Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Depois de ter sido diplomaticamente impedido de disputar as últimas eleições para Presidência da República Lula está de volta ao imaginário político nacional. A retomada dos direitos políticos do personagem que melhor representa a “vitória” dos trabalhadores estimula a sensação de alívio, reascendendo a esperança de encontrar os rumos de um Brasil que dizia ter a pretensão de realmente existir para si. Surge, então, a pergunta: é possível criar um país voltado para as classes que o habitam a partir da adoção de uma espécie de neoliberalismo progressista?
Sustento que não. De saída é preciso ter mente que a manutenção e a contínua melhoria das condições de vida da classe trabalhadora não pode ser alcançada por um país periférico que não desmancha as identidades raciais que imediatamente o organizam. É por tal razão que a palavra combate não pode ser utilizada pelo tratamento que o neoliberalismo progressista confere às identidades coloniais.
Para elaborar o conceito de neoliberalismo progressista Nancy Fraser aponta que a reprodução social capitalista está alicerçada nas noções de direito e justiça. A primeira guarda relação com a distribuição ou concentração da riqueza socialmente produzida, enquanto a segunda, isto é, a justiça, gira em torno do reconhecimento que os sujeitos extraem no curso das relações sociais que impulsionam. Quer dizer, embora a posição ocupada pelo sujeito na divisão social do trabalho determine o grau de acesso aos insumos necessários à reprodução da própria vida, existe, para além da posição de classe, outros fatores que configuram e integram os indivíduos à reprodução social.
Pois bem, com a derrota da transição socialista incorporada pela União Soviética o modelo de produção pautado na acumulação privada de capitais pôde experimentar o que Carranza (2016) nomeia como “paz duradoura”, permitindo que os Estados-nacionais que coordenam a dinâmica capitalista pudessem concluir o desmantelamento das políticas sociais que espelhavam a organização das repúblicas soviéticas. Na prática, os recursos econômicos que eram direcionados aos trabalhadores radicados nos países centrais passaram a ser abocanhados por grandes proprietários privados, desarticulando, nos países que desempenham papel central na dinâmica capitalista, aquilo que usualmente é chamado de Estado-social.
A aguda reconcentração dos recursos derivados do trabalho socialmente produzido não seria viável sem uma narrativa que substituísse as lutas sociais diretamente vinculadas ao modelo de alocação dos bens socialmente produzidos, ou seja, na medida em que as condições da luta de classes permitiam a transferência dos recursos dos trabalhadores para os capitalistas era imperioso que organização social sobrevalorizasse as lutas por reconhecimento em pleno prejuízo das lutas orientadas à definição das formas de distribuição da riqueza coletivamente produzida.
A centralização do reconhecimento social em detrimento das condições concretas de sobrevivência não é capítulo inaugurado pelo neoliberalismo progressista, encontrando registro na exaltação da identidade colonial Branco como forma de impedir a articulação política supra racial entre os novos e os antigos trabalhadores[1] “livres” no período que sucedeu a Guerra de Secessão Norte Americana (Du Bois, 2013, p. 680). O predicado “livre” que qualifica o trabalho no pós-abolição do escravismo racial não impediu que os proprietários dos meios e fatores sociais da produção pudessem tomar para si o excedente produzido pelo trabalhador após a obtenção do trabalho necessário. Deve-se sublinhar, portanto, que a liberdade que o capital concede ao trabalhado está restrita a disputa travada entre trabalhadores pela chance de serem explorados pela acumulação capitalista.
É a continuidade da apropriação privada do trabalho coletivo que impõe a permanência da organização racializada da divisão social do trabalho mesmo após o fim da escravização legal e a obtenção da “independência” de grande parte das Colônias europeias ao redor do mundo. As identidades raciais que sobreviveram ao colonialismo em forma de colonialidade enredam os Estados-nacionais latino-americanos a conflitos internos que os impedem até mesmo de concretizar projetos de desenvolvimento nacional independente, ajudando a explicar, no caso do Brasil, porque o protagonismo da burguesia industrial em relação à burguesia agrária empacou diante da realização de uma modesta reforma agrária nacional desenvolvimentista. É certo, contudo, que a dimensão interna da organização racial da sociedade de classes é parte integrante da totalidade. Quer dizer, enquanto nos Estados Unidos da América a acumulação interna de capitais foi mantida a partir da exaltação da identidade colonial Branco e da criação do White Trash, impedindo, assim, o acirramento da luta de classes e a ameaça do capitalismo a partir da organização supra racial da classe trabalhadora, no Brasil a organização social imediatamente estruturada a partir das identidades raciais garante a posição subalterna do país na divisão mundial do trabalho, mantendo-o como economia preponderantemente primário exportadora e incapaz de lidar com processos produtivos complexos a partir de aplicações tecnológicas próprias. Mesmo assim, ao contrário do que diz o Banco Mundial é preciso pontuar que não falta desenvolvimento ao Brasil, ou seja, a posição subordinada na divisão mundial do trabalho guarnecida pela organização imediatamente racializada da sociedade brasileira qualifica e integra o Brasil à economia mundial, tornando-se, no interior do capitalismo, insuperável.
