1 Introdução
Confirmada a vitória nas urnas do candidato Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, eleitores do adversário derrotado imediatamente iniciaram um movimento de agitação para questionar o resultado.
Incentivados pelas redes sociais, se deslocaram para pontos estratégicos das estradas a fim de apoiar caminhoneiros que decidiram bloquear o trânsito em diversas rodovias federais e estaduais.
Um caso peculiar chamou a atenção quando um revoltoso se pendurou na parte externa frontal de um caminhão na tentativa de evitar que o motorista furasse o bloqueio em Caruaru, no agreste de Pernambuco.
Diante da insistência do manifestante em não descer do veículo, o chofer decidiu seguir viagem e dirigiu o caminhão com o incômodo carona pendurado por vários quilômetros, até que o desditoso finalmente arregou de seu propósito e pediu para descer.
As imagens logo repercutiram nas redes sociais e o manifestante ficou conhecido como o “patriota do caminhão”.
O caso rendeu comentários e a imprensa passou a questionar a responsabilidade penal de um e de outro, chegando algumas manchetes a sugerir que a conduta do caminhoneiro configuraria até mesmo tentativa de homicídio doloso.[1]
Sem entrar no mérito de eventuais crimes de trânsito e outras infrações, o presente estudo pretende discutir se o fato poderia mesmo ser tipificado como crime doloso contra a vida em desfavor do motorista do caminhão.
Afinal, por ter conduzido o veículo em boa velocidade e por vários quilômetros com o “patriota” agarrado na parte frontal externa, ele poderia ter dado início a um crime de homicídio doloso cujo resultado morte somente não ocorreu em razão de a vítima ter conseguido se manter firme durante o percurso.
2 Da imputação por tentativa de homicídio doloso (CP, art. 121, caput, c/c art. 14, II)
2.1 Tipicidade objetiva
A descrição típica do homicídio é “matar alguém” (CP, art. 121). Para se alcançar o juízo de tipicidade objetiva é preciso concluir pela existência de uma ação que poderia ser considerada causa do resultado morte exigido pelo tipo.
2.1.1 Ação
O motorista conduziu o veículo pela estrada mesmo com a vítima do lado externo do caminhão. A previsibilidade do resultado morte era imensa, já que eventual queda certamente seria fatal, posto que o caminhão necessariamente passaria por cima do manifestante. Logo, a ação do caminhoneiro configura, em tese, o início da execução do crime de homicídio.
2.1.2 Resultado
O resultado “morte” somente não ocorreu porque o “patriota” conseguiu segurar firme e se manter sobre o para-choque dianteiro do caminhão, inclusive no instante em que o veículo passou trepidando sobre um quebra-molas.
2.1.3 Causalidade
Isoladamente considerada, a conduta do motorista tinha grande probabilidade de dar causa ao resultado morte. A hipótese configura tentativa branca, pois não houve nenhum resultado naturalístico.
2.1.4 Imputação objetiva
Ao dirigir normalmente em velocidade de estrada, mesmo com o manifestante dependurado sobre o capô do caminhão, o motorista criou um risco de causar a morte do aventureiro. Tal risco é chapadamente desaprovado pelo Direito, inclusive por meio de expressas proibições constantes do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, artigos 169, 170, 174 etc).
No caso em exame, é preciso ainda saber se o resultado pode ser imputado ao caminhoneiro em razão do comportamento da vítima, a qual, voluntariamente, subiu na parte frontal externa do veículo e se recusou a sair mesmo diante dos apelos proferidos pelo condutor.
Apesar da anuência do “patriota” ao risco criado, o motorista era quem detinha o controle do perigo, pois dependia exclusivamente dele a velocidade e a condução mais ou menos suave do veículo. A hipótese configura a denominada “heterocolocação em perigo consentida”, pois, embora a vítima tivesse concordado com a situação, o controle do risco permaneceu o tempo inteiro com o caminhoneiro.
