O Defensor da Criança e do Adolescente

27/08/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

A Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8o, garante que toda pessoa, durante o andamento do processo em que é parte tem o direito de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha ou caso não o faça, por um defensor indicado pelo Estado.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, em seu artigo 12, garante a toda criança e adolescente capaz o direito de expressar suas opiniões, de forma livre, sobre todos os assuntos que digam respeito a sua pessoa, tendo o direito de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos que tratem sobre fatos de seu interesse, seja diretamente ou através de um representante ou de um órgão apropriado, de acordo com as regras processuais de seu país.

Referidas normas fazem parte de uma evolução no direito internacional da infância e juventude, que tem como ponto central a doutrina da proteção integral, trazendo uma nova visão sobre a criança e o adolescente, que deixam de ser vistos como objeto e passam a ser tratados como sujeitos de direitos. Entretanto, esse reconhecimento não é o bastante para que os direitos e garantias destes indivíduos sejam respeitados e efetivados, fazendo-se necessário a criação de mecanismos que permitam que crianças e adolescentes os exerçam de forma ampla e efetiva, principalmente garantindo um acesso seguro e amplo à justiça em casos de violação dos seus direitos, excluindo toda forma de limitação e exigência que dificulte de forma infundada a capacidade de crianças e adolescentes acionarem a justiça para fins de ver executada as suas vontades.

Os Estados, tais como o Brasil, precisam se adequar por meio de suas normas, políticas públicas e práticas processuais atinentes a infância e juventude à doutrina da proteção integral, sendo necessária a criação de novas figuras jurídicas que propiciem vez e voz ativa à criança e ao adolescente dentro dos processos judiciais e administrativos, em respeito ao princípio da autonomia progressiva, equilibrando a relação processual, independentemente de intermediação e da vontade de seus genitores e responsáveis legais, contribuindo para o exercício autônomo de seus direitos, evitando assim que decisões sejam tomadas sem levar em consideração o ponto de vista do maior interessado, que é a criança e o adolescente.

É exatamente nesse ponto que ganha relevância o defensor da criança e do adolescente[1], uma figura processual nova que vem surgindo no meio jurídico mundial, já positivado, inclusive, em alguns países vizinhos ao Brasil, como a Argentina[2],, porém com outra nomeclatura – “Abogado del Niño”. Entretanto, considerando que os honorários advocatícios do “abogado del niño” nos países que já positivaram referida figura processual são custeados pelo Estado, pois as crianças e os adolescentes não têm renda, e, que no Brasil, o acesso à justiça custeado pelo Estado se faz por intermédio exclusivo da Defensoria Pública[3], preferiu-se neste trabalho nominar essa nova figura processual como defensor da criança e do adolescente, adaptando-a à ordem jurídica constitucional brasileira.

Não permitir a participação ativa da criança e do adolescente nos processos judiciais e administrativos que lhes afetam direta ou indiretamente é negar a estes um direito humano fundamental enquanto sujeitos de direitos, contrariando, também, princípios garantísticos constitucionais básicos, como o da proteção integral e da dignidade da pessoa humana, podendo, inclusive, ensejar uma nulidade absoluta do processo, por ferir os princípios do contraditório e da ampla defesa[4].

O defensor da criança e do adolescente veio exatamente para dar vez e voz a toda criança e adolescente, funcionando como representante dos interesses pessoais e individuais destes, nos procedimentos judiciais ou administrativos que lhes digam respeito e lhes afetem de alguma forma, equilibrando a relação processual em nome do princípio da igualdade das partes, e, garantindo a ampla defesa e o contraditório da criança e do adolescente.

Como o objetivo da nova figura processual é proteger integralmente os direitos da criança e do adolescente, importante fixar requisitos mínimos para a ocupação do cargo, como ocorre na Argentina[5]. Assim, sugere-se que o defensor da criança e do adolescente seja um defensor público, devidamente aprovado em concurso público, com atuação e experiência na infância e juventude e especialização na defesa e proteção dos direitos da criança e do adolescente.

O Defensor da criança e do adolescente funcionará como o instrumento que garantirá a toda criança e adolescente o real exercício dos direitos que lhes são reconhecidos na Constituição Federal e nas normas nacionais e internacionais, pois defenderá apenas os interesses particulares da criança e do adolescente, que lhe solicitou a devida proteção, ou seja, lutará dentro do processo para efetivar a vontade destes[6], que não pode ser afetada por critérios pessoais do defensor.

O defensor da criança e do adolescente pode em alguns casos, inclusive deve, aconselhar a criança e o adolescente informando sobre as possibilidades jurídicas de sua vontade ou dizendo qual o melhor caminho para alcançar o resultado desejado, mas não pode, jamais, substituir a vontade da criança e do adolescente, sendo o seu papel o de levar ao juiz do processo o que a criança e o adolescente deseja.

