O CONTROLE DO MÉRITO ADMINISTRATIVO PELO JUDICIÁRIO NA CASSAÇÃO DE MANDATO ELETIVO    

23/06/2021

O presente artigo tem como objetivo abordar sobre a possibilidade ou não de o Poder Judiciário realizar o controle do mérito administrativo nos processos de cassação de mandato eletivo em decorrência de imputação de crime de responsabilidade político-administrativa.

Teremos como base de estudo a Constituição Republicana de 1988, as normas infraconstitucionais e os julgados proferidos pelos Tribunais Pátrios e a doutrina nacional acerca do assunto proposto, lembrando que a Constituição deve ser o ponto de partida para qualquer interpretação jurídica, por força do princípio da força normativa constitucional, que irradia seus efeitos sobre todo o sistema jurídico.

São essas as considerações introdutórias sobre o assunto proposto neste estudo.

 

1. O MÉRITO ADMINISTRATIVO

Nas palavras do administrativista José dos Santos Carvalho Filho, o ato administrativo é “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob o regime de direito público, visa à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público”.[1] Isto é, o Ato Administrativo é o mecanismo de exteriorização da vontade do agente público, na condição de representante do Poder Público, tendo como objetivo produzir regulares efeitos para atender o interesse da coletividade.

Para que o ato administrativo seja válido deve conter determinados elementos, quais sejam: a competência, a finalidade, a forma o motivo e o objeto, sem os quais o ato não terá validade.

O ato administrativo também possui atributos/características que são inerentes aos atos administrativos, sendo que a doutrina majoritária defende que o ato administrativo possui os seguintes atributos: presunção de legalidade, imperatividade, autoexecutoriedade e tipicidade.

Além dos elementos e atributos, os atos administrativos podem ser classificados como vinculados ou discricionários. Nos atos vinculados, o administrador está estritamente vinculado à norma criada pelo legislador, que foi eleito democraticamente pelo povo, não tendo o administrador margem para realizar a valoração da conveniência e da oportunidade.

No que tange aos atos discricionários, o administrador possui certa liberdade para a prática do ato, devendo ser observados os limites expressos e implícitos consignados em lei, bem como a vinculação principiológica, ou seja, trata-se de uma discricionariedade regrada, tendo em vista que o administrador não pode praticar o ato discricionário segundo seu alvedrio, nem de modo arbitrário, sob pena de o ato ser questionado na via judicial.

Feitas essas breves considerações sobre o ato administrativo, passaremos a estudar o instituto do mérito administrativo.

Para o saudoso administrativista Hely Lopes Meireles, o mérito administrativo consubstancia-se “na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar”.[2]

O mérito administrativo nada mais é do que o poder conferido pela lei ao administrador para que este decida acerca da conveniência e oportunidade sobre a prática de determinado ato discricionário, ou seja, é conferido ao administrador margem para realizar a avaliação da conveniência e da oportunidade relativas à prática do ato.

Entretanto, há elementos do ato discricionário que são vinculados à previsão legal, quais sejam: a competência, a forma e a finalidade. Quanto a esses elementos, o administrador sempre está vinculado à previsão legal, apesar do ato ser discricionário. O Administrador somente pode avaliar a conveniência e a oportunidade quanto aos elementos motivo e objeto, haja vista que a competência, a forma e a finalidade são sempre vinculados, não podendo o administrador ignorá-los quando da prática do ato administrativo, isto é, não foi conferida autonomia ilimitada para prática dos atos administrativos, seja ato discricionário, seja o julgamento político de cassação de mandato eletivo.

Nesse sentido, advogam os administrativistas Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:

Nestes atos discricionários, vinculam-se, invariavelmente, à expressa previsão legal:

a) a competência (qualquer que seja a espécie do ato, somente poderá ser validamente praticado por aquele a quem a lei confira tal atribuição);

b) a forma (uma vez prevista em lei, também deve ser estritamente observada pelo administrador, sob pena de ter-se declarada a nulidade ao ato; e

c) a finalidade (esta, por óbvio, jamais discricionária, uma vez que a finalidade de qualquer ato sempre será o interesse público).[3]

Dessa maneira, conclui-se que o Administrador, ao praticar o ato discricionário, possui certa margem de liberdade para a avaliação da conveniência e da oportunidade. Entretanto, essa valoração deve se dar nos limites expressos ou implícitos contidos na Lei e/ou em sintonia com os princípios fundamentais. Portanto, apesar da discricionariedade para a prática do ato, o Administrador não possui discricionariedade ilimitada, conforme sustentam alguns.

