O caso Deltan Dallagnol como fraude à lei: contributos ao debate

25/05/2023

“o tipo de jurista que o Estado constitucional de Direito precisa deve incluir, entre outras capacidades, a de detectar e reagir frente à forma peculiar de atentado contra o Direito que os ilícitos atípicos supõem: o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder”.[1] 

Na última semana, uma notícia ganhou o noticiário nacional: o Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, cassou o mandato do Deputado Federal Deltan Dallagnol. Tão logo proferido o resultado do julgamento, a decisão prontamente se tornou objeto de ampla discussão.

Fortes críticas foram feitas ao Tribunal, não apenas pelo deputado cassado e seus correligionários. Parcela da doutrina jurídica nacional tem se posicionado publicamente contra referida decisão, por considerá-la indevidamente expansiva de uma hipótese de inelegibilidade prevista pela Lei Complementar n. 64/1990.

É o caso, por exemplo, de Miguel Gualano de Godoy. Em artigo publicado pelo Jota, ele sustenta, em síntese, que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral teria sido errada por dois motivos: i) porque supostamente contrária ao art. 1º, inciso I, alíneas g e q, da Lei Complementar n. 64/1990; e ii) porque baseada em interpretação extensiva dos referidos dispositivos legais, a ponto de permitir a restrição indevida de um direito fundamental.[2]

Também é o caso de Miguel Reale Júnior e de Rafael Maffei Rabelo Queiroz, que, em entrevistas para o jornal O Estado de São Paulo, criticaram a decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral.[3] Para Miguel Reale Júnior, teria havido “erro” por parte do Tribunal, que, supostamente,ampliou hipótese de inelegibilidade, a ponto de classificar a decisão como arbitrária. Já Rafael Maffei Rabelo Queiroz, aponta “incongruências” na decisão, afirmando que, “talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”.

Respeitosamente, discordamos dos fundamentos, bem como da conclusão a que chegaram Miguel Gualano de Godoy, Miguel Reale Júnior e Rafael Maffei Rabelo Queiroz. Para expor as razões das nossas discordâncias, é preciso, primeiro, recuperar os elementos do caso concreto.

Pois bem, eleito para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2022, Deltan Dallagnol teve seu registro de candidatura impugnado com base no art. 1º, inciso I, alíneas g e q, da Lei Complementar n. 64/1990 e no art. 14, § 9º, da Constituição de 1988, perante o Tribunal Regional Eleitoral do estado do Paraná.

Na origem, foi alegado que, na qualidade de coordenador da Operação Lava Jato, Dallagnol teve suas contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União por causar danos ao erário devido a irregularidades no pagamento de diárias e passagens de membros do Ministério Público Federal que atuaram naquela força-tarefa, no importe de R$ 2.831.808,53 (dois milhões, oitocentos e trinta e um mil reais e cinquenta e três centavos).[4] Dallagnol já foi condenado com censura e suspensão, chegando, inclusive, a judicializar as duas punições determinadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público, dando assim sobrevida aos processos administrativos em que foi condenado. 

Também foi alegado que a renúncia de Dallagnol ao cargo de Procurador da República foi uma tentativa de evitar a incidência da Lei da Ficha Limpa, já que pesava em seu desfavor 15 procedimentos investigativos perante o Conselho Nacional do Ministério Público e o então candidato já havia sido condenado no âmbito de dois processos administrativos disciplinares anteriores por condutas praticadas como coordenador da Operação Lava Jato.[5]

Por fim, foi alegado que Dallagnol teria perpetrado ilegalidades no âmbito da Operação Lava Jato. Por unanimidade, o Tribunal Regional Eleitoral do estado do Paraná julgou improcedentes os pedidos e deferiu o registro de candidatura. Interposto recurso ordinário ao Tribunal Superior Eleitoral, os autos foram distribuídos à relatoria do Ministro Benedito Gonçalves.

Quanto às contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, não houve maiores questionamentos. Isso porque o art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990 determina que são inelegíveis, para qualquer cargo, os candidatos que tiverem contas rejeitadas quanto ao exercício de cargo ou função pública por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário.

Assim, embora as contas de Dallagnol tenham sido de fato rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, há decisão judicial da 6ª Vara Federal de Curitiba que determinou a suspensão dos efeitos da condenação proferida pela Corte de Contas. Portanto, o Tribunal Superior Eleitoral entendeu não ser aplicável ao caso o art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990.