Indaga-se, portanto, se o comportamento consciente da vítima de se deixar colocar em perigo afasta o juízo de imputação objetiva na conduta do motorista. A resposta é dada por Guilherme de Toledo Góes:[2]
A heterocolocação em perigo consentida é causa da exclusão da imputação do resultado nos casos em que for normativamente equiparável à autocolocação em perigo. Há essa equivalência normativa nas situações em que a vítima tem o mesmo grau de responsabilidade pelo risco que o autor principal, ainda que ela não tenha o controle manual da ação perigosa. A vítima será tão responsável pelo risco (i) se conhecê-lo na mesma medida em que o autor e (ii) se o resultado típico ocorrido for consequência do risco aceito, excluindo-se os erros e novos riscos que venham a surgir.
Foi o que ocorreu no caso em exame. O “patriota” tinha conhecimento de que o caminhoneiro seguiria viagem ainda que ele não descesse da parte externa do veículo e decidiu ali permanecer, enfrentando o perigo. Logo, conhecia e concordou com o risco criado, sendo tal conhecimento em tudo equiparável ao do motorista.
Sendo assim, o comportamento da vítima afastou o juízo de tipicidade objetiva, não podendo o risco criado ser imputado ao motorista.
2.2 Tipicidade subjetiva
O dolo, enquanto elemento genérico do tipo, pode ser direto ou indireto, consoante o disposto no art. 18, I, do Código Penal.
À toda evidência, o motorista não agiu com dolo direto de homicídio, uma vez que não quis a morte do manifestante em nenhum momento.
Resta saber se a ele pode ser atribuído uma das espécies de dolo indireto, mais precisamente, o denominado dolo eventual. Não há dúvida de que representou a enorme probabilidade da ocorrência do resultado e, mesmo assim, persistiu na conduta de dirigir, demonstrando, no mínimo, completa indiferença quanto à sorte do “passageiro” que seguia agarrado ao seu caminhão.
As modernas teorias cognitivas do dolo igualmente reforçam a presença do dolo eventual do motorista diante do elevado juízo subjetivo de probabilidade da ocorrência do resultado morte. É claro que o caminhoneiro representou a morte da vítima como mais do que apenas possível. Ele não podia confiar na evitação do resultado. O caso exprime uma validação do risco criado diante da alta probabilidade de que o manifestante sucumbisse às variáveis de velocidade e oscilação do veículo, vindo a se soltar e, inevitavelmente, perder a vida.
Conclui-se, portanto, ter o caminhoneiro agido com dolo eventual em relação ao homicídio. Ocorre, porém, que o risco criado não desaguou no resultado, posto que estacionou o veículo tão logo a vítima sinalizou a intenção de descer do capô.
Tradicionalmente, tanto a doutrina como a jurisprudência consideram incompatíveis a tentativa e o dolo eventual. Isso porque, como visto acima, o assentimento (dolo eventual) não se direciona ao resultado, mas ao risco criado pela conduta, não podendo o agente ser responsabilizado por um resultado que não quis produzir e, de fato, não se realizou.
Ainda que o Superior Tribunal de Justiça tenha admitido a tentativa em casos de homicídio praticado com dolo eventual (STJ, HC 678.195/SC e RE 1.791.278/SP), a dinâmica observada no caso em análise retira por completo tal possibilidade porque o motorista detinha com exclusividade o controle do perigo e, tão logo a vítima pediu para descer, ele diminuiu a velocidade, manobrou até o acostamento e estacionou o caminhão para que o “patriota”, finalmente, descesse em segurança.
Assim agindo, o motorista foi o responsável direto pela evitação do resultado, podendo-se falar até mesmo em desistência voluntária.
Logo, afastado o requisito previsto na parte final do inciso II do art. 14 do Código Penal para a aplicação da norma de extensão da adequação típica da tentativa, também resta descaracterizada a imputação subjetiva.
Conclusão
O caminhoneiro não pode ser punido por tentativa de homicídio doloso em razão do não aperfeiçoamento do juízo de tipicidade objetiva e subjetiva da conduta de ter trafegado mesmo com a insistência do manifestante em permanecer agarrado na parte frontal do seu caminhão.
Notas e Referências
[1] In: <https://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2022/11/04/caminhoneiro-que-carregou-bolsonarista-pendurado-no-para-brisa-pode-ser-preso-afirmam-especialistas.ghtml>.
[2] Góes, Guilherme de Toledo. O caso do corredor presunçoso. Nova Revista de Direito Penal, v. 1, n. 1, pp. 85-115, 2022, Belo Horizonte: ICP, p. 92.
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