O crédito do ICMS sobre material intermediário – Por Deonísio Koch

28/06/2017

Na análise do princípio da não cumulatividade do ICMS, um dos pontos de tensão que alimenta infindáveis discussões jurídicas e desafia um esforço interpretativo para a compreensão da norma, é o crédito do ICMS decorrente das operações de aquisição de materiais denominados de intermediários, assim classificados pela doutrina e jurisprudência por não se enquadrarem como matérias-primas e nem como de uso e consumo, sendo consumidos no processo produtivo sem compor o produto final.

Embora os produtos intermediários tenham sido pontuados como referência na delimitação desta análise, a norma reguladora do crédito não adotou esta categorização de mercadorias. A LC nº 87/96, em seu art. 20, "caput" e em seus incisos e parágrafos, não se referiu a esta qualificação de produtos no trato do sistema de creditamento, o que resulta na fragilidade de qualquer tese que adote como critério do direito ao crédito este conceito de produtos.

Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

O dispositivo positivou o que mais se aproxima do denominado crédito financeiro, sistemática em que todos os custos onerados pelo ICMS, em sentido amplo, geram direito ao crédito[1]. Isto ficou evidente ao permitir o crédito com relação ao material destinado ao uso e consumo e ao ativo permanente. No entanto, as restrições positivadas no art. 33 da mesma Lei interferiram para descaracterizar o denominado crédito financeiro na sua concepção mais pura.        

Fazendo-se uma análise de toda normatização da não cumulatividade do ICMS, a partir da LC 87/96, chega-se a concluir que as únicas restrições ao direito ao crédito são: a) material destinado ao uso e consumo (até 2020); b) as operações ou prestações que se referem a mercadorias ou serviços alheios à atividade do estabelecimento e c) as restrições às operações com energia elétrica, e as de serviços de comunicação previstas no art. 33 da citada Lei, sem considerar as vedações legais decorrentes de operações isentas ou não tributadas, que são inerentes à própria técnica de creditamento e não são de interesse para o presente trabalho.

Das restrições postas, faz-se um corte metodológico para o material destinado ao uso e consumo, visto que na discussão sobre o crédito do imposto relacionado ao material intermediário, a única fundamentação para a vedação do crédito se respalda na classificação do material como de uso e consumo.

Parece indubitável que o material de uso e consumo é assim definido por servir à atividade meio do estabelecimento (administração, material de expediente, segurança etc), sendo uma atividade facilitadora e de apoio para o desenvolvimento do setor produtivo. E o STJ tem sinalizado para esta interpretação. No julgamento do REsp. 1366437/PR, DJe. 10/10/2013, a Primeira Turma reconheceu o direito ao crédito com relação a telas, mantas e feltros empregados na fabricação de papel, sob o argumento de estes produtos serem consumidos no processo de industrialização do papel, viabilizando a atividade fim do estabelecimento.

Nesta mesma linha o STJ tem se posicionado em outras decisões, conectando o direito ao crédito à condição única de o material ser consumido no processo produtivo (REsp 850362/MG, DJ 02/03/2007), ou para a "consecução das atividades que constituem o objeto social do estabelecimento empresarial." (AgRg no AREsp 142263/MG, DJe 26/02/2013).

Um ponto fundamental da argumentação do STJ nas decisões mencionadas recai sobre a análise da norma regradora do crédito no tempo. Lembra esta Corte que pelo Convênio ICMS nº 66/88[2] havia a necessidade de prova de que o material fosse consumido imediata e integralmente no processo produtivo ou integrasse o produto novo,3 medida restritiva não reproduzida na LC nº 87/96, que ampliou as hipóteses de creditamento, estabelecendo como condição do aproveitamento do crédito que o material intermediário fosse utilizado para a consecução das atividades que constituam o objeto social do estabelecimento.

O STJ assimilou a mudança no tratamento desta matéria na produção legislativa no tempo, chegando à conclusão de que todo o material empregado na atividade fim ou na atividade que constitua o objeto social do estabelecimento gera direito a crédito, restando a vedação exclusivamente com relação ao material destinado à atividade meio, ou de apoio administrativo da empresa, que se constitui na categoria de material de uso e consumo. As decisões mencionadas não levam em consideração a forma de consumo do material, se de forma integral e imediata no processo produtivo, ou se integra o produto final.  Por esta visão, as telas, feltros, peças de reposição de máquinas vinculadas à produção, pneus da frota dos transportadores, combustível consumido em veículos no transporte de matérias-primas, são exemplos de materiais cujas aquisições geram direito a crédito, tendo por fundamento a sua vinculação com o setor produtivo.

