O conceito de crime militar e a nova lei. Não nos esqueçamos do sistema constitucional!!! - Por Afrânio Silva Jardim

31/10/2017

Provavelmente, como tem acontecido constantemente, este meu entendimento deverá ser minoritário. Entretanto, o tempo acaba por facilitar uma reflexão menos simplista e colocar “as coisas” no seu devido lugar. Pelo menos, é o que espero, também neste tema de agora. 

A minha interpretação abaixo, na verdade, tem um aspecto conciliador entre as já sustentadas pela doutrina de “primeira hora”. Acabo adotando um entendimento intermediário entre as interpretações mais extremadas. 

Não vamos cuidar, por ora, do parágrafo segundo do art.9º. do Código Penal Militar, que volta a tipificar como crime militar o homicídio doloso praticado por membros das Forças Armadas conta civil, em determinadas “circunstâncias” ali elencadas. Nosso estudo é mais abrangente e trata do novo conceito de crime militar em geral. 

Como explicita o título deste breve texto, a nossa atual preocupação é com o conceito de crime militar, tendo em vista a nova lei n.13.491/17, que alterou, em parte, a redação do artigo 9º. do Código Penal Militar. 

Desde logo estabelecemos uma premissa: quando o artigo 124 da Constituição Federal dispõe caber à Justiça Militar "processar e julgar os crimes militares definidos em lei", não está outorgando ao legislador ordinário “carta branca” para dispor arbitrariamente sobre o que seja crime militar. 

Aliás, o legislador ordinário sempre encontrará limites nas regras e princípios constitucionais. 

Note-se que a melhor interpretação da citada norma constitucional deve ser restritiva, pois a justiça militar tem um sentido de competência especial, sendo exceção em nosso sistema constitucional. 

O artigo 124 diz expressamente que compete à justiça militar “JULGAR OS CRIMES MILITARES”, permitindo que a lei ordinária detalhe a sua tipicidade, o que, de regra, sempre se fez no respectivo Código Penal Militar. 

Desta forma, tendo em vista o nosso sistema constitucional, que torna expresso o chamado Estado de Direito Democrático, está ínsito no conceito de crime militar a tutela direta ou indireta de bens jurídicos que tenham relação com tudo o que se refere aos princípios peculiares às nossas Forças Armadas e, com algumas reservas, às Polícias Militares e Corpo de Bombeiros, que a Constituição insiste em dizer que são militares (sic), como forças de reserva. 

Por tudo isso, a nova redação do inciso II do artigo 9º do Código Penal Militar, dada pela lei n.13.491/17, deve ser submetida à chamada interpretação “conforme a constituição”. Vale dizer, o nosso sistema constitucional deve condicionar e restringir a extração do sentido desta nova norma, de maneira a compatibilizá-la com o sistema jurídico e princípios da Lei Maior. 

No caso, a interpretação literal do citado dispositivo legal poderia levar a conflitá-lo com os princípios constitucionais, inclusive com o princípio da “razoabilidade”. Nenhuma interpretação é boa quando nos leva a resultados desarrazoados, resultados incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que não pode tolerar um conceito amplo e arbitrário de crime militar. 

Sempre se entendeu que o conceito de crime militar exigia dois requisitos: 

a) tipicidade expressa no Código Penal Militar; b) que a conduta tenha sido praticada em uma das muitas circunstâncias previstas no seu artigo 9º. Assim, havendo tipicidade na lei comum e também no Código Penal Militar, tendo sido a conduta praticada em uma daquelas circunstâncias, predomina o especial sobre o geral: o crime é militar. Um dos pressupostos é que a conduta seja descrita também no Código Penal Militar. 

Entretanto, a nova redação dada ao inc. II, do artigo 9º. do Cod. Penal Militar, não mais exige que haja expressa tipificação da conduta em seu elenco de crimes militares, o que ampliaria, de forma desarrazoada, o conceito de crime militar. 

Vale dizer, se fizermos uma interpretação literal e simplista desta nova regra, todo e qualquer crime, previsto na ampla legislação comum, seria crime militar pelo simples fato de a conduta ter sido praticada em uma das muitas circunstâncias elencadas no mencionado art.9º. do Código Castrense, mesmo que nele não esteja tipificada. 

Diante deste contexto absurdo, criado por legislador inconsequente e açodado, sugerimos que entendamos que, para ser crime militar e, por consequência, ser julgado por esta justiça especial, teremos de examinar o bem jurídico violado ou posto em perigo pela conduta praticada em uma daquelas circunstâncias do art.9º. 

Destarte, na hipótese do novo inc. II, as  “circunstâncias”, previstas no aludido art.  9º,  não são elementares do tipo penal, suficientes para a caracterização de um crime militar. 

Para a caracterização do crime militar, devemos ter presente também a natureza do bem jurídico tutelado pela norma penal de direito comum. Tudo deve ser conjugado. 

Em resumo: tendo em vista a criticável nova redação do inc. II do artigo 9º. do Código Penal, através da chamada “interpretação conforme ...”, entendemos que até seja possível caracterizar como crime militar uma conduta que somente seja tipificada na legislação penal comum. 

Entretanto, para que haja uma compatibilização da nova regra com o nosso sistema constitucional, não basta que esta conduta tenha sido praticada nas “circunstâncias” do referido artigo 9º. É imperioso também que ela agrida, direta ou indiretamente, um bem jurídico próprio e peculiar da atividade e organização militar. 

Por derradeiro, quero ressaltar, mais uma vez, que sou favorável a que futura legislação restrinja substancialmente o conceito de crime militar, sempre vinculado à tutela de bens jurídicos específicos da vida castrense e tipificados no respectivo código.

Imagem Ilustrativa do Post: PMDF // Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações

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