Na medida em que a subordinação do Brasil aos grandes centros do capitalismo não pode ser desfeita sem o perecimento das identidades raciais, torna-se importante refletir sobre o neoliberalismo progressista e os esperançosos anos do Brasil na companhia do Partido dos Trabalhadores. Antes, no entanto, farei algumas ressalvas com o objetivo de evitar a transplantação (RAMOS, 1983) do conceito de Nancy Fraser para realidade brasileira. Ao contrário dos Estados Unidos da América, o Brasil conheceu prestações sociais mais extravagantes no mesmo momento em que fora apresentado ao neoliberalismo. Significa que o conceito de neoliberalismo progressista desenvolvido por Nancy Fraser não pode ser aplicado no Brasil para explicar o desmonte de um Estado de Bem-Estar Social que não existia ou para explicar a criação de prestações sociais que foram universalizadas no país junto à adoção de uma série de medidas neoliberais.
A partir da redução sociológica (RAMOS, 1983), no entanto, o conceito de Fraser ajuda a compreender os resultados do equilíbrio estabelecido entre a privatização da infraestrutura produtiva brasileira e a exaltação progressista das lutas vinculada ao reconhecimento. Vamos lá, por mais que o Brasil não tenha conseguido alcançar um Estado de Bem-Estar social, a experiência nacional desenvolvimentista legou ao Estado brasileiro a exploração privativa de alguns setores econômicos vitais para acumulação capitalista. Mesmo que o progressivo desfazimento do controle estatal sobre os referidos setores tenha sido acompanhado e sucedido pela criação de algumas políticas sociais de caráter universal, a legitimidade da acumulação de capitais articulada a partir das privatizações nunca foi colocado em xeque.
Em retorno às formulações de Du Bois, interessante supor que se é possível utilizar o reconhecimento a partir da exaltação reacionária das identidades coloniais e como fonte de desarticulação da classe trabalhadora, é igualmente viável defender políticas de igualdade que não combatem a reprodução das identidades raciais-coloniais e na maior parte das vezes ignoram a disputa organizada em torno da distribuição da riqueza socialmente produzida.
Contudo, é preciso lembrar que as consequências da desarticulação entre os dois campos de luta não são pequenas. O aumento da concentração da propriedade privada defendido pelo (neo)liberalismo fragiliza as condições de vida dos trabalhadores como um todo, incentivando-os a supor – alô WhatsApp – que a responsabilidade pela piora das suas condições de vida reside em políticas de reconhecimento e não nas políticas de maior concentração da propriedade privada e do produto do trabalho coletivo promovidas a pesados recursos pelo (neo)liberalismo.
Como resultado, a condição de vida dos trabalhadores piora a nível geral, piorando mais, no entanto, nas frações mais expostas da classe. Há, contudo, fator de complexidade no caso brasileiro. A maior parte da população brasileira é subsumida à identidade racial Negro, podendo possuir pertença a outras identidades dominadas. Na medida em que uma das características do neoliberalismo progressista é a defesa uníssona do reconhecimento de sujeitos atravessados por opressões “pós classe social”, torna-se viável a criação de programas de representação em espaços tradicionalmente ocupados pelos estratos mais protegidos da classe trabalhadora (classes médias) e da burguesia, mantendo-se, no plano macroeconômico, a política de concentração da propriedade privada através da restrição ideológica imposta sobre os gastos e prestações estatais diretas.
Mesmo que o esboço de Estado de Bem-Estar social brasileiro tenha sido apresentado à população ao mesmo tempo do neoliberalismo, é preciso levar em consideração que a manutenção da legitimidade sobre políticas de representação/participação de sujeitos subsumidos a identidades dominadas em lugares de prestígio social depende da desconcentração dos fatores sociais de produção e da desconcentração do produto do trabalho coletivo. Em outros termos: a participação de sujeitos socialmente identificados a identidades dominadas em lugares de prestígio social não gera tantos conflitos quando as condições da maior parte da classe trabalhadora são menos aviltantes. A partir do momento em que as condições de vida da classe trabalhadora como um todo começam a piorar, a responsabilidade sobre a piora é facilmente deslocada para as políticas de representação dos sujeitos identificados às identidades coloniais, incrementando o reacionarismo entre a classe trabalhadora. Eis as razões pelas quais a luta pela humanização e pelo reconhecimento não pode em hipótese alguma estar dissociada da luta pela desprivatização e pela coletivização dos fatores produtivos e dos resultados obtidos da produção.
É possível dizer o ganho representativo do maior número da população brasileira foi acompanhado da piora das condições de vida da maior parte da classe trabalhadora brasileira, permitindo que a adoção de políticas de reconhecimento/representação fosse simbolizada como causa da piora generalizada das condições de vida classe trabalhadora como um todo.
Notas e Referências
CARRANZA, Laura González. LA USAID Y LAS ESPINAS DE LA PAZ-DESARROLLO. 1ª ed. Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2016.
DU BOIS, W. Black reconstruction in America. New York: Simon and Schuster, 2013.
FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018.
RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro: esboço de uma teoria geral da administração. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983.
[1] “O elemento raça foi enfatizado para que os proprietários pudessem obter o apoio da maioria dos trabalhadores brancos e tornar mais possível a exploração da mão de obra negra. Mas a filosofia racial veio como uma coisa nova e terrível para tornar impossível a unidade do trabalho ou a consciência de classe de trabalho. Enquanto os trabalhadores brancos do sul puderam ser induzidos a preferir a pobreza à igualdade com o negro, o movimento trabalhista no sul foi impossibilitado (DU BOIS, p. 680).”
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