E de fato, parece que esta é a melhor interpretação do art. 20 "caput", da LC nº 87/96, considerando que este dispositivo não faz nenhuma alusão à forma de consumo (imediato, integral ou se há integração ao produto final), nem mesmo faz menção a produto intermediário. Portanto, não há embasamento jurídico para condicionar o crédito ao imediatismo ou à integralidade do consumo do material, nem mesmo à integração ao produto final.  A única excludente é reservada para o material de uso e consumo, em razão da postergação da eficácia da norma com relação a este material. Logo, conforme já adiantado linhas acima, qualquer discussão relacionada a esta matéria, migra, necessariamente, para o campo da definição do material de uso e consumo, por ser categoria de produtos que repelem o direito ao crédito do ICMS.

O entendimento do STJ parecia [ou ainda parece] estar consolidado segundo as linhas interpretativas acima alinhadas. Contudo, numa recente decisão (AgInt no Agravo em REsp.  nº 986.861/RS, DJe 02/05/2017), o Tribunal alterou os fundamentos para justificar o direito ao crédito dos chamados materiais intermediários,  condicionando este direito a que os produtos integrem ao produto final e sejam consumidos no processo de fabricação de forma integral e imediata, fazendo inclusive alusão  a outro precedente neste sentido (AgRg no REsp 738.905/RJ, DJ e 20/02/2008). Nesta nova decisão a Corte negou direito ao crédito com relação às aquisições de uniformes, aventais, material elétrico, peças de manutenção, equipamento de produção, óleo lubrificante e graxa, considerando tais produtos típicos bens de uso e consumo. Os fundamentos da decisão estão mais próximos às orientações do revogado Convênio nº 66/88 do que da LC nº 87/96, que nada dispõe sobre a forma de consumo ou desgaste do produto para efeito de crédito. Esta decisão representa uma ruptura no posicionamento daquela Corte; não se sabe se haverá uma reformulação jurisprudencial ou se a decisão permanece como um precedente isolado.

E qual seria a posição do STF com relação a esta matéria? O STF tem firmado jurisprudência que, em linhas gerais, condiciona o direito ao crédito ao consumo imediato e integral do produto no processo produtivo e ainda que este integre o produto final, negando, por conseguinte, o direito ao crédito com relação aos produtos que sofrem o simples desgaste pelo uso continuado, como por exemplo, as peças de reposição de máquinas, aparelhos e equipamentos industriais, telas e feltros, bem como de veículos (RE 195894/RS, DJe 16/02/2001). Em outro julgamento, esta Corte negou o direito ao crédito com relação a serras e brocas, firmando o entendimento segundo o qual, o direito ao crédito fica condicionado a que o produto seja utilizado uma única vez e que nesta utilização ocorra a sua integração ao produto final (AI nº 494.188-6/SP, DJe 10/12/2004).

Ocorre que estas condições exigidas pelo STF (consumo imediato e integral e que ainda integre o produto final) somente podem ser satisfeitas por um produto que é consumido no processo produtivo na forma de matéria-prima. Desta maneira, ainda que o Tribunal se refira a produtos intermediários, nega a sua existência de fato, esvaziando, por completo o rol desta categoria de produtos, considerando que um dos pontos que particulariza os produtos intermediários, na concepção doutrinária, é o seu desgaste ou consumo no processo produtivo sem a sua integração ao produto final.

Este é o cenário no momento com relação a esta matéria. O STJ iniciou uma leitura mais alinhada com a legislação, utilizando-se, inclusive, da evolução legislativa no tempo (Convênio nº 66/88 e LC 87/96), para a análise do direito ao crédito do ICMS, mas recentemente provocou um retrocesso nesta afirmação, conforme a decisão examinada. Enquanto isso, o STF, sem sequer fazer menção à LC 87/96, vem firmando jurisprudência de afirmação restritiva do direito ao crédito que parece representar uma simples reprodução contínua de decisões precedentes, sem uma atualização com base na legislação vigente.


Notas e Referências:

[1] MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999, p. 133.

[2] Sob a autorização do § 8º, do art. 34 dos ADCT, da Constituição Federal de 1988, o Convênio nº 66/88 dispunha, provisoriamente, sobre o regramento do ICMS, enquanto não fosse editada a lei complementar para esta normatização.

3 "Art. 31 Não implicará crédito para compensação com o montante do imposto devido nas operações ou prestações seguintes:

[...] ;

III - a entrada de mercadorias ou produtos que, utilizados no processo industrial, não sejam nele consumidos ou não integrem o produto final na condição de elemento indispensável a sua composição;"


 

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