Na atual conjuntura jurídica, não é admitido ao administrador praticar ato discricionário ou vinculado sem fundamentação, com base em alegações genéricas ou ambíguas, visto que o ato administrativo essas anomalias afrontam os princípios e garantias fundamentais previstas na Constituição da República de 1988. Nesse sentido, são os ensinamentos do jurista Juarez Freitas:

Desse modo, para ilustrar, anulações e revogações, atos vinculados e discricionários, já não podem ser levados a termo sem fundamentação lançada no pertinente processo administrativo, muito menos com base em alegações vagas ou ambíguas de interesse público ou simples alusão a dispositivos legais. Com efeito, nas relações de administração, a persistência de fórmulas vazias, maculadas por veemente nulidade, representam a negação dos objetivos fundamentais da República[4].

O autor continua asseverando que todos os atos administrativos que afetarem direitos ou interesses legítimos devem ser devidamente motivados em respeito à garantia do devido processo legal. Ou seja, na prática de qualquer ato administrativo, inclusive o ato discricionário, o administrador deve apresentar uma fundamentação consistente e justificável racionalmente, em respeito ao sagrado princípio constitucional do devido processo legal.

O Administrador público, ao praticar o ato discricionário, deve obediência à lei, bem como aos princípios constitucionais fundamentais que norteiam a atividade administrativa, sob pena de o ato praticado ser questionado na via judicial, até porque não pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, mesmo em se tratando do mérito de processo de cassação de mandato eletivo em decorrência da imputação de crime de responsabilidade político-administrativa.

Insta salientar que eventual constatação de desproporcionalidade, de desvio de finalidade, de excesso de poder ou de arbitrariedade na prática do ato administrativo deve ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, até porque não pode ser excluída da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, em detrimento do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, conforme está consignado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Republicana de 1988.

Ora, o ato administrativo discricionário nunca pode ser confundido com ato arbitrário, este sempre será inválido, visto que foi praticado em contrariedade ao regramento jurídico. Sendo assim, toda vez que a Administração praticar o ato administrativo discricionário com desvio de finalidade, com desproporcionalidade ou com qualquer outro vício, o Poder Judiciário deve ser acionado para afastar eventuais arbitrariedades praticadas pelo administrador ao praticar o ato administrativo vinculado.

Em um Estado Democrático de Direito não pode ser admitido que a Administração Pública ou o particular se blindem com determinadas artimanhas para retirar do Poder Judiciário sua função prevista pelo legislador constituinte, que é a apreciação de “lesão ou ameaça a direito”. Com isso, o Poder Judiciário pode e deve realizar o controle do mérito administrativo quando for praticado com desproporcionalidade, com irrazoabilidade e com desvio de finalidade, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Melo:

Para ter-se como liso o ato não basta que o agente alegue que operou no exercício de discrição, isto é, dentro do campo de alternativas que a lei lhe abria. O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidades em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstancias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada. Em consequência desta avaliação, o Judiciário poderá concluir, em despeito de estar em pauta providencia tomada com apoio em regra outorgadora de discrição, que naquele caso específico submetido a seu crivo, à toda evidencia a providência tomada era incabível, dadas as circunstancias presentes e a finalidade que animava a lei invocada. (...) Não se suponha que haveria nisto invasão ao chamado “mérito” do ato, ou seja, do legítimo juízo que o administrador, nos casos de discrição, deve exercer sobre a conveniência ou oportunidade de certa medida. Deveras, casos haverá em que, para além de dúvidas ou entredúvidas, qualquer sujeito em intelecção normal, razoável, poderá depreender (e assim também, a fortiori, o Judiciário) que, apesar a lei haver contemplado discrição, em face de seus próprios termos e da finalidade que lhe presidiu a existência, a situação ocorrida não comportava senão uma determinada providencia, ou, mesmo comportando mais de uma, certamente não era a que foi tomada. Em situações quejandas, a censura judicial não implicaria invasão do mérito do ato.[5]

