O contribuinte do ICMS e a autonomia do estabelecimento – Por Velocino Pacheco Filho

19/04/2017

A autonomia do estabelecimento e o conceito de contribuinte têm produzido alguma perplexidade, principalmente em face da legislação do ICMS que, por vezes, parece admitir o estabelecimento como contribuinte autônomo.

No entanto, para figurar no polo passivo da relação jurídica tributária é necessário ser sujeito de direitos e de obrigações, ou seja, ser dotado de personalidade, natural ou jurídica, o que não é o caso do estabelecimento.

O art. 1.142 do Código Civil considera estabelecimento “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária”. Pode ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza (art. 1.143). Conforme Fábio Ulhoa Coelho, estabelecimento é o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração de sua atividade econômica, compreendendo os bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa, como as mercadorias em estoque, máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia etc. Trata-se de elemento indissociável da empresa. Não existe como dar início à exploração de qualquer atividade empresarial, sem a organização de um estabelecimento (COELHO, 2005, p.96).

Já o contribuinte, conforme inciso I do parágrafo único do art. 121 do CTN, é definido como aquele que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador. No caso do ICMS, a Lei Complementar 87/1996 define contribuinte como qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadorias ou preste serviço de transporte interestadual ou intermunicipal ou de comunicação.

No caso de transmissão do estabelecimento, o adquirente responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano (CC, art. 1.146). Dispõe ainda o Código que o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência, salvo no caso de autorização expressa (art. 1.147).

O Código Tributário Nacional (CTN), art. 133, por sua vez, dispõe que a pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir estabelecimento comercial ou industrial de outra e continuar a respectiva exploração, responde pelos tributos, relativos ao estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato, (i) integralmente, se o alienante cessar a respectiva exploração; ou (ii) subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses, a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio ou indústria. Em outros termos, o sucessor responde pelas dívidas tributárias do sucedido.

Embora o § 3º do art. 11 da Lei Complementar 87/1996 conceitue estabelecimento como o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiros, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, o inciso II desse parágrafo diz que é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular. Essa autonomia deve ser vista restritivamente, como centros de apuração do imposto devido ou para fins de cumprimento de obrigações instrumentais do contribuinte. Porém, não constitui razão suficiente para dar ao estabelecimento o status de contribuinte autônomo.

Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça (Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, REsp 939.262 AM, DJe de 9-12-2011) entende que não é cabível suprir, com o fornecimento de certidão negativa relacionada a operações de filial, a exigência de prova de regularidade fiscal na celebração de atos ou negócios jurídicos perante o Poder Público ou terceiros, em nome da própria pessoa jurídica. Em casos tais, é a pessoa jurídica - e não a filial, que sequer tem personalidade jurídica própria - quem assume os direitos e obrigações decorrentes do ato ou do negócio celebrado e, portanto, quem assume, com todo o seu patrimônio, a correspondente responsabilidade. Acrescenta a Turma que, nesse caso, a finalidade da certidão negativa é a de comprovar a regularidade fiscal em atos e negócios jurídicos assumidos ou a serem assumidos pela pessoa jurídica e em cumprimento dos objetivos previstos em seu contrato social.

Sobre o tema, já lecionava Souto Maior Borges que a tributação dos estabelecimentos autônomos de um só contribuinte constitui aspecto particular do problema da capacidade tributária dos entes desprovidos de personalidade jurídica. Os estabelecimentos autônomos de uma empresa constituem organismos a que a lei tributária confere o caráter de sujeitos passivos, sem que tenham personalidade jurídica de direito privado, já que pessoa jurídica é a empresa considerada como unidade econômica. Embora os estabelecimentos autônomos não sejam pessoas jurídicas, a lei lhes confere aptidão para ser sujeitos passivos do imposto, o que importa em lhes reconhecer uma certa capacidade jurídica de direito tributário. Trata-se, conclui o autor, de uma ficção da legislação ordinária do Estado-membro que equipara esses organismos a contribuintes do ICM/ICMS – fictio est falsitas pro veritate accepta (BORGES, 1970, p. 41).

Pois, apesar de cada estabelecimento da empresa constituir uma unidade funcional autônoma, ele faz parte de uma mesma massa patrimonial. Tanto assim é que o patrimônio total do empresário constitui garantia comum de todos os credores, independentemente dos respectivos créditos estarem ou não vinculados à exploração deste ou daquele estabelecimento. Da mesma forma, a falência alcança todos os estabelecimentos do empresário, que formam uma única “massa falimentar”. Não há, portanto, como atribuir ao estabelecimento isolado a natureza de um patrimônio dotado de autonomia em relação ao patrimônio geral (LEAL, 2007, p. 166).

Para Roque Antonio Carrazza, a autonomia do estabelecimento, equiparando a filial a um terceiro, desnaturou a regra-matriz constitucional do ICMS, ferindo o direito que a Carta Magna dá aos contribuintes de só pagar este imposto quando realmente se configura uma operação mercantil. Assim, a remessa de mercadorias dentro da mesma empresa não seriam operações mercantis (CARRAZZA, 2005, p.54). Nesse mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 166: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

Ainda de acordo com Carrazza, o reconhecimento, por ficção, da existência de operações tributáveis entre estabelecimentos da mesma empresa somente se justifica para preservar as fontes de receitas tributárias e financeiras dos Estados.


Notas e Referências:

BORGES, José Souto Maior. O Fato Gerador do ICM e os Estabelecimentos Autônomos. Revista de Direito Administrativo n° 103. Rio de Janeiro: FGV, 1970.

CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

LEAL, Hugo Barreto Sodré. Responsabilidade Tributária na Aquisição do Estabelecimento Empresarial. São Paulo: Quartier Latin, 2007.


 

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