Coluna semanal: A teoria se aplica na prática
Coordenador: Thiago Minagé
Nas últimas décadas, vem se percebendo um intenso movimento político de reformas legislativas, no âmbito processual penal em países latino-americanos. Essas reformas envolvem a substituição de sistemas inquisitórios por sistemas acusatórios, a partir de uma efetiva redução da iniciativa probatória do juiz, introduzindo-se mecanismos claros de um processo penal adversarial e, sobretudo, negocial, em que acusação e defesa - por meio de um pressuposto fair play - ocupam posições de equilíbrio para o acordo acerca de medidas repressivas (penas privativas de liberdade, inclusive), para evitar o desgaste de um longo processo de conhecimento[1].
Nesse contexto das reformas, a prisão preventiva, vem (ao menos aparentemente) experimentando uma transição de um paradigma de encarceramento e automatismo a uma lógica de precaução e redução de danos. Um dos principais objetivos de todas essas mudanças está na racionalização do uso da prisão preventiva (inclusive com a aferição de rigorosos prazos legais de duração), de acordo com os preceitos constitucionais compatíveis com as normas internacionais de direitos humanos, o que, evidentemente, é positivo e recomendável[2].
A instituição da prisão preventiva é definida como a privação da liberdade que não é resultado de uma sanção penal, mas de uma medida garantidora de uma atuação acusatória submetida à análise jurisdicional, para que o acusado não evite ou dificulte a investigação ou o desenvolvimento do processo judicial. Esta medida, enquanto restritiva de liberdade, sem uma sentença, destina-se a ser uma medida excepcional, subsidiária, razoável e proporcional, de acordo com a doutrina e jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Importa, pois, insistir nesse ponto: a finalidade da prisão preventiva é totalmente circunscrita a uma específica e excepcional necessidade processual, isto é, trata-se de uma nítida medida cautelar. Destarte, não se confunde (ou, ao menos, não se deveria confundir) com a prisão definitiva (prisão-pena), que resulta de uma sentença condenatória transitada em julgado. Isso significa que não se pode, por meio da prisão preventiva, atingir objetivos que são próprios (se é que os são) da prisão definitiva, tais como: evitar futuros delitos, fornecer "resposta à sociedade”, garantir a “paz e a segurança”, proteger bens jurídicos etc.
Porém - e ainda que equivocada - é nítida a tendência de todos os envolvidos no processo penal (desde os órgãos públicos, passando pela vítima e até mesmo a sociedade) a enxergarem na prisão preventiva a principal resposta a ser dada, pelo Estado, no que se refere a um resultado mais rápido e perceptível no combate à “criminalidade"[3].
Com esses dados, não é demasiado afirmar que a prisão preventiva - desde seu nascedouro - vem se convertendo em um instrumento privilegiadíssimo de coerção e exercício do poder estatal, desafiando, inclusive, a defesa dos imputados, que, por mais atuante que seja, dificilmente consegue combater o uso desmedido de uma medida que - ao fim e ao cabo - vem acompanhada de um discurso muito sedutor, sobretudo para justificar uma (pseudo) necessidade de garantir a ordem e a segurança social[4].
Se nos mantivermos estritamente no campo das medidas cautelares pessoais (como convém fazê-lo), facilmente concluiremos que a prisão preventiva é a mais prejudicial e gravosa dentre todas. Foi considerada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como a medida que pode "enterrar a vida" quando aplicada ao acusado de um crime [caso Tibi x Equador[5]]. Sua utilização deve ter caráter excepcional, limitada pelos princípios de legalidade, presunção de inocência, necessidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática (Instituto de Reeducação Juvenil, parágrafo nº 228[6]).
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos expressa que a detenção preventiva das pessoas a serem julgadas "Não deve ser a regra geral" (Artigo Nº. 9.3[7]).
As Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Medidas Cautelares dizem que, "somente será feito o recurso à prisão preventiva como último recurso" (Regra Nº. 6.1 RT[8]).