O defensor da criança e do adolescente vai dar efetividade ao direito da criança e do adolescente de falar, peticionar, contestar, replicar, recorrer e se posicionar sobre as questões afetas ao seu interesse dentro do processo, de acordo com sua vontade e sempre respeitando a autonomia progressiva destes[7].

O defensor da criança e do adolescente funcionará, ainda, como instrumento para a efetivação dos princípios da igualdade, da liberdade, da autonomia progressiva a que faz jus toda criança e adolescente enquanto sujeitos de direitos[8]. As crianças e os adolescentes não podem ser vistos apenas como meros destinatários de uma decisão advindo de um processo, devem, também, ser sujeitos desse processo, participando ativamente do mesmo e contribuindo para a tomada de decisões que irão lhes afetar, decorrência, inclusive, do princípio da dignidade da pessoa humana[9], já que eles são os maiores interessados no que venha a ser decidido.                                                                                                                                 

O defensor da criança e do adolescente será o responsável pela defesa técnica dentro dos processos judiciais e administrativos dos interesses e desejos das crianças e dos adolescentes, mesmo que aqueles afetem o melhor interesse destes, cuja preocupação e análise deve caber à Justiça da Infância e Juventude. A vontade da criança e do adolescente deve funcionar como fator determinante para fins de aplicação da lei ao caso concreto pelos julgadores.      

As crianças e os adolescentes têm seus próprios direitos, interesses e vontades, que podem ser iguais ou diferentes dos de seus pais ou responsáveis, do Ministério público e do juiz, logo, enquanto sujeitos de direitos devem ter a garantia de vez e voz para fazer valer os seus interesses, independentemente da intermediação daqueles, tendo o direito de ser assistido por um defensor da criança e do adolescente, de sua confiança, a quem caberá a defesa técnica dos seus direitos e vontades, as quais não poderão ser substituídas por ele, que deve trabalhar de forma fidedigna para efetivá-las, mesmo que contrárias ao melhor interesse da criança e do adolescente[10].

O defensor da criança e do adolescente é a garantia de que a criança e o adolescente terá seu direito de participação nas decisões que lhes dizem respeito realmente concretizado, pois dará a estes sujeitos de direito a oportunidade de voz ativa em processos judiciais e administrativos onde geralmente apenas se escutam a versão adulta dos fatos e do direito, independentemente da representação jurídica que podem ter os genitores enquanto detentores da autoridade parental ou terceiros intervenientes, tais como o Ministério Público e o curador especial, que são atribuições constitucionais.

Toda vez que o interesse de uma criança ou adolescente está sendo afetado ou seus direitos fundamentais, garantidos no ordenamento jurídico pátrio, estão sendo vulnerados, estes passam a ter o direito a um defensor da criança e do adolescente, que terá como função zelar pela sua vontade. Inclusive, toda criança e adolescente deve, obrigatoriamente, ser avisado do seu direito a ser legalmente representada no processo por um defensor da criança e do adolescente, o qual atuará no processo para zelar pela efetivação de sua vontade. Qualquer criança ou adolescente, independente de idade ou qualquer outro critério discriminatório, pode ter um defensor da criança e do adolescente.

Para poder ter direito a um defensor nos moldes dessa nova figura processual, a criança e o adolescente deve ter uma capacidade intelectual suficiente para formar um raciocínio lógico e poder se expressar de forma livre e racional. Não existe uma idade específica para que a criança e o adolescente esteja pronto para designar um defensor da criança e do adolescente, vai depender de pessoa para pessoa, de acordo com o seu grau de discernimento e desenvolvimento, os quais não se manifestam de forma igual em todos os seres humanos. Em algumas situações a criança e o adolescente não terá o discernimento suficiente para externar a sua vontade, nesses casos passa a atuar a figura do curador especial da criança e do adolescente, na qualidade de legitimação extraordinária, falando em nome próprio em interesse de terceiros, situação excepcional, que não coaduna com a figura do defensor da criança e do adolescente[11].

A idade não pode ser o único critério para decidir se a criança e o adolescente tem o direito e o discernimento suficiente para designar um defensor para representá-la dentro do processo. O desenvolvimento da capacidade cognitiva da criança e do adolescente é progressiva e não depende apenas da idade, mas dos estímulos que recebe durante o seu crescimento, então, além da idade, a capacidade de se comunicar e de expressar a sua vontade devem ser levadas em consideração na hora de decidir se a criança e o adolescente tem condições de entender o alcance de seus atos, inclusive, o de solicitar um defensor para fazer a defesa de sua vontade[12].