Ora, a competência discricionária da Administração Pública no exercício do seu poder disciplinar não pode ser aceita como descontínua e ilimitada, conforme equivocadamente sustentam alguns, visto que deve sujeitar-se, obrigatoriamente, aos princípios constitucionais consagrados no ordenamento jurídico, notadamente os da razoabilidade e da proporcionalidade, conforme ensina o administrativista José dos Santos Carvalho Filho:

Modernamente, como já tivemos a oportunidade de registrar, os doutrinadores têm considerado os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como valores que podem ensejar o controle da discricionariedade, enfrentando situações que, embora com aparência de legalidade, retratam verdadeiro abuso de poder. Referido controle, entretanto, só pode ser exercido à luz da hipótese concreta, a fim de que seja verificado se a Administração portou-se com equilíbrio no que toca aos meios e fins da conduta, ou o fator objetivo de motivação não ofende algum outro princípio, como, por exemplo, o da igualdade, ou, ainda, se a conduta era realmente necessária e gravosa sem excesso.[6]

Feitas essas considerações, conclui-se que o Poder Judiciário deverá realizar o controle do mérito administrativo, como por exemplo, se o ato foi praticado com razoabilidade, com desvio de finalidade, pois toda vez que houver lesão ou ameaça de direito deve o Judiciário agir, caso seja provocado, para o restabelecimento da legalidade.

 

2. O CONTROLE DO MÉRITO ADMINISTRATIVO PELO JUDICIÁRIO NA CASSAÇÃO DE MANDATO ELETIVO

No julgamento de processo de cassação de mandato eletivo em decorrência de imputação de crime de responsabilidade político-administrativa que envolver vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores e presidente da república, o entendimento que prevalece é que não é “sindicável o mérito administrativo do julgamento político pelo Poder Judiciário”.[7] Tal entendimento não coaduna com a nova ordem jurídica inaugurada pela Constituição de 1988, até porque o próprio Texto Constitucional estabelece que não será excluída da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, eventual abuso ou desvio de finalidade no processo de cassação do agente político pode ser revisto pelo Poder Judiciário, pois não é razoável que o agente político, eleito democraticamente pelo povo, seja cassado sem nenhum elemento probatório concreto quanto à pratica do ato antijurídico.

Dessa forma, para que a decisão de cassação do agente político seja válida e eficaz, deverá o processo de cassação ser instruído com provas hábeis a comprovar o fato imputado ao investigado, devendo, ainda, o julgamento político de cassação ser devidamente fundamentado, haja vista que a fundamentação é pressuposto de validade do ato de cassação. Nessa trilha, posiciona-se a jurista mineira Edilene Lôbo:

Só porque político, não se pode admitir a parcialidade, a arbitrariedade, nem a injustiça. Assim como o judicial, o julgamento político deve ser fundamentado. É da fundamentação que se extraem os motivos, os argumentos que demonstrem, com base nas provas, que o réu tenha praticado a conduta imputada.[8]

O agente político somente deve ter o mandato eletivo cassado em situações gravíssimas, mesmo assim deve ser garantido o contraditório e a ampla defesa em seu aspecto substancial, isto é, seus argumentos devem ser enfrentados e levados em consideração para a construção da decisão administrativa.

Ora, em regra deve ser preservada a soberania popular em sua plenitude, portanto, o resultado obtido nas urnas somente pode ser afastado em situações excepcionais, não podendo o mandato ser cassado em decorrência de interesses escusos, conforme é noticiado na mídia diariamente.

Não há discricionariedade na condução do processo político de cassação, portanto, o agente público, devidamente eleito, não pode ser cassado com base em questões meramente políticas, mas sim com base em conjunto probatório acerca do ato ilícito praticado por ele. Outrossim, para efeito de cassação do mandato, deve ser comprovado que o agente político praticou o ato questionado a título doloso e resultou em dano ao erário, isto é, a cassação de mandato deve ser reservada para casos graves e não para punir o agente político por praticar atos com meras irregularidades e muito menos para apenar agente político por adotar determinada ideologia partidária.

O que vemos no dia-a-dia é a utilização do processo político de cassação transvestido de desvio de finalidade, muitas vezes imbuído por questões unicamente pessoais, sem nenhuma prova concreta quanto ao crime de responsabilidade político-administrativa pelo agente político, o que é inadmissível, pois a condenação sem lastro probatório é um atentado contra o Estado Democrático de Direito, ainda mais em se tratando de um agente público que foi eleito democraticamente pelo povo.

Não é concebível que os membros do Poder Legislativo tenham “carta em branco” para conduzir o processo político de cassação ao seu alvedrio, decidindo pela cassação mesmo inexistindo prova concreta quanto à prática do ato antijurídico perpetrado pelo processado, o que é uma verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito. Com isso, o agente político, eleito democraticamente, não deve ser destituído do cargo por ato discricionário dos membros do legislativo, tendo em vista que a cassação somente será válida se for conferido ao agente político processado o exercício do devido processo legal em seu aspecto substancial, onde suas alegações serão levadas em consideração para a construção da decisão final.

Quando o Poder Legislativo cassa o agente político sem a comprovação do fato antijurídico, a pena de cassação é irrazoável e desproporcional e, por consequência, ilícita. Neste caso, o Poder Judiciário pode e deve realizar a sindicabilidade do mérito administrativo no julgamento político, para afastar eventual arbitrariedade praticada em desfavor do agente político.

Em todo e qualquer processo, seja judicial ou administrativo, as alegações apresentadas pelas partes envolvidas devem ser levadas em consideração para a construção da futura decisão, em respeito à garantia do “devido processo legal substancial”[9]. Não havendo respeito à garantia ao devido processo legal substancial, o Poder Judiciário poderá realizar o controle do ato administrativo, podendo realizar a sindicabilidade do ato administrativo em seu aspecto formal, bem como no aspecto material, este no que tange aos abusos e desvio de finalidade dos atos praticados no transcorrer do processo político de cassação.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, ao votar no MS 22.494/DF, manifestou sobre a possibilidade de o Poder Judiciário realizar o controle do ato administrativo praticado pelo Legislativo, eis os argumentos do Ministro decano da Suprema Corte:

É da essência de nosso sistema constitucional, portanto, que, onde quer que haja uma lesão a direitos subjetivos, não importando a origem da violação, aí sempre incidirá, em plenitude, a possibilidade de controle jurisdicional. A invocação do caráter interna corporis de determinados atos, cuja prática possa ofender direitos assegurados pela ordem jurídica, não tem o condão de impedir a revisão judicial de tais deliberações. Os círculos de imunidades de poder – inclusive aqueles que concernem ao Poder Legislativo – não o protegem da intervenção corretiva e reparadora do Judiciário, que tem a missão de fazer cessar os comportamentos ilícitos que vulnerem direitos públicos subjetivos.[10]

Destarte, quando o ato político violar algum direito, o ato deixará de ser exclusivamente ato político, podendo o Poder Judiciário realizar sua sindicabilidade em seu aspecto formal, bem como no aspecto material, tendo em vista que não pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito, conforme foi previsto pelo legislador constituinte em 1988.

O processo de cassação de mandato eletivo instaurado para apurar a infração político-administrativa deve ser lastreado em provas concretas, em decorrência do ônus probatório. Veja-se as célebres palavras do Desembargador aposentado do TJMG e professor Humberto Theodoro Júnior acerca do ônus probatório:

Não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados e do qual depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisprudencial. Isto porque, segundo a máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente.[11]

Vale transcrever os ensinamentos do processualista italiano Francesco Carnelutti, sobre o ônus probatório:

Não tenho necessidade de acrescentar, como é natural, que não faço aqui uma questão de palavras e que, portanto, não atribuo importância alguma a como sejam chamadas os dois conceitos, senão ao fato de que sejam designados com nomes distintos ou, pelo menos, a que se acentue de algum modo a diferença entre eles. Enquanto isso, e até que se proponha uma terminologia melhor, chamo por minha conta e meio de prova a atividade do juiz mediante a qual busca a verdade do fato a provar, e fonte de prova ao fato do qual se serve para deduzir a própria verdade.[12]

Quanto ao ônus probatório o mestre Cândido Rangel Dinamarco ensina que:

provar é demonstrar que uma alegação é boa, correta e portanto condizente com a verdade. O fato existe ou inexiste, aconteceu ou não aconteceu, sendo portanto insuscetível dessas adjetivações ou qualificações. As alegações, sim, é que podem ser verazes ou mentirosas – e daí a pertinência de prova-las, ou seja, demonstrar que são boas e verazes.[13]

Dessa forma, parece bastante equivocada e ultrapassada a interpretação de que o Poder Judiciário não está autorizado a realizar o controle do mérito do ato administrativo que resulta na cassação do mandato do agente político, pois este entendimento absurdo tem se tornado terra fértil para prática de atos imbuídos de interesses pessoais, muitas vezes sem nenhuma prova concreta quanto à prática do ato ilícito pelo agente político.