A Convenção Americana determina que "ninguém pode ser privado de sua liberdade física, exceto pelas causas e condições fixada antecipadamente pelas constituições políticas dos Estados Partes ou por leis promulgadas de acordo com elas" e de forma alguma será "arbitrária" (Artigo Nº. 7.2 e Nº. 7.3 CADH[9]).
Esse, pois, o cenário de proteção internacional da liberdade individual, no que concerne à imposição criteriosa de limites para o uso da prisão preventiva. Uma ideia que remonta a Ilustração, um momento histórico em que se fundou uma racionalidade garantista, com o fim de criar obstáculos e toda a sorte de constrangimentos para a limitação do poder do Estado, sobretudo do poder penal. Ou seja, ali no século XVIII, forjaram-se as condições necessárias para o controle do exercício do poder, minimizando a força e maximizando as liberdades[10].
Nesse contexto, a prisão preventiva não pode constituir um tipo de punição antecipada e arbitrária; nem pode ser usada para intimidar ou constranger o imputado a confessar ou colaborar, tampouco pode ser decretada de forma automatizada.
Porém, nada obstante seu carácter restritivo de um instituto de exceção, na prática, a medida (cautelar) de prisão preventiva é usada com frequência, de maneira ampla e nada excepcional, e, em geral, pela maioria dos julgadores, com base em políticas (e argumentos) que não estão em conformidade com os direitos humanos.
Em suma: por mais clara que seja a diferença estrutural entre a prisão preventiva e a prisão pena, por mais rígidas que sejam as normas internacionais, no sentido de criar óbices ao uso indiscriminado da prisão preventiva, por mais que parte considerável dos países da América Latina tenha adotado Constituições democráticas que seguem esses mesmos parâmetros e, ainda, por mais que as legislações internas estejam procurando se adequar a esse modelo limitativo de prisão sem condenação, ela segue sendo (ab)usada indiscriminadamente, sem qualquer constrangimento racional de natureza cautelar e funcionando como a primeira alternativa de um processo penal que ainda não compreendeu a sua função: a de garantidor dos direitos individuais da pessoa imputada.
Falar sobre prisão preventiva, após a demarcação das premissas expostas, requer, agora, a compreensão de alguns sentidos no âmbito processual penal: (i) desde a construção científica do processo penal, pautado em um Estado Democrático de Direito, a prisão preventiva, viola, afronta, ataca, nega os mais importantes princípios constitutivos de sua estrutura; (ii) enquanto se fala em redução dos danos e racionalização do uso da prisão preventiva, vivemos em constante período expansivo; (iii) a concepção teórica dessa medida não se adequa à estrutura processual constitucional em vigor; (iv) o encarceramento preventivo, se torna o principal instrumento de ataque aos setores mais vulneráveis, e em período de criminalização[11].
A opção, a partir de agora, será uma avaliação crítica da prisão preventiva, ou melhor, do mau uso que dela se faz, a partir de alguns aportes teóricos de Luigi Ferrajoli e Alberto Binder. Por evidente, a escolha desses autores não é aleatória, mas totalmente vinculada a uma proposta democrática, constitucional e humanista do instituto, fugindo de arquétipos simplistas explicativos, sob pena de quedarmos imersos no senso comum retórico (Warat), que nada contribuirá para compreensão do instituto.
Luigi Ferrajoli, jurista italiano, conhecido entre nós principalmente por conta de seu “Direito e Razão: teoria do garantismo penal”[12], apresenta claramente uma aporia. Uma situação praticamente invencível do ponto de vista da democracia, mas, ao mesmo tempo, de uma singeleza e simplicidade sem iguais: como podem sobreviver, num mesmo sistema, a presunção de inocência e a prisão preventiva, se esta é a negação daquela?
Ou seja, Ferrajoli afiança, sem qualquer constrangimento, que a prisão preventiva viola a presunção de inocência[13]. A conclusão parece óbvia! Se ninguém pode ser considerado culpado, senão depois do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como pode permanecer preso antes disso?