Toda a controvérsia gira em torno da aplicação unânime do art. 1º, inciso I, alínea q, da Lei Complementar n. 64/1990. Referido dispositivo legal dispõe que, dentre outras hipóteses não aplicáveis ao caso, são inelegíveis os membros do Ministério Público que tenham pedido exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar.

O Ministro Benedito Gonçalves, seguido pela totalidade dos Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, inicialmente, reconheceu a constitucionalidade da alínea q, do inciso I, do art. 1º, da Lei Complementar n. 64/1990, nos termos do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da ADI 4578. Posteriormente, analisou o caso à luz do instituto da fraude à lei.

Desse modo, segundo o Ministro, era preciso saber se a renúncia ao cargo de Procurador Federal por Dallagnol antes do término dos 15 procedimentos investigativos instaurados contra ele teria sido uma tentativa de, propositadamente, evitar que qualquer um desses procedimentos pudesse dar origem a um processo administrativo disciplinar, fato este que impediria a sua candidatura nas eleições de 2022, nos termos do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990.

Ou seja, tratava-se de investigar, à luz das circunstâncias fático-jurídicas do caso concreto, se a renúncia ao cargo de Procurador da República 11 meses da data limite para registro de candidatura por Dallagnol teria sido mero exercício regular de direito outeria sido um artifício ardilosamente utilizado pelo então Procurador para impedir a conclusão dos 15 procedimentos investigativos instaurados em seu desfavor e, assim, viabilizar a sua candidatura à Câmara dos Deputados, escapando da vedação imposta pelo art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990.

Para tanto, em seu voto, o Ministro Benedito Gonçalves, com apoio na doutrina, na jurisprudência de tribunais pátrios e nas disposições do Código Civil, definiu a fraude à lei da seguinte forma:

A fraude à lei, também denominada fraus legis, é vício apto a invalidaratos e negócios jurídicos. Caracteriza-se pela prática de conduta que, à primeira vista, tem amparo legal e consistiria em regular exercício de direito, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir finalidade proibida pela norma jurídica.

Tem-se, assim, uma prática revestida de aparência de legalidade, porémdissimulada, e que ao fim e ao cabo se revela ilícita a partir da conjugação de diversascircunstâncias específicas a serem verificadas no exame de um caso concreto.[6] (Destaques do original).

A partir de então, o Ministro Benedito Gonçalves analisa os elementos constitutivos do caso concreto para vislumbrar se a conduta de Deltan Dallagnol se enquadraria na hipótese de fraude à lei. Da perspectiva adotada no voto,

No caso dos autos, a somatória de cinco elementos, devidamente concatenados e contextualizados, revela de forma cristalina que o recorrido exonerou-se do cargo de procurador da República em 3/11/2021 com propósito de frustrar a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90.[7] (Destaques do original).

São apresentados, então, os cinco elementos caracterizadores da fraude à lei no caso concreto. O primeiro referente às condenações de Dallagnol em dois processos administrativos disciplinares pelo Conselho Nacional do Ministério Público, as quais resultaram na aplicação das penalidades de censura e advertência, que, justamente por isso, poderiam caracterizar maus antecedentes para fins de imposição de sanções mais gravosas em outros feitos: 

a) a anterior existência de dois processos administrativos disciplinares (PAD), com trânsito em julgado, nos quais o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aplicou ao recorrido as penalidades de censura e advertência, que por sua vez eram aptas a caracterizar maus antecedentes para fins de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93);[8]

O segundo relativo à tramitação de quinze procedimentos investigativos em desfavor de Dallagnol ao tempo do seu pedido de exoneração do Ministério Público Federal, os quais poderiam resultar na instauração de novos processos administrativos disciplinares pela prática de infrações cujas sanções possivelmente implicariam perda do cargo:

(b) tramitavam contra o recorrido, no CNMP, 15 procedimentos administrativos de natureza diversa (tais como reclamações), os quais, depois de sua exoneração a pedido, foram arquivados, extintos ou paralisados. Há ainda de se considerar dois fatores: (b.1) conforme disposições constitucionais e legais, esses procedimentos poderiam vir a ser convertidos ou darem azo a processos administrativos disciplinares (PAD); (b.2) os fatos a princípio se enquadram em hipóteses legais de demissão por quebra do dever de sigilo, do decoro e pela prática de improbidade administrativa na Operação Lava Jato;[9]

O terceiro elemento, por sua vez, diz respeito ao fato de um dