Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Se nos anos que antecederam o último era difícil ficar longe das telas e da internet, em 2020 isso se tornou impossível. A pandemia trancou a todos em casa e a janela para o mundo lá fora, mais do que nunca, ficou na palma das mãos. Isso, claro, partindo da perspectiva de privilégio de estar em casa enquanto o mundo como conhecemos se transformava radicalmente lá fora.
Mesmo longe uns dos outros, a tecnologia nos aproximou. Para a conveniência ou para a exaustão completa, trabalho, estudo, compras, lazer e reuniões familiares, tudo ficou a um computador ou a um celular de distância. Escritórios inteiros, festas de aniversário, exibições de filmes, lives, intermináveis lives.
A vida acontece, mas torna-se efêmera; passa a ser de uma abstração infinita. Abraços e beijos foram substituídos por emojis; decisões importantes tiveram de ser tomadas em reuniões com colegas e fundos diferentes no Zoom; aulas inteiras foram dadas sem que os professores pudessem ver os alunos, sequer havendo garantia de que estavam, de fato, presentes; ingressos de cinema passaram a ser assinaturas de streaming.
Hiperconectados no que tange à informação, perdemos para a pandemia o contato e até mesmo o tato, literal e metaforicamente falando. Tudo são códigos, dados e conteúdo que, tal como o vírus que nos assombra, sabemos que existe, mas não podemos ver. Justamente por não serem palpáveis, nem sempre fica clara a força que esses elementos têm em nossas vidas reais e separadas das telas, se é que ainda é possível falar disso[1].
Possivelmente por tal motivo nos últimos meses de 2020 tenha reverberado uma série da plataforma de streaming Netflix com uma dose de concretude na vida das pessoas. A minissérie O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit, no título original em homenagem a um movimento de xadrez) estreou em 23 de outubro e conta a história de Beth Harmon que, aos nove anos, foi deixada em um orfanato do Kentucky após a morte da mãe em meados da década de 1950. Lá, descobre as pílulas calmantes, dadas às meninas para se manterem comportadas, e o xadrez, jogo para o qual tem imenso talento.
Baseado em um livro homônimo de 1983 de Walter Tevis, O Gambito da Rainha é um conto sobre amadurecimento, que acompanha a evolução de Beth nesse esporte eminentemente masculino em um tempo em que as mulheres estavam destinadas a serem esposas e mães. São inúmeros os méritos da caprichada produção da Netflix, que contou com nada menos que o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov como consultor. Além de mostrar em detalhes as táticas das partidas, também intercala a passagem dos anos com questões políticas e culturais da época, como a luta por equidade racial, a Guerra Fria, a música e os preconceitos. Mas talvez o mais interessante sejam as gigantescas repercussões de uma minissérie sobre um jogo de regras complexas, não muito tempo atrás restritas ao nicho de apaixonados por ele.
O Gambito da Rainha alcançou o posto de minissérie roteirizada mais visualizada desde a criação da Netflix, tendo sido assistida em 62 milhões de casas, alcançado o top 10 da plataforma em 92 países e o primeiro lugar em 63 deles[2]. Como salientou Paula Ribeiro Alves[3], o imenso sucesso da produção apresenta impacto diretamente proporcional no consumo, o qual é sentido, em primeiro plano, na ressonância da história, que tomou conta das conversas e redes sociais, e, posteriormente, nos influxos quanto à busca e/ou aquisição dos mais diversos conteúdos e bens.
Esses elementos fazem parte do chamado “Efeito Netflix”, que engloba inúmeros aspectos, como o ato de assistir a séries e filmes em “maratonas” conforme a possibilidade e demanda do espectador, algo impensado na era da televisão a cabo, e também uma espécie de laço que une as pessoas em experiências compartilhadas e mediadas em massa. Não havendo limitação de horário para assistir a um determinado programa, há sempre a possibilidade de ficar atualizado para participar das conversas, para se sentir parte do grupo[4]. Nesse sentido, as buscas no Google por termos “como jogar xadrez” atingiram um pico após nove anos[5].
Mas, evidente que, na sociedade do consumo, na qual estamos sempre em busca de algo a ser preenchido com produtos, a questão não se encerra no mero debate entre amigos ou no compartilhamento de informações nas redes sociais. Há, aqui, uma efetiva repercussão nas compras. No caso de O Gambito da Rainha, os dados – sempre eles – são claros. Após a estreia da minissérie, o livro que a embasou voltou à lista dos mais vendidos do jornal The New York Times mesmo passados 37 anos de seu lançamento. As vendas de tabuleiros de xadrez, que já haviam aumentado com o início do confinamento, cresceram 125% para um fabricante, ao passo que, no eBay, o aumento foi de 215% e o número de inscritos no site chess.com aumentou em 500%[6].