O posicionamento acerca da impossibilidade de o Poder judiciário realizar o controle do mérito do processo de cassação de mandato eletivo resulta na instabilidade política vivenciada ultimamente, pois os detentores de mandatos concedidos democraticamente pelo povo muitas vezes são destituídos de seus cargos em decorrência de processo político de cassação, mesmo inexistindo prova concreta acerca do crime de responsabilidade político-administrativa.

Tal posicionamento é incompatível com o Estado Democrático de Direito, tendo em vista que o julgamento político deve ser devidamente fundamentado nas provas produzidas ao logo do processo de cassação, não podendo existir discricionariedade dos membros do Poder Legislativo na condução e julgamento do processo político de cassação de mandato eletivo.

Peço as devidas venias para discordar do posicionamento acerca da impossibilidade de o Poder Judiciário imiscuir-se no mérito administrativo do processo político de cassação de mandato, ao argumento equivocado de que o Judiciário somente deve averiguar se foi observado o devido processo legal em seu aspecto formal, isto é, observar se foram respeitados todos os prazos legais na condução do processo, bem como demais regras procedimentais. Isto é insuficiente em Estado Democrático de Direito, pois em todo e qualquer processo que interferir na esfera jurídica de outrem deve ser assegurada a garantia do devido processo legal em seu aspecto substancial, ou seja, deve ser assegurado o direito de dizer, contradizer, produzir provas e seus argumentos serem levados em consideração para a construção do provimento final.

Dessa maneira, não basta o processo de cassação obedecer às formalidades previamente fixadas, além disto, deve conter conjunto probatório robusto acerca da ilegalidade imputada ao processado, pois conforme argumentado linhas atrás, a cassação do mandato eletivo deve ser medida de ultima ratio.

A falta de carisma do detentor do mandato, seu posicionamento ideológico, sua orientação sexual ou religiosa ou por fatos praticados pelos seus assessores sem o conhecimento e participação, não pode ser pano de fundo para lastrear o processo de cassação de mandato eletivo, conforme paulatinamente vem ocorrendo nas últimas décadas.

O detentor de mandato eletivo não pode ser penalizado tão somente porque seu subordinado praticou um ato ilícito sem sua participação e conhecimento, até porque o direito brasileiro veda a responsabilização objetiva. Dessa maneira, somente é possível a penalização do agente político, com a perda do mandato eletivo, quando restar comprovado que ele praticou ato ilícito a título doloso ou que tal ato foi praticado com sua anuência ou conhecimento, pois na atual ordem jurídica vigora a responsabilização subjetiva.

Sendo assim, o processo de cassação de mandato eletivo ser instruído com provas robustas acerca do ilícito praticado pelo detentor do mandato, além da decisão da cassação ser devidamente motivada e congruente, isto é, os motivos devem ser determinantes, conforme manifestou o STJ no julgamento do MS 15.290/DF, in verbis: (...) “há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido”.[14]

Do mesmo modo posicionou o STJ no julgamento do AgRg no RMS 32437/MG, eis a ementa do julgado:

Administrativo. Exoneração por Prática de Nepotismo. Inexistência. Motivação. Teoria dos Motivos Determinantes.

1. A Administração, ao justificar o ato administrativo, fica vinculada às razões ali expostas, para todos os efeitos jurídicos, de acordo com o preceituado na teoria dos motivos determinantes. A motivação é que legitima e confere validade ao ato administrativo discricionário. Enunciadas pelo agente as causas em que se pautou, mesmo que a lei não haja imposto tal dever, o ato só será legítimo se elas realmente tiverem ocorrido.

2. Constatada a inexistência da razão ensejadora da demissão do agravado pela Administração (prática de nepotismo) e considerando a vinculação aos motivos que determinaram o ato impugnado, este deve ser anulado, com a consequente reintegração do impetrante. Precedentes do STJ.