No Brasil, apesar da ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e da previsão na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA e na Lei 13.431/17 do direito da criança e do adolescente ser ouvido nas questões atinentes a sua pessoa, ainda encontra-se muita dificuldade e resistência por parte dos membros do Sistema de justiça, principalmente dos juízes, quanto a obrigação, importância e necessidade de dar vez e voz as crianças e aos adolescentes, permitindo que os mesmos sejam ouvidos sobre o que desejam para as suas vidas, quiça quanto ao direito dos mesmos de se verem representados em sua vontade por um defensor da criança e do adolescente.

Entretanto, não é uma realidade apenas do Brasil, mas mundial, inclusive países como a vizinha Argentina, que já dispõe em seu ordenamento jurídico da figura do Abogado del Niño também vem sofrendo com essa dificuldade de garantir a criança e ao adolescente o direito fundamental de ser parte direta dos processos que tratem de suas questões pessoais[13], através de um profissional devidamente habilitado e treinado para defender seus desejos e suas vontades, garantindo que sejam ouvidos e respeitados em sua autonomia.

O Brasil já avançou muito em matéria de defesa e proteção da criança e do adolescente. A doutrina da proteção integral foi um marco referencial no país mas que precisa ser implementada em sua integralidade e de forma efetiva, não podendo se quedar apenas em letra morta de lei, por isso a inclusão no ordenamento jurídico brasileiro da figura processual do defensor da criança e do adolescente é essencial para dar vez e voz a todas as crianças e adolescentes do país.

 

Notas e Referências

[1]      QUAINI, Marcela. La representación del niño em el proceso directamente por un abogado em Argentina y el derecho comparado. Disponível em: <http://www.apadeshi.org.arg/representacion_del_nino.htm>. Acesso em: 01 ago. 2020.

[2]    ARGENTINA. LEY 26.061/05, DE OCTUBRE 21 DE 2005. Ley de Proteccion Integral de los Derechos de Las Niñas, Niños y Adolescentes, Buenos Aires. Disponível em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/110000-114999/110778/norma.htm >. Acesso em:18 jul.2020.

[3]      Lei Complementar 80/1994: Art. 4º, § 5º  A assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública.

[4]      PERDOMO, J. R. (2008). El derecho del niño a ser oído y a opinar en la Convención sobre los Derechos del Niño y la Ley Orgánica para la Protección de los Niños, Niñas y Adolescentes. En G. Morales (Coord.), La garantía de los niños, niñas y adolescentes a opinar y ser oídos en los procedimientos judiciales (pp. 15-45). Caracas: Acea.

[5]    ARGENTINA. LEY 26.061/05, DE OCTUBRE 21 DE 2005. Art. 50. Ley de Proteccion Integral de los Derechos de Las Niñas, Niños y Adolescentes, Buenos Aires. Disponível em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/110000-114999/110778/norma.htm >. Acesso em:18 jul.2020.  

[6]      RORIGUEZ, Laura. El derecho a ser oído y la defensa técnica a la luz de la ley 26.061 de Protección Integral de Derechos de Niñas, Niños y Adolescentes. Disponível em: <http://www.apadeshi.org.arg/el_derecho_a_ser_oído_y_la_defen.htm>. Acesso em: 02 ago. 2020.

[7]      GRANICA, Adriana e SOTOLANO, Oscar. El rol del abogado del niño em la nueva normativa vigente em Argentina – una perspectiva jurídica y psicoanalitica acerca del derecho a ser oído. Revista Cubana de Derecho. Jan-Jun, 2009. Disponível em: http://vlex.com/source/revista-cubana-derecho-2615/issue_nbr/%2333. Acesso em: 01 ago. 2020.

[8]      ASSANDRI, M. (2015). Principios y Reglas Generales del proceso ante el fuero familia. En Tratado de Derecho de Niños, Niñas y Adolescentes. Tomo III (pp. 2447-2463). Buenos Aires: Abeledo Perrot.

[9]      DIGIACOMO, Illdeara Amorino e DIGIACOMO, Murillo José. Estatuto da criança e do adolescente anotado e interpretado. 7º. Curitiba: MPPR - CAOPCAE, p. 43.                                                                                   

[10]    SUÀREZ, E. (2017). El abogado del niño. Buenos Aires: Thomson Reuters.

[11]    COUSO, Jaime, “El niño como sujeto de derechos y la nueva justicia de familia, interés superior del niño, autonomía progresiva y derecho a ser oído”, Revista de Derechos del Niño, números três e cuatro, Santiago: UNICEF, 2006, p. 160

[12]    QUAINI, Marcela. op cit., p.6. Acesso em: 2 ago. 2020.

[13]    QUAINI, Marcela. op cit., p.1. Acesso em: 2 ago. 2020

 

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