Não é a primeira vez que isso acontece. Em 2018, as vendas da bebida láctea fermentada Yakult subiram em razão da predileção dos personagens do filme adolescente Para todos os Garotos que já Amei[7]. Os números demonstram que apesar da abstração, o efeito do streaming ultrapassa as barreiras da informação e atinge a vida real e concreta. Por ora, a Netflix não contém anúncios, mas como seria se os incluísse? Não haveria um aumento da vulnerabilidade dos consumidores, adstritos à publicidade friamente calculada para fazê-los desejar algo e poder comprar de imediato? Afinal, está tudo a um toque de distância.
Não há respostas definitivas, pois não se sabe onde a tecnologia nos levará. Mas é fato que, em 2021, aumentará o efeito não só da Netflix, mas das companhias de streaming em geral. A produtora e distribuidora Warner, por exemplo, anunciou que lançará os filmes de super-herói em simultâneo nos cinemas e no serviço HBO Max. Um duro golpe para as exibidoras de filme, cujas ações caíram entre 7,3% (Imax) e 21% (Cinemark) depois da notícia[8].
Considerando os ecos de uma série sobre xadrez no consumo, é impossível não pensar nos efeitos que filmes de heróis terão, tendo em conta todos os produtos licenciados que vendem. O mundo se transforma e a maneira de se comportar e consumir também. E se, para fazermos parte das conversas, sentimos a necessidade de estarmos atualizados nos conteúdos das séries, cabe-nos estar atentos também à formação de novas demandas que, cedo ou tarde, atingirão o Direito.
Notas e Referências
[1] Sobre esse ponto, em The Onlife Manifesto, Luciano Floridi comenta a cada vez menor separação entre a vida real (life) e a conectada (online), tendo cunhado o termo com a junção das duas (onlife) para descrevê-la. According to Luciano F. “We decided to adopt the neologism `onlife` that I had coined in the past in order to refer to the new experience of a hyperconnected reality within which it is no longer sensible to ask whether one may be online or offline”. “The ever-increasing pervasiveness of ICTs shakes established reference frameworks through the following transformations: i. the blurring of the distinction between reality and virtuality; ii. the blurring of the distinctions between human, machine and nature; iii. the reversal from information scarcity to information abundance; and iv. the shift from the primacy of entities to the primacy of interactions”. FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto. In: The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. [s.l.]: Springer, 2015, v. 64
[2] As informações foram divulgadas pela própria Netflix. FRIEDLANDER, Peter. About Netflix - From the ‘Queen’s Gambit’ to a Record-Setting Checkmate. Netflix. Disponível em: <https://about.netflix.com/en/news/the-queens-gambit-Netflix-most-watched-scripted-limited-series>. Acesso em: 29 Dec. 2020.
[3] ALVES, Paula Ribeiro. The Queen’s Gambit e o Efeito Netflix no consumo. NOVA Consumer Lab. Disponível em: <http://novaconsumerlab.fd.unl.pt/the-queens-gambit-e-o-efeito-netflix-no-consumo/>. Acesso em: 29 Dec. 2020.
[4] MATRIX, Sidneyeve. The Netflix Effect: Teens, Binge Watching, and On-Demand Digital Media Trends. Jeunesse: Young People, Texts, Cultures, v. 6, n. 1, p. 119–138, 2014 p. 120-121.
[5] FRIEDLANDER, Peter. About Netflix - From the ‘Queen’s Gambit’ to a Record-Setting Checkmate. Netflix. Disponível em: <https://about.netflix.com/en/news/the-queens-gambit-Netflix-most-watched-scripted-limited-series>.
[6] FAZIO, Marie. ‘The Queen’s Gambit’ Sends Chess Set Sales Soaring. The New York Times, 2020. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/11/23/arts/television/chess-set-board-sales.html>. Acesso em: 29 Dec. 2020.
[7] CONNELLAN, Shannon. Yakult is enjoying a boost from its cameo in “To All the Boys I’ve Loved Before.” Mashable. Disponível em: <https://mashable.com/article/to-all-the-boys-ive-loved-before-yakult/?europe=true>. Acesso em: 29 Dec. 2020.
[8] LANG, Brent. Theater Stocks Plunge After Warner Bros. Will Release All 2021 Films on HBO Max, Cinemas Simultaneously. Variety. Disponível em: <https://variety.com/2020/film/news/theater-stocks-warner-bros-hbo-max-matrix-4-dune-1234845702/>. Acesso em: 30 Dec. 2020.
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