O Cau, a honra, a inJustiça da funcionária banal - Por Léo Rosa de Andrade

18/10/2017

 

Foi acaso: domingo, filme. Ao fim, num corredor, o Cau. Conversa descomprometida. Não se falou – e eu não falaria – sobre a situação que meu amigo enfrentava: vergonha por desonradez imposta por uma funcionária banal.

Banal, Hannah Arendt. Banalidade: atributo da insignificância, condição da trivialidade. O Cau foi preso assim, por um prenda-se enjambrado que perdurou o tempo de a funcionária que lhe determinou a prisão ser substituída.

Não o encontrei cabisbaixo. Vi tristeza. Se havia, não compreendi desespero. Mandíbula cerrada, isso era aparente. O sorriso irônico que o caracterizava estava sumido. Decisão já tomada, pois, agora suponho eu.

Dos juízes sempre se esperou que cumprissem e fizessem cumprir as leis. Tarefa que sempre lhes deve ter sido fácil, até porque a lei, ao fim e ao cabo, é o alvedrio pessoal do poder que o Estado concede ao magistrado.

Os juízes sensíveis ao mundo devem sentir alguma dificuldade quando se lhes pede que façam Justiça. A idealização de fazer Justiça sempre beira a mentalidade do funcionário impessoal. Ou seria coisa de quem é justo?

Um bom juiz sabe seus limites de humanidade. Quanto a ser funcionário – a maioria o é –, ninguém quer sê-lo. Já um pretensioso tem-se por justo, e até se esforça por sê-lo; cumpre o métier. Tenho medo é do justiceiro.

O Brasil é justiceiro. Praticamos por demais linchamentos, seja na vida real, seja na vida das redes sociais, que espelha a realidade. O justiceiro com autoridade, realizando justiciamento fundado na lei, é um horror.

Quando o Estado-juiz lança os aparatos da burocracia estatal repressora sobre um indivíduo, desmancha-lhe a vida. É um abuso que desarranja qualquer personalidade que resolva atropelar. Resta impotência para reagir.

Sobre o Cau veio o Termidor, figurado na decisão da funcionária que trata o poder que o Estado lhe confere com vulgaridade: prenda-se o reitor. Desimporta que se lhe incidam os rituais de humilhação dos encarcerados.

Cau foi preso sob suspeita de que obstaculizara investigações que uma comissão que ele instituíra realizava acerca de atos corruptos praticados em gestão que nem era a dele. Assim, banal: prenda-se para averiguar.

Trocada a funcionária, foi solto, mas se lhe determinou o exílio da Universidade à qual dedicou a vida. Que fazer? Andar desonrado por aí? Cau era cioso da sua dignidade e não tinha vocação para suportar as agruras de Josef K.

Não me alinho aos indignados aliados dos ladrões que acusam juízes de persecução seletiva. Nada disso. Estou na formação dos críticos do Judiciário: 48% dos presos brasileiros estão assim mantidos em condição preventiva.

Prisão temporária é por causa muito grave e por extrema necessidade. A legislação pertinente é claríssima a respeito. E há os efeitos: se para o juiz a decretação da prisão é uma “canetada”, para o preso é um anátema.

Pôr termo à própria vida é ato de vontade, é um direito. Suicídio não necessariamente é fastio ou fuga irrefletida da existência. Pedro Nava anunciou que ao tempo adequado se mataria. Cumpriu lucidamente o anunciado.

Getúlio Vargas tinha a biografia compromissada com a História. Dar cabo de si mesmo não foi ato desesperado, foi gesto praticado com extrema ponderação. Foi uma grande resposta política neste País de tantos políticos miúdos.

Domingo, ao fim do filme (Polícia Federal – A Lei é para todos), encontro Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Ele, ao me ver, dirigiu-se da borda da escada rolante do Shopping Beira Mar até onde eu me encontrava. Conversamos.

– Um elogio à Polícia Federal fundado na estética “efeito demonstração”, mas gostei, digo. – Justiça mediada pela mídia, estética midiática, diz. – E engajamento das autoridades, digo. – Justiça apressada, diz.

Silêncio. Então: – Fui posto nesse show espetaculoso; vou responder, diz. Esbocei palavras, mas um abraço me silenciou. E nem cabia falar. Vi-o retornar com vagar à escada que lhe ajudaria na resposta que formulara.

Segunda, a notícia triste. A morte foi no lugar medido. Cau foi um animal político. Seu último gesto público foi nessa condição. A decisão de morrer exposto objetivava expor sua condição de sujeitado a uma judicatura esbirra.

Seu ato de fazer-se morrer está insertado nessa conjuntura adversa. Foi um gesto de rebeldia, uma resposta rebelde ao escracho imposto à sua dignidade. Cau deu-se em holocausto aos seus compromissos consigo mesmo.

Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, discorre sobre a banalidade do mal. O nazista julgado não se caracterizava por um caráter doentio. Agia burocraticamente, zeloso no cumprimento do seu dever, só.

Como funcionário eficiente, não lhe cabia questionar o sentido ou as consequências do que fazia. Isso não é ontológico, natural ou metafísico, é alienação e manifesta-se onde encontra espaço institucional para tanto.

A magistratura brasileira nunca foi assim. Contudo, alguns juízes ou juízas desertaram as contas morais, não medem consequências. Ora, Justiça é poder, é ideologia. Toda sentença é uma escolha e suas implicações.

Honra, um valor. Quem banaliza a grandeza da sua função e exorbita da autoridade que lhe é outorgada pode não entender, mas para algumas pessoas a vida pressupõe a condição honrada de vivê-la. Era o caso do Cau.

 

Imagem Ilustrativa do Post: KDD en Lourizán-Baixo o cabazo1 // Foto de: juantiagues // Sem alterações

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