consensuais para o conflito, consolidação do sistema obrigatório de precedentes e aprimoramento da gestão administrativa e da governança judiciária passam a figurar nos macrodesafios da Estratégia Nacional do Poder Judiciário  2021/2026[17].

Percebe-se, ainda, que a tradicional concepção do “modelo dualístico”[18] revela-se defasada, a exigir ressignificações e reestruturações do sistema de justiça, e da aplicação das normas processuais[19]

A compreensão gestionária da justiça[20] possui relação intrínseca com a concretização do direito de acesso efetivo à justiça, uma vez que sua negligência tende a resultar em inefetividade e ineficiência da jurisdição, especialmente, diante de demandas múltiplas, complexas e multitudinárias.

A gestão de litígio parte da identificação do perfil da litigância e de sua complexidade para a definição da técnica de resolução mais adequada para a sua solução. Assim, a gestão do litígio pressupõe a triagem dos casos (screening process ou planificação das soluções de litígio), possibilitando o emprego do método mais adequado, segundo sua complexidade[21].  

Compreende-se por gestão judiciária (court management) a fixação de metas a serem alcançadas com o menor custo financeiro e de tempo, e que maximize o resultado de atividades correlacionadas à jurisdição, tais como organização e funcionamento dos cartórios e secretarias, rotinas administrativas e fluxo processual. Apesar da previsão constitucional do direito à razoável duração do processo, parcela considerável da magistratura brasileira ainda permanece alheia às novas perspectivas sobre a gestão judiciária[22].

A gestão do processo (case management) busca a conformação do procedimento com as peculiaridades do direito material, a partir do emprego de institutos processuais que possibilitam “o planejamento da condução de demandas judiciais em direção à resolução mais adequada do conflito, com menor dispêndio de tempo e custos”[23].

Para Coelho, Lopes, Matos e Mendes, a gestão do processo pode ser conceituada como “a intervenção conscienciosa dos actores jurisdicionais no tratamento dos casos ou processos, através de variadas técnicas com o propósito de dispor as tarefas processuais de um modo mais célere, equitativo e menos dispendioso”[24].

Interessante ponto para a análise da gestão do processo pode ser encontrado na estruturação molecular da litigiosidade individual de larga escala, realizada através, por exemplo, da suspensão de ações individuais até o trânsito em julgado de ações coletivas, como adotada pelo STJ no julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº. 1.525.327-PR, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão[25].

Nessa importante decisão, o STJ reforça a virada paradigmática da gestão processual de conflitos em larga escala, cujo enfoque é transferido da resolução de casos para a resolução da litigiosidade, impedindo-se, por exemplo, a pulverização de demandas e decisões contraditórias.

O juízo da vara cível da Comarca de Bocaiúva do Sul, no Paraná, determinou o sobrestamento dos autos da ação individual de reparação de dano moral ajuizada por Eleuza Machado de Lima em face de Trevisa Investimento S.A., Plumbum do Brasil Ltda., Plumbum Comércio e Representações de Produtos Mineiras e Industriais Ltda, Itaú Unibanco S.A e Lloyds TSB, em razão de exposição à contaminação ambiental por chumbo, resultante do beneficiamento industrial de mineração a céu aberto. 

A decisão do juiz singular foi impugnada pelo recurso de agravo de instrumento, que teve seu provimento negado pelo Tribunal de Justiça do Paraná. O recurso especial da agravante, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, teve como única questão controvertida, e único objeto da afetação, “a necessidade ou não de suspensão das ações individuais em que se pleiteia indenização por dano moral em razão de suposta exposição à contaminação ambiental decorrente da exploração de jazida de chumbo no Município de Adrianópolis-PR até o julgamento das Ações Civis Públicas em trâmite na Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba”[26].

Por unanimidade, os ministros da segunda seção do STJ negaram provimento ao recurso, fixando a seguinte tese repetitiva[27]:

Até o trânsito em julgado das Ações Civis Públicas n. 5004891-93.2011.4004.7000 e n. 2001.70.00.019188-2, em tramitação na Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Curitiba, atinentes à macrolide geradora de processos multitudinários em razão de suposta exposição à contaminação ambiental decorrente da exploração de jazida de chumbo no Município de Adrianópolis-PR, deverão ficar suspensas as ações individuais.

Em que pese a inexistência de permissivo legal que autorize a suspensão das ações individuais de ofício em razão da pendência de julgamento de ações coletivas, e da inaplicabilidade do art. 313, CPC/15 e art. 104, CDC, a suspensão das ações individuais até o trânsito em julgado das ações civis públicas possibilitará a otimização da jurisdição no tratamento de conflitos massificados, e a resolução igualitária para todos os envolvidos, que, em 18/10/2016, já totalizavam 2.230 ações individuais[28].

Sem adentrarmos em questões jurídicas mais específicas, parece bastante clara a adequação do tratamento molecular da litigiosidade de larga escala, por meio da suspensão das ações individuais até o trânsito em julgado das ações coletivas, como técnica de gestão dos processos

Contudo, na processualística brasileira ainda falta a sedimentação teórica do dever de gestão judicial, como ocorre nos sistemas português e francês. O reconhecimento desse dever pode ser a base de legitimação para uma maior adaptabilidade da tutela jurisdicional à litigiosidade, com a defesa, por exemplo, da aplicação, ope iudicis, de técnicas atípicas de gestão, e da definição dos respectivos critérios objetivos de controle ou standards.

A realidade brasileira contemporânea tem apresentado crescentes e complexos desafios ao Poder Judiciário. Resta saber se os processualistas saberão ressignificar seus institutos e concepções tradicionais a fim de assegurar a efetividade e eficiência da prestação jurisdicional frente a esses novos desafios. 

 

Notas e Referências

[1] PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MORAES, Daniela Marques. Op. cit., p. 7.

[2] BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977.

[3] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. 2. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010, p. 8.

[4] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 15.

[5] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 31.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 33.

[7] SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à Justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, [S. l.], n. 101, 204. p. 6.

[8] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 91.

[9] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Op. cit., p. 19.

[10] SADEK, Maria Tereza Aina. Op. cit. p. 4.

[11] CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Op. cit., p. 72.

[12] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2017, p. 35-36.

[13] CAMBI, Eduardo. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, vol. 786, abr. 2001, p. 108-128.

[14] MORAES, Daniela Marques de. A importância do olhar do outro para a democratização do acesso à justiça: uma análise sobre o direito processual civil, o poder judiciário e o observatório da justiça brasileira. Tese. Universidade de Brasília, 2014, p. 152

[15] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 3.

[16] PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo; MORAES, Daniela Marques. O tempo da Justiça no Código de Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 76, pp. 135-154, jan./jun. 2020, p. 140.

[17] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 325, 29 de junho de 2020. Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2015-2020.

[18] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: primeira série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 110.

[19] ZAVASCKI, Teori Albino. Op. cit., p. 26.

[20] Bochenek, Antônio César; LOPES, José Mauraz; MATOS, José Igreja; MENDES, Luis Azevedo; COELHO, Nuno; FREITAS, Vladimir Passos de. Manual luso-brasileiro de gestão judicial. São Paulo: Almedina, 2018, p 16.

[21] SILVA, Paulo Alves da. Gerenciamento de processos judiciais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37-38.

[22] SILVA, Paulo Alves da; ARENA FILHO, Paulo Ricardo. Op. cit., p. 119.

[23] SILVA, Paulo Alves da. Op. cit., p.3 5.

[24] COELHO, Nuno; LOPES, José Mouraz; MATOS, José Igreja; MENDES, Luís Azevedo. Manual de Gestão Judicial. Coimbra: Almedina, 2015. p. 234.

[25] No julgamento do Resp nº. 1.110.549/RS, pelo rito dos repetitivos, o STJ definiu a tese que “ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”.

[26] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Repetitivo nº. 1525327/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 12/12/2018, p. em 01/03/2019.

[27] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Repetitivo nº. 1525327/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, j. em 12/12/2018, p. em 01/03/2019.

[28] OSNA, Gustavo; ALFF, Hannah Pereira. A ação coletiva e a suspensão de ações individuais: isonomia e gestão a partir do Resp n. 1.525.327/PR. In: VITORELLI, Edílson; ZANETI JR., Hermes. Casebook de processo coletivo: estudos de processo a partir de casos. Vol. I. São Paulo: Almedina, 2020, p. 60.

 

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