3. Agravo Regimental não provido.[15] (Grifos).

Ademais, não basta a formulação de denúncia genérica sem a individualização da prática do crime doloso de responsabilidade político-administrativa pelo detentor do mandato outorgado pelo povo, ou seja, a denúncia formulada em desfavor do agente deve conter a individualização da conduta, bem como provas concretas acerca do ato ilícito praticado pelo processado, isto é, a justa causa, que se consubstancia-se no lastro probatório mínimo e firme, indicativo da autoria e da materialidade, sob pena de colocar em risco o desejo do eleitorado manifestado nas urnas.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem manifestado que o ato político-administrativo de cassação de mandato eletivo sujeita-se à análise de razoabilidade e proporcionalidade (justa causa), veja-se:

Processo Câmara Municipal – Denúncia de cidadão - Cassação - Mandato de Prefeito - Infração político-administrativa - Impossibilidade: - Não há justa causa para cassação do mandato do prefeito, quando acusado de subcontratação para execução de objeto de licitação operada em gestão anterior.  (TJSP;  Apelação Cível 1000139-11.2018.8.26.0581; Relator (a): Teresa Ramos Marques; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Público; Foro de São Manuel - 2ª Vara; Data do Julgamento: 02/07/2020; Data de Registro: 02/07/2020). (Grifos).

Agravo de instrumento tirado de decisão que, nos autos de pretensão anulatória, indeferiu o pedido de tutela de urgência que almeja a suspensão dos efeitos da decisão emanada pela Câmara Municipal de Piquete, alusiva ao Decreto nº 408/2018, que resultou na cassação do mandato de Prefeito da Agravante Direito Administrativo Controle judicial - Ato político-administrativo sujeito à análise de razoabilidade e proporcionalidade (justa causa) Conteúdo flagrantemente desmedido Conservação de bens públicos devidamente justificada, conforme orçamento, com as prioridades fixadas pelo Executivo local Decisão reformada Recurso provido. (STJ - AgRg no RMS 32437/MG, 2ªTturma, Rel. Ministro Herman Benjamin,j.22/02/2011, DJe 16/03/2011). 

APELAÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO MEDIATO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. Objeto da ação. Anulação da cassação do mandato do prefeito pela Câmara Municipal, em razão da suposta infração praticada, especificamente, para a majoração da taxa de lixo municipal no exercício de 2014, sem que houvesse prévia autorização legal. Controle jurisdicional. Admissibilidade para verificação da legalidade formal e dos motivos que ensejaram o processo. Teoria dos motivos determinantes. Precedentes do STJ. Mérito. Cassação oriunda da imputação de infração político administrativa por ato do Prefeito que supostamente majorou a taxa de lixo por decreto para o exercício de 2014, sem previsão legal. Inocorrência. O aumento do tributo ocorreu devido à adoção de método de cálculo previsto em lei, embora diverso da metodologia utilizada anteriormente. Ausência da demonstração de atitudes ilegais por parte do Prefeito no tocante à majoração do valor da taxa de lixo. Sentença mantida. Negado Provimento ao Recurso. (TJSP; Apelação Cível 1002669-93.2014.8.26.0462; Rel. José Maria Câmara Junior; 8ª Câmara de Direito Público; j.18/10/2017).

O posicionamento adotado pelo Tribunal de Justiça Paulista é digno de aplausos, tendo em vista que não pode ser aceito como normal a cassação de mandato eletivo unicamente por questões políticas ou por interesses escusos, visto que a cassação lastreada nestes fundamentos nunca poderá ser classificada como um evento dentro da normalidade, pois em qualquer tipo de condenação, inclusive no julgamento pela prática de crime de responsabilidade político-administrativa, realizado pelo Poder Legislativo, exige-se a comprovação da prática de ato ilícito.

Insta salientar que, para a cassação de mandato eletivo, é necessária a comprovação da prática de ato doloso em desfavor da Administração Pública, isto é, não é qualquer ato antijurídico que pode resultar na cassação do mandato eletivo, visto que a retirada do mandato somente deve ser reservada para os casos graves, ficando de fora os atos praticados com meras irregularidades.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos relatados, conclui-se que o Poder Judiciário pode e deve realizar o controle do mérito do administrativo de cassação de mandatos eletivos de agentes políticos, até porque o artigo 5º, XXXV, da Constituição de 1988 estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto, o Poder Judiciário pode ser acionado toda vez que houver lesão ou ameaça de direito, mesmo em se tratando de processo de cassação de mandato eletivo instaurado pelo Poder Legislativo.

