O COAF não se presta por si só. E ponto final!

16/04/2018

A Lei nº. 9.613/98 – que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores – criou, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o COAF, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na própria lei.

Segundo os §§ 2º. e 3º. do seu art. 14, o Conselho deverá “coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores”, bem como “poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas.”

Outrossim, conforme o art. 15, o órgão deverá comunicar “às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos na lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.”

Pois bem.

Pergunta-se: enviados à Polícia ou ao Ministério Público o procedimento originário do COAF, qual a providência a ser adotada imediatamente por estes órgãos persecutórios?

Sem dúvidas, nos termos do art. 5º., I do Código de Processo Penal, determinar de ofício a instauração de inquérito policial, via Portaria. Caso as informações tenham sido encaminhadas diretamente ao Ministério Público – como sói acontecer -, deverá ser aberto um Procedimento Investigatório Criminal, cujo procedimento, aliás, não tem previsão legal, estando disciplinado na (parcialmente inconstitucional) Resolução nº. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público.[1]

Segunda indagação: iniciado o procedimento investigatório-criminal como deve proceder a autoridade investigante? Requerer desde logo e de imediato a quebra dos sigilos bancário, fiscal, telefônico e de dados do investigado, ou, por cautela, proceder a outros atos investigatórios menos invasivos e só então, caso confirmados os indícios de prática de crime e de autoria, solicitar ao Poder Judiciário a violação dos referidos sigilos?

Esta matéria foi debatida - já faz algum tempo - na 6ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do Habeas Corpus nº. 191.378/DF (julgado em 15 de setembro de 2011), que teve como relator o Ministro Sebastião Reis Júnior e impetrado o Tribunal Regional Federal da 1ª. Região.

Naquela oportunidade a Turma decidiu pela concessão da ordem, assentando que a “representação da quebra de sigilo fiscal, por parte da autoridade policial, com base unicamente no Relatório de Inteligência Financeira encaminhado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF)” é inadmissível (e também a interceptação telefônica), pois são providências investigatórias absolutamente excepcionais, somente admitidas após a realização de primeiras outras.

Assim, mostra-se intolerável tais medidas extremas quando “não precedeu a investigação policial de nenhuma outra diligência, ou seja, não se esgotou nenhum outro meio possível de prova (sic)”, partindo-se “exclusivamente, do Relatório de Inteligência Financeira encaminhado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) para requerer o afastamento dos sigilos”, não tendo sido “delineado pela autoridade policial nenhum motivo sequer, apto, portanto, a demonstrar a impossibilidade de colheita de provas por outro meio que não a quebra de sigilo fiscal." 

Logo, “não demonstrada a impossibilidade de colheita das provas (sic) por outros meios menos lesivos, converteu-se, ilegitimamente, tal prova (sic) em instrumento de busca generalizada.”

Segundo consta do voto do relator, “a mera constatação de movimentação financeira atípica é pouco demais para amparar a quebra de sigilo; fosse assim, toda e qualquer comunicação do COAF nesse sentido implicaria, necessariamente, o afastamento do sigilo para ser elucidada.

Ademais, como bem observado no voto, “a complexidade dos fatos sob investigação também não autoriza a quebra de sigilo, considerando não ter havido a demonstração do nexo entre a referida circunstância e a impossibilidade de colheita de provas mediante outro meio menos invasivo. Provas testemunhais e periciais também se prestam para elucidar causas complexas, bastando, para isso, a realização de diligências policiais em sintonia com o andamento das ações tidas por criminosas.”

Assim, anulando-se as decisões que violaram os sigilos constitucionalmente assegurados, “todas as demais provas (sic) [2] que derivaram da documentação decorrente das quebras consideradas ilícitas devem ser consideradas imprestáveis, de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada.”[3] 

Esta decisão merece por parte da doutrina constitucional e processual penal brasileira todas as referências elogiosas. Trata-se de uma posição corajosa e acertada, sob todos os pontos de vista, desde a questão dos direitos à intimidade, à privacidade e aos sigilos, até a matéria relativa à falta de justa causa para o exercício da ação penal.

Não esqueçamos, como lembra Tercio, que “o sigilo tem a ver com a segurança do cidadão, princípio cujo conteúdo valorativo diz respeito à exclusão do arbítrio, não só de parte da sociedade, como sobretudo do Estado que só pode agir submisso à ordem normativa que o constitui. Nestes termos, a cidadania, exigência do princípio republicano, que a reclama como uma espécie de fundamento primeiro da vida política e, por consequência, do Estado, antecede o Estado, não sendo por ele instituída.[4]

Decisão como tal (ainda que não tão recente) nos tempos de hoje estão cada vez mais difíceis de ser encontradas em nossos repertórios de jurisprudência, paupérrimos que estão de decisões conforme as regras e os princípios constitucionais, pondo em dúvida, inclusive, a seriedade da democracia judicial brasileira, afinal de contas “la defensa del ciudadano y de su esfera de intimidad personal y familiar constituye un criterio de legitimación política para toda sociedad democrática.”[5]

Ao contrário, o que se vê a mancheias é uma pletora de decisões – muitas vezes, e o que é mais desastroso!, vindas da própria Suprema Corte – absolutamente inconciliáveis e inteiramente incompatíveis com a Constituição Federal, levando-nos a um desconforto e a um desânimo quase capitulantes, diríamos.

Em tempos de uma odiosa “americanização à brasileira” do processo penal, como diz o Mestre Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[6], decisão como esta – cada vez mais rara, repita-se – acaba por se tornar como se fora um “alento do mundo”, como diria Padre Antônio Vieira.[7]

Por óbvio que providências e diligências investigatórias de tal natureza – que representam a violação de sigilos constitucionalmente assegurados – devem observar a cláusula da ultima ratio, pois “el medio que interviene en el derecho fundamental debe ser adecuado para la realización del fin propuesto.” Assim, “la comparación entre medios tiene por propósito examinar si frente al medio optado en la intervención existen medios hipotéticos, alternativos, igualmente idóneos, con una intensidad menor a la ocasionada por aquél. Hay aqui un mandato del medio menos gravoso o de menor intensidad en la intervención que, si no es observado, la intervención será innecesaria y, por tanto, inconstitucional.”[8] 

Neste sentido, aliás, o art. art. 2º., II, da Lei nº. 9.296/96 não admite a interceptação de comunicações telefônicas quando a investigação “puder ser feita por outros meios disponíveis”, exatamente porque “la violación de las comunicaciones afecta no la intimidad, sino el derecho al secreto de las mismas, puesto que puede haber contenidos que nada tengan que ver con la intimidad y se protegen igual.” Por outro lado, “el derecho a la privacidade, incluso, siempre se da como un poder de exclusión de quienes no merecen nuestra confianza, precisamente por el contenido privado.”[9]

Como bem assevera Belloque, “a autoridade competente à decretação da quebra de sigilo financeiro, deve examinar, caso a caso, a existência de justa causa à adoção da medida, pois consistente em ato de coação processual, que somente deve prevalecer quando presente causa legítima que a fundamente, em consonância com a ordem jurídica.”[10]

Assim, exaltemos esta posição adotada pela 6ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça e a tomemos como forma de “desafiar preconceitos” e “contar a verdade aos apaniguados da corte”, como afirmava Lessing. Aliás, como escreveu Arendt, Lessing, “por mais caro que pagasse por esses prazeres, eram literalmente prazeres. Uma vez, quando tentava explicar a si mesmo a fonte do ´prazer trágico`, disse que ´todas as paixões, mesmo as mais desagradáveis, são, como paixões, agradáveis`, pois ´nos tornam mais conscientes de nossa existência, fazem-no sentir mais reais.`

Essa frase, para Arendt, lembrava “extraordinariamente a doutrina grega das paixões, que incluía a cólera, por exemplo, entre as emoções agradáveis, mas situava a esperança, juntamente com o medo, entre os males.”[11]

Por fim, concluindo, lembremo-nos, muito a propósito, que o § 3º. do art. 282 do Código de Processo Penal estabelece que, “ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo.” 

Notas e Referências:

[1] http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf

[2] É impressionante a confusão que ainda se faz entre ato de prova e ato de investigação. Aury Lopes Jr. explica bem este assunto. Conferir o seu excelente Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2018, 15ª. edição, páginas 158 e seguintes.

[3] A ordem foi concedida “para declarar nulas as quebras de sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos, porquanto autorizadas em desconformidade com os ditames legais e, por consequência, declarar igualmente nulas as provas em razão delas produzidas, cabendo, ainda, ao Juiz do caso a análise de tal extensão em relação a outras, já que nesta sede, de via estreita, não se afigura possível averiguá-las; sem prejuízo, no entanto, da tramitação do inquérito policial, cuja conclusão dependerá da produção de novas provas independentes.

[4] JUNIOR, Tercio Sampaio Ferraz, “Sigilo de Dados: o Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado”, texto inserido na obra coletiva “Sigilo Fiscal e Bancário”, coordenada por Reinaldo Pizolio e Jayr Viégas Gavaldão Jr., São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 37.

[5] SUAREZ, José María Alvarez-Cienfuegos, La Defensa de la Intimidad de los Ciudadanos y la Tecnología Informática, Pamplona: Aranzadi Editorial, 1999, p. 14.

[6]Processo Penal e a Americanização à Brasileira: Resistência”, prefácio do livro “Sistema Penal e Poder Punitivo (Estudos em Homenagem ao Professor Aury Lopes Jr.)”, obra coletiva coordenada pelo Professor Salah H. Khaled Jr., publicada pela Editora Empório do Direito, já na segunda edição.

[7] Sermões, Volume I, Porto: Lello & Irmãos Editores, 1951, p. 126.

[8] ESCALANTE, Mijail Mendoza, Conflictos entre Derechos Fundamentales, Lima: Palestra Editores, 2007, páginas 482 e 483.

[9] CARBONE, Carlos Alberto, “Grabaciones, Escuchas Telefónicas y Filamaciones como Medios de Prueba”, Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, 1ª. edição, páginas 269 e 270.

[10] BELLOQUE, Juliana Garcia, Sigilo Bancário, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 98.

[11]ARENDT, Hannah, “Homens em Tempos Sombrios”, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 13. Segundo Arendt, “em Lessing, a têmpera revolucionária se associava a uma espécie curiosa de parcialidade que se apegava a detalhes concretos com um zelo exagerado, quase pedante, e fazia surgir muitos mal-entendidos. Um componente da grandeza de Lessing foi o fato de nunca permitir que a suposta objetividade o levasse a perder de vista a relação real com o mundo e o estatuto real das coisas ou homens no mundo que atacava ou elogiava. (...) Lessing nunca se reconciliou com o mundo em que viveu.” (páginas 12 e 13).

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice with a swagger // Foto de: Quinn Dombrowski

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