Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Entre os documentos internacionais que atendem a concepção da criança como sujeito de direitos, merece maior destaque, a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua sessão de 20 de novembro de 1989, a qual consagra a Doutrina da Proteção Integral. Registre-se que o Brasil ratificou a citada Convenção com a publicação do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, transformando-a, portanto, em lei interna.
Segundo a Doutrina da Proteção Integral as crianças - nesta categoria estariam compreendidos todos os seres humanos com idade inferior a 18 anos[1] – são sujeitos de direitos especiais, devendo ser resguardadas por se encontrarem num processo de desenvolvimento e assim merecedoras de prioridade absoluta.
No âmbito regional, em específico no interamericano – o qual o Brasil faz parte -, temos a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José de Costa Rica, ratificada pelo Governo brasileiro em 1992, que expõe a necessidade de proteção da criança americana por parte da família, da sociedade e do Estado (art. 19). Este tripé de atenção aos direitos infantoadolescentes se soma as possibilidades de demanda de indivíduos e demais interessados junto à Comissão Interamericana de Direito Humanos e, por conseguinte, à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Encontramos uma especificidade no artigo 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos:
Artigo 4
Direito à vida
1 Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
[...] (grifamos)
Diante disso, o princípio fundado na igualdade de cada ser humano perante a lei perdura nas práticas jurídicas contemporâneas como um topos a ser alcançado. A busca de um contorno preciso para o sujeito escrito no universo jurídico conduz a um redimensionamento ético do Direito, isto é, a um resgate do bem central em torno do qual as práticas jurídicas adquirem sentido, qual seja, a valorização do ser humano em toda a sua amplitude.
Essa categoria - sujeito de direitos - encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Claude Lefort: “o direito a ter direitos” (Lefort, 1991, p. 58), ou seja, da dinâmica dos direitos novos que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados.
Neste momento questionamos, justamente, o seguinte aspecto: se sob o impulso de uma evolução, tudo há de ser permitido, e passamos a violar certos parâmetros, os quais julgamos invioláveis, que é o respeito à vida. Se o ser humano em sua forma embrionária passa a ser visto como não merecedor de tutela - pois no âmago dessa polêmica está a complexa questão sobre o momento em que começa a vida -, o mesmo raciocínio poderá ser expandido para os que, já tendo passado tal fase embrionária - possam ser considerados como não interessantes e, dessa feita, sob o mesmo diapasão supostamente científico e, sem qualquer responsabilidade, social ou individual, serem simplesmente destruídos.
Ante tais elementos entendemos que não podemos fugir desse atualíssimo debate e mais: devemos nos posicionar sempre em favor da vida, respeitá-la, em todas as suas fases: da embrionária à final.
São elucidativas as lições de Jürgen Habermas (2004, p. 44.):
Nessa controvérsia, fracassa toda tentativa de alcançar uma descrição ideologicamente neutra e, portanto, sem prejulgamento, do status moral da vida humana prematura, que seja aceitável para todos os cidadãos de uma sociedade secular. Um lado descreve o embrião no estágio prematuro de desenvolvimento como um amontoado de células e o confronta com a pessoa do recém-nascido, a quem primeiramente compete a dignidade humana no sentido estritamente moral. O outro lado considera a fertilização do óvulo humano como o início relevante de um processo de desenvolvimento já individualizado e controlado por si próprio. Segundo essa concepção, todo exemplar biologicamente determinável da espécie deve ser considerado como uma pessoa potencial e como um portador de direitos fundamentais. Ambos os lados parecem não se dar conta de que algo pode ser considerado como indisponível, ainda que não receba o status de um sujeito de direitos, que nos termos da constituição, é portador de direitos fundamentais inalienáveis. Indisponível não é apenas aquilo que a dignidade humana tem.
Nossa disponibilidade pode ser privada de alguma coisa por bons motivos morais, sem por isso ser intangível no sentido dos direitos fundamentais em vigor de forma irrestrita e absoluta (que são direitos constitutivos da dignidade humana, conforme o artigo 1º da Constituição).
Devemos ter coragem suficiente de enfrentarmos essa seríssima questão. Entendemos, com Maria Luisa Di Pietro apud Ciaccia e Mattioli (1994, p. 51) que:
O embrião, embora encontrando-se em uma fase específica da sua existência na qual a forma humana, tal como habitualmente a concebemos, ainda não está expressa, não é mera potencialidade, mas substância viva e identificada. Desde o momento da fecundação, ele está em condições de levar à maturação uma corporeidade que serve para manifestar, como numa epifania histórica e terrena, as grandezas incomensuráveis do espírito humano.
Se reconhecermos o embrião, tanto nas esferas biológica e filosófica, como indivíduo da espécie humana, desde o momento da concepção, e em nível ontológico, como pessoa humana, somos forçados a reconhecer que tal embrião passa a ser, necessariamente, detentor de direitos fundamentais, o que importa, portanto, ser detentor do direito inviolável à vida.
A vida é algo a que temos direito e aí reside uma questão importantíssima: direitos não podem ser trocados em favor das preferências, desejos, prazeres de terceiros e, muito menos, sob a justificativa dos avanços técnico-científicos.
Há algo ímpar a ser esclarecido no que concerne à valorização do embrião humano, do feto e da própria criança em si. Se nos voltarmos aos primórdios da civilização ocidental, mais especificamente, à civilização greco-romana, constatamos que nesse período nem toda a vida humana era respeitada. Os escravos, os estrangeiros ou mesmo às próprias crianças romanas não tinham assegurados o direito à vida. O pater - o senhor - tinha o poder/direito de vida e de morte sobre a sua prole e tinha aquilo que estava sob seu domínio. Era uma prática comum e regular que bebês com deficiência, ou portadores de problemas mentais, fossem desassistidos, assassinados ou abandonados nas encostas de montanhas, revelando uma prática de que a sua condição é algo que ela tem, não o que a criança é. Portanto, não importa(va) o que ela é, senão que era portadora de algo, e essa “diferença” justificava o desprezo ao que ela fosse ou seria. Até filósofos, do porte de Platão, Aristóteles, entendiam que o Estado não somente poderia, mas deveria impor a morte dessas crianças com algum tipo de restrição e/ou deficiências.
A atitude de respeito a todo ser humano – indistintamente - remonta, justamente, com o advento do cristianismo. A motivação que se constitui é a de que cada homem é criado à imagem e semelhança de Deus, portador, de uma alma imortal. Assim, formula-se de acordo com tal concepção a coexistência de dois grandes entendimentos: primeiro, que a morte de uma criatura humana significava enviar-lhe para seu destino eterno (o céu- símbolo do êxtase, da plenitude ou o inferno - tormento eterno) e, em segundo, uma vez tendo sido criados por Deus - autor da vida - só a Ele pertencemos e ninguém tem o direito de suprimir uma vida, pois cabe à Deus o direito de decidir sobre quando nascemos e quando morreremos.
Essas concepções formaram o núcleo central da ortodoxia moral da civilização europeia, sobretudo, sob o domínio do cristianismo. Hoje, não há que se negar que mesmo não sendo tais doutrinas de aceitação geral e irrestrita, no entanto, as suas ideias - do privilégio da espécie humana - acabaram sendo absorvidos pelos ocidentais.
Portanto, quando se afirma que o embrião humano é apenas uma pessoa em potencial e se questiona se existiria alguma outra importância além desta, toda esta ideia do novo, do resgate que o cristianismo nos trouxe, nos impulsiona a responder que sim, pois cada pessoa tem em si o DNA do transcendente, a chama da eternidade.
Efetivamente, quando o ser humano se fecha no absolutismo utilitarista de que os fins - sadios, na grande maioria dos casos – justificam os meios, nos encontramos diante de situações complexas, de caráter, a princípio, sem solução.
É por isso que, novamente, afirmamos que, muitas vezes, uma desenfreada concepção biologicista, reduz, barbariza, minimiza e é capaz de anular a nossa humanidade em termos éticos, filosóficos, biológicos, morais, políticos e sociais.
Isto porque o não reconhecimento do seu estatuto, tanto no âmbito ético, quanto no jurídico, importa em severa violação ao princípio da dignidade da pessoa, no sentido de que tal violação resulta em discriminação entre os seres humanos.
Estamos diante de um único ser com resultantes diversas. A violação ao princípio da dignidade ocorre, quer aceitem os cientistas ou não.
Diante do exposto, somos levados a questionar que tipo de sociedade vivemos, na qual se tem permitido atitudes e práticas violadoras de direitos fundamentais. É necessário resgatarmos a humanidade perdida de um sem-número de seres humanos, reduzidos a um nada, e isto só é possível numa organização social que promova vida digna, que respeite a dignidade da pessoa humana em sua gama de complexidades, em todas as suas etapas de desenvolvimento.
Temos a grande responsabilidade de não nos conformar com decisões revestidas de aparente legalidade, uma vez fundamentadas em argumentos que relativizam a vida humana. Quando deixarmos de ser apenas um dado estatístico somado a tantos outros, quando tivermos a ousadia de sermos cidadãos empenhados em salvaguardar o direito inviolável à vida, sobretudo em relação aos mais frágeis, aos mais indefesos, e aqui, em especial, os embriões humanos, poderemos afirmar que compreendemos o significado profundo do “ser humano¨, “ser humanidade”.
Notas e referências:
BRASIL. Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990.
Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm Acesso em: 31 out. 2024.
BRASIL. Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm Acesso em: 31 out. 2024.
DI PIETRO, Maria Luisa apud CIACCIA, Castrese & MATTIOLI, Vitaliano. O milagre da vida: reflexões de bioética e sobre os direitos do nascituro. São Paulo: Cidade Nova/Cenplan, 1994.
HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução: Karina Jannini; revisão da tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[1] Artigo 1 Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.
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