O Poder Legislativo não pode ter uma “carta em branco” para conduzir o processo de cassação de mandato eletivo da forma que bem entender, visto que a vontade popular somente pode ser afastada em situações graves e com respaldo em material probatório, que a testa a prática de ato doloso contra os interesses da Administração Pública.

Se não existir prova robusta do ato ilícito praticado pelo agente político não há porque cassar o mandato eletivo. Do contrário, o Poder Judiciário deve intervir e declarar a nulidade do ato administrativo que resultou na cassação, pois em um Estado de Direito não deve prosperar a condenação sem lastro probatório acerca dos atos ilícitos.

Nos últimos tempos houve a disseminação de cassação de mandatos eletivos Brasil afora, muitas vezes sem existir prova concreta da prática do ato ilícito imputado ao agente político, não passando as imputações de meras suposições.

Ora, na atual conjuntura jurídica não podem ser admitidas situações como estas, onde o mandato é extirpado mesmo não existindo prova concreta acerca dos fatos imputados. Pelo atual e equivocado entendimento basta a instauração de um processo de cassação respeitar os aspectos formais para que o detentor de mandato seja despojado de seu cargo concedido pelo povo, mesmo que não tenha prova robusta, pois segundo este posicionamento não caberia ao Judiciário analisar o mérito administrativo

Este entendimento deve ser revisto urgentemente, pois toda vez que houver lesão ou ameaça de direito deve o Judiciário ser acionado e agir para afastar a violação de direito questionada, mesmo em se tratando de um julgamento de cassação de mandato eletivo, tendo em vista que não foi conferido ao Poder Legislativo o direito de cassar mandato eletivo sem existir prova acerca do ato ilícito doloso imputado ao detentor de mandato eletivo.

Dessa maneira, faz-se necessário mudar urgentemente o posicionamento de que o Poder Judiciário não pode realizar a sindicabilidade do julgamento de cassação de mandato eletivo, visto que tal posicionamento não coaduna com o paradigma do Estado Democrático de Direito inaugurado com a promulgação da Constituição Republicana de 1988, especialmente com a norma contida no inciso XXXV do artigo 5º da CRB, o que deve ser levado a sério pelos juristas.

 

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[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32 ed. rev., ampl. e atual.  São Paulo: Atlas, 2018, p.105.

[2]  MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155/156.

[3] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 16 ed. rev. e atual – São Paulo, 2008. p. 414.

[4] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 32.

[5] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo: 2007, p. 937/938

[6] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32 ed. rev., ampl. e atual.  São Paulo: Atlas, 2018, p.57/58.

[7] TJMG - Apelação Cível 1.0684.15.000618-8/001, Relator: Des. Edgard Penna Amorim, 1ª Câmara Cível, julgamento em 13/02/2019, publicação da súmula em 18/02/2019.

[8] LÔBO, Edilene. Julgamento de Prefeitos e Vereadores. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 141.

[9] Vale transcrever os ensinamentos do mestre Fredie Didier Jr. acerca necessidade de garantir ao jurisdicionado o devido processo legal substancial: “Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado. Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do magistrado – e isso é poder de influência, poder de interferir na decisão do magistrado, interferir com argumentos, interferir com idéias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se implementa, pura e simplesmente, com a ouvida, com a participação; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão”. (DIDIER, Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2008).

[10] STF - Trecho do voto do Ministro Celso de Mello no MS 22494/DF, julgado em 19/12/1996, DJ 27-06-1997.

[11] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 26° ed., Editora Forense, ano 1999, vol.1, p. 423.

[12] CARNELUTTI, Francesco. A prova Civil. Lisa Pary Scarpa (trad.) 2. Ed. Campinas: Bookseller, 2002, p.99.

[13] DINAMARCO. Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, v.3, p. 58.

[14] STJ - MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, j. 26/10/2011

[15] STJ - AgRg no RMS 32437/MG, 2ªTturma, Rel. Ministro Herman Benjamin,j.22/02/2011, DJe 16/03/2011.

 

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