Essa ilação, por si só, deveria ser o bastante para se coibir o uso da prisão preventiva em sistemas que adotam a presunção de inocência como princípio. Mas, como bem alerta il maestro, até mesmo os clássicos iluministas encontraram fórmulas para justificá-la, fazendo com que, desde seu embrião, a prisão preventiva - como medida cautelar - fosse flexibilizada até o ponto de seu total desvirtuamento, em épocas históricas como a do fascismo, no qual a medida passou a apresentar nítido caráter policialesco, servindo como primeira alternativa judicial para o encarceramento de pessoas consideradas “perigosas" ou “indesejáveis”.
Não é demais lembrar que a prisão preventiva, antes do movimento Ilustrado que procurou dar limites a seus contornos, era utilizada - sobretudo na Baixa Idade Média - como mecanismo cautelar de dominação do corpo do imputado para dele se obter a confissão que, num sistema inquisitório, era a “rainha das provas”. Isto é, a prisão preventiva, enquanto mecanismo de controle e obtenção do corpo e da fala, fazia algum sentido dentro de um sistema inquisitório!
Porém, com a mudança de paradigma operada pela Revolução Francesa e tudo o que lhe subjaz, o sistema inquisitório foi (ao menos, aparentemente) perdendo força e cedendo lugar a um modelo de processo penal acusatório, em que a prova deveria ser produzida pela acusação e contra-argumentada pela Defesa, razão pela qual a confissão perde seu locus privilegiado e, com isso, desaparece a necessidade de apropriação do corpo do imputado. Ou seja, do ponto de vista cautelar, a prisão preventiva perdia seu principal fundamento.
Ainda assim, foi ela justificada pelos clássicos dos setecentos. Não mais para obter a confissão, mas, por exemplo, para impedir a fuga ou que se ocultassem provas do delito e desde que extremamente necessária, como sugeria Beccaria[14]. Em síntese, os filósofos da Ilustração construíram belos limites ao instituto da prisão provisória, reconhecendo claramente seu caráter aflitivo e, portanto, sua excepcionalidade. Porém, não chegaram ao ápice de defender sua extinção. Seguia a prisão preventiva, pois, justificada! E, mais grave, tendo que conviver com a presunção de inocência.
E assim permanece até hoje, como acima já apontamos. Um instituto próprio de sistemas inquisitórios que precisa conviver com um modelo democrático de processo penal, o que gera, para dizer o menos, constrangimento aos que verdadeiramente compreendem que a liberdade é a regra.
Uma vez identificada a contradição entre a medida extrema e o princípio da presunção de inocência, Ferrajoli justifica o porquê da ilegitimidade de uma prisão sem juízo (muito embora isso seja quase autoexplicativo), argumentando, de forma muito simples, que em casos excepcionalíssimos, essa medida restritiva de liberdade poderia ser perfeitamente substituída por uma espécie de “condução coercitiva” do imputado, nos casos pontuais de tentativa de ocultação ou destruição de provas[15].
Parece-nos importante essa referência à crítica cirúrgica de Ferrajoli, como forma de demonstrar o quanto o garantismo penal - para além de uma teoria de legitimação - pode e deve ser manejado como critério epistemológico de deslegitimação.
Dito de outra forma: o Garantismo constrói uma arquitetura rígida de princípios (axiomas), ou regras do jogo do Processo Penal democrático, sem as quais a intervenção sobre a liberdade do cidadão não está autorizada. Isso implica dizer que, no caso da prisão preventiva, ou ela é definitivamente tomada como ilegítima, na essência, obrigando o juiz a utilizar meios alternativos para acautelar o processo, ou ela não está autorizada. Sem sombra de dúvidas, tal postura favorece a construção de critérios de deslegitimação, muito mais que legitimação. E quando se busca limites ao abuso do poder, isso é muitíssimo bem-vindo!
A partir de agora, desta feita com apoio em Alberto Binder, identificaremos cinco modelos teóricos de estruturação da prisão preventiva:
1 - Como de costume [infelizmente], o primeiro é de inegável base autoritária, por vários motivos: uso de expressões bélicas [combate ao crime organizado, paridade de armas, luta etc.], e considera a prisão preventiva um verdadeiro instrumento de política criminal, identificando setores da sociedade a serem alcançados e criminalizados de forma antecipada. Pauta-se na ideia de realismo jurídico[16], como um movimento do pensamento humano, nesse caso, voltado para o mundo do direito, devendo ser compreendido quando situado numa certa confluência de tempo e de espaço [talvez aqui, esteja uma possível explicação para a discrepância interpretativa no uso da prisão preventiva quando analisada em locais distintos]. Assim, desconsidera-se a necessidade e respeito às formas. Essa equivocidade na expressão, realismo jurídico, conduzindo na direção da concretude, considera, sobretudo a ascensão do protagonismo operacional do juiz. Palavras de "ordem" ganham relevo, tais como, periculosidade do sujeito e gravidade do fato, conceitos abertos, criticados incansavelmente pela doutrina, justamente, por ensejar um solipsismo acentuado[17]. Como bem colocado por Alberto Binder[18] quien fue detenido es peligroso y seguro ha hecho algo grave y debe seguir detenido. Eis a visão desse modelo teórico: prisão preventiva como ferramenta político criminal de uma política que não pensa em limites e garantias.
2 - Em um segundo momento, podemos observar o reflexo de percepções generalistas do direito processual penal. Trata-se a prisão preventiva como outra medida cautelar qualquer. Ou seja, a prisão é considerada, uma medida que visa assegurar as finalidades do processo, bastando a "demonstração" de verossimilhança de um direito e a necessidade de uma cautela. Toda explicação dispensada à prisão preventiva se pauta nos mesmos termos das demais medidas cautelares. Por conta de sua generalização, deixa-se de lado, qualitativamente, contribuições compreensivas trazidas pela criminologia, pela visão economicista, pelo pensamento do processo penal crítico, tendo como premissa explicativa a "famosa" teoria geral do processo.
3 - O terceiro modelo identificado tem como finalidade a fixação de limites constitucionais à prisão preventiva, fruto de estudos e reflexões sobre encarceramento, tendo como base os preceitos constitucionais, impondo: (i) limites temporais de duração da prisão preventiva; (ii) finalidades específicas para o uso da prisão preventiva; (iii) revisão permanente das decisões que decretam a prisão e (iv) maior clareza nos requisitos (permissivos e impeditivos). Tal perspectiva trabalha com a ideia de reestruturação do pensamento e finalidade do processo penal, em especial, das medidas cautelares pessoais. Uma nova mentalidade sobre a compreensão do atual cenário político-jurídico reclama um retorno às bases teóricas e históricas da legislação processual penal brasileira, inclusive pelas influências que sofreu – e ainda sofre – de ordenamentos jurídicos estrangeiros[19]. Essa perspectiva de modelo adequa-se de forma mais completa aos preceitos humanitários internacionais.
4 - Chegamos ao quarto modelo identificado, onde ocorre verdadeira deslegitimação do uso da prisão preventiva. Uma visão constitucional do processo penal onde a prisão preventiva não encontra amparo. Nesse modelo, o indivíduo tem direito de se manifestar em juízo antes de qualquer ato de encarceramento. Não se permite encarceramento anterior ao processo, em que, a presunção de inocência alcança o ápice de sua aplicabilidade. Como bem colocado por Alberto Binder nos deparamos com a ambivalência, entre direito ao juízo contra o uso da prisão preventiva.
5 - Por último, o quinto modelo, que reconhece o direito ao juízo como primado constitucional de estruturação de todo processo penal. A prisão preventiva não é alçada como ferramenta processual, por falta de amparo constitucional. Pelo contrário, quando usada, afronta a própria Constituição por estar em conflito com ela.
Nas duas últimas décadas, muito se trabalhou para elaboração de uma doutrina que explicasse e regulamentasse a prisão preventiva, desde que, tivesse base constitucional e fosse, indubitavelmente, fundada em princípios constitucionais oriundos dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos. Dentro desse contexto, entendemos que se deveriam construir standards de intolerabilidade da prisão preventiva[20], ou seja, situações negativas, impeditivas do uso da medida prisional. Isso significa que, apenas em casos extremos, que transcendam a construção epistemológica impeditiva de uso, com duração previamente determinada e revisão periódica da necessidade de manutenção é que a prisão preventiva poderá ser utilizada.
Na orientação da prática judicial, os standards de intolerabilidade cumprem uma função oposta aos requisitos autorizadores, pois aqueles indicam o caráter excepcional das medidas prisionais, que são verdadeiras proibições de emitir uma ordem de prisão preventiva antes e durante o processo, superando o contexto positivo de uso da prisão, que se apresenta claramente deficiente.
Vejamos algumas proposições:
(1) Ausência de contraditório prévio, não como orientação ou formalidade, e sim, como verdadeiro instrumento impeditivo. A decisão que decretar a imposição de qualquer medida cautelar, em especial, a prisão preventiva, será nula, caso decretada inaudita altera pars. Sem manifestação defensiva que anteceda o ato decisório, restará considerada ilegal a restrição da liberdade como verdadeiro ato coator arbitrário. O direito de defesa deve ser exercido, desde o momento que uma pessoa é acusada como possível autora de um ato criminoso. Impedir alguém de exercer o seu direito de defesa, desde o início da investigação, implica a sobreposição de direitos, promovendo os poderes de investigação do Estado em detrimento dos direitos fundamentos da pessoa investigada. O direito de defesa impõe ao Estado o dever de viabilizar que o indivíduo, em todos os momentos, seja tratado como verdadeiro sujeito de direitos, e não como objeto da investigação (Corte IDH, caso Barreto Leiva x Venezuela, parágrafo nº 29[21] e Cabrera García e Montiel Flores x México, parágrafo nº 154[22]).
No caso em que a defesa é fornecida pelo Estado, deve ser eficaz, sendo necessário que se adotem todas as medidas adequadas. Se o direito de defesa surgir a partir do momento em que é iniciada uma investigação, o indiciado deve ter acesso e fazer uso da defesa técnica a partir daquele momento, especialmente, na oitiva de testemunhas e interrogatório. Impedir o acesso à assistência defensiva é limitar severamente o direito de defesa, que provoca desequilíbrio processual e deixa o indivíduo sem tutela antes do exercício do poder punitivo. Nomear um defensor público com o único intuito de cumprir uma formalidade processual equivaleria, a uma não defesa técnica, razão pela qual é imperativo que o dito defensor atue como diligência, autonomia e liberdade para proteger as garantias processuais do demandado e assim impedir que seus direitos sejam prejudicados (Cabrera Garcia y Montiel Flores x México, parágrafo nº 155)[23];
(2) A implementação da cultura da audiência em respeito à oralidade, ou seja, a influência inquisitória enraizada na América Latina, prioriza a centralidade da prisão preventiva como 'praxe' do processo penal, uma vez que, a burocratização de tramitação e da escrita, sobrepõe a importância dessa modalidade de prisão, em detrimento da pena, que pode, ou não, ser imposta. A prisão preventiva se torna uma verdadeira pena antecipada daquilo, que pode não vir [condenação]. A intenção de uma alteração dos juízos criminais para incrementação de uma cultura de audiência é uma realidade em países da América Latina que tem por finalidade, garantir os direitos mais básicos dos envolvidos no processo penal, e ainda, concentrar o debate, produção de prova e decisão em um único ato jurídico, amparado nas condições de publicidade, oralidade e contraditório; condição necessária para legitimação dos atos de exercício do poder de tamanha gravidade e intervenção nos direitos individuais dos envolvidos. Assim, o primeiro dado a ser constatado será o deslocamento de centralidade da prisão preventiva no processo para sua efetiva posição de cautelaridade[24].
(3) Falta, falha ou incompletude da fundamentação da decisão sendo estritamente vedado o uso retórico de mera transcrição legislativa, de jurisprudência ou manifestação ministerial, equivalente a mais da metade da decisão proferida. No que concerne à fundamentação do decreto de prisão preventiva, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também possui diversos precedentes. No caso conhecido como López Álvares vs Honduras a corte rechaçou fundamentações genéricas quando a liberdade individual está em jogo[25]. A Corte asseverou que fundamentações genéricas como: características do autor, gravidade do delito e cópias das informações constantes no inquérito policial não são idôneas o suficiente a ponto de basear um decreto de prisão provisória.
É preciso compreender, em definitivo, que na visão de Ferrajoli e Binder a prisão preventiva, por si só, já é um enorme óbice à realização de um processo penal verdadeiramente democrático, pela inegável fragilização que traz ao princípio da presunção de inocência. Por isso - ainda que usemos dos maiores contorcionismos retóricos para justificar essa medida extrema - precisamos ao menos admitir que, sim, ela precisa de muito controle, de regras rigorosas de limitação quanto a seu uso, de prazos fixos previamente definidos.
Notas e referências:
[1] Não é objetivo desse artigo analisar as vantagens e/ou desvantagens de um tal modelo, tendo como parâmetro o Estado Democrático de Direito, muito embora seja uma tarefa inarredável aos que se dedicam ao estudo do Direito Processual Penal. Como sugere o título, o artigo cingir-se-á à apreciação do instituto da prisão preventiva.
[2] À parte a clara tentativa de racionalizar o (ab)uso da prisão preventiva, o que se percebe não raro, em modelos negociais, é uma tendência à substituição da prisão preventiva pela definitiva, já que, em curtíssimo espaço de tempo (juízos abreviados, para os crimes que o comportam), o imputado já recebe a pena (negociada), desaparecendo, assim, a finalidade “preventiva” da custódia.
[3] As aspas se justificam, pois compreendemos, com a Criminologia Crítica, que não há uma “criminalidade em si”, mas um processo seletivo de criminalização (por todos, VERA ANDRADE, em Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: REVAN; ICC, 2012 (Pensamento criminológico; 19)
[4] RIEGO, Cristian. La Oralidade En La Discusión Sobre La Prisión Preventiva. IN: Estudios Sobre El Nuevo Proceso Penal – Implementación y Puesta En Prática. Associación de Magistrados Del Uruguay. Montevideo: FCU, 2017, p. 107.
[5] http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_114_esp.pdf
[6] “A Corte considera indispensável destacar que a prisão preventiva é a medida mais severa que pode ser aplicada ao acusado de um crime, motivo pelo qual sua aplicação deve ter um caráter excepcional, em virtude de que se encontra limitada pelo direito à presunção de inocência, bem como pelos princípios de necessidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática”. O Juiz Cançado Trindade comunicou à Corte seu Voto Fundamentado, que acompanha esta Sentença. Sergio García Ramírez Presidente Alirio Abreu Burelli Oliver Jackman Antônio A. Cançado Trindade Cecilia Medina Quiroga Manuel E. Ventura Robles Diego García-Sayán Víctor Manuel Núñez R. Juiz ad hoc. Acessado em 13/10/2018 em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/1384a89a0996f1ea1767dc3533187a82.pdf
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm
[8]http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38.pdf
[9] http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm
[10] Sentido empregado por LUIGI FERRAJOLI, em Derecho Y Razón: teoría del garantismo penal. 4a edição. Editorial Trotta, 2000.
[11] O CEJA – Centro de Estudios Judiciales de las Américas – Publicou em abril de 2013 um trabalho denominado PRISIÓN PREVENTIVA EN AMÉRICA LATINA: ENFOQUES PARA PROFUNDIZAR EL DEBATE – quepode ser acessado pelo endereço eletrônico: http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/3130/prisionpreventivaenamericalatina.pdf?sequence=1&isAllowed=y; Ainda sobre o assunto, Alberto Binder ao tecer comentários sobre a prisão preventiva diz: La prisión preventiva es la instituición maldita del derecho procesal. Los es en vários sentidos. Endereço eletrônico: http://inecip.org/wp-content/uploads/INECIP-Amicus-Curiae-Alberto-Binder-Caso-Gregorio-Santos.pdf
[12] Importante frisar que, muito embora “Direito e Razão” seja o livro de Ferrajoli mais referido no Brasil, o Garantismo nele não se esgota. Todo o contrário! Há outra obra de fôlego (“Principia Iuris”), além de inúmeros textos, artigos e coletâneas, em que Ferrajoli expõe, criteriosamente, as bases de sua teoria, bem como dialoga com seus críticos. Importante mencionar esse dado, pois, infelizmente, há uma péssima prática de, pelas bandas de cá, desautorizar-se o Garantismo, sob a falácia chula (e mentirosa) de que seria uma teoria para “proteger bandidos”, ou que seria conivente com o crime, ou, ainda, que pregaria a impunidade. Nada mais absurdo! Ferrajoli é um teórico sério, um positivista analítico que - longe de ser um abolicionista - é um legitimador do poder de punir e cuja densidade do pensamento extrapola os limites do “Direito e Razão”, motivo pelo qual a leitura de suas obras é recomendável para não se incorrer em graves equívocos.
[13] “(…)precisamente, quiero sostener la ilegitimidad y la inadmisibilidad que de ella (presunção de inocência como regra de tratamento ao imputado) se derivan para ese instituto, central el la experiencia procesal contemporánea, que es la prisión provisional del imputado antes de la condena” (FERRAJOLI, Luigi. Derecho Y Razón: teoría del garantismo penal. 4a edição. Editorial Trotta, 2000.
[14] In op. cit. página 552.
[15] In op. cit. Página 557
[16] Os realistas jurídicos mais destacados foram Karl Llewellyn e Jerome Frank, tendo ambos escrito suas principais obras nos anos próximos a 1930, época de grande crise do estado liberal e de ceticismo acerca de suas instituições, trata-se de um pensamento antinormativista focado na atividade judiciária, opondo-se frontalmente ao positivismo normativista da escola analítica.
[17] https://www.conjur.com.br/2017-set-21/senso-incomum-noticia-ultima-hora-cnj-autoriza-cura-juiz-solipsista
[18] BINDER, Alberto. Elogio de la audiencia oral y otros ensayos. 1ª ed.- México: Consejo de la Judicatura del Estado de Nuevo León, 2014.
[19] Os livros - Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil - organizado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Leonardo Costa de Paula e Marco Aurélio Nunes da Silveira está no quarto volume e explica de forma satisfatória essa questão.
[20] Alberto Binder em: http://inecip.org/wp-content/uploads/INECIP-Amicus-Curiae-Alberto-Binder-Caso-Gregorio-Santos.pdf Acessado em 13/10/2018.
[21]http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/5523cf3ae7f45bc966b18b150e1378d8.pdf
[22] http://www.corteidh.or.cr/tablas/fichas/cabreragarcia.pdf
[23]http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/3130/prisionpreventivaenamericalatina.pdf?sequence=1&isAllowed=y página 126. Acessado em 13/10/2018.
[24] RIEGO, Cristian. La Oralidade En La Discusión Sobre La Prisión Preventiva. IN: Estudios Sobre El Nuevo Proceso Penal – Implementación y Puesta En Prática. Associación de Magistrados Del Uruguay. Montevideo: FCU, 2017, pp. 107/108
[25] Corte IDH. Caso López Álvarez Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de febrero de 2006. Série C No. 141. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm>. Acesso em: 6 jul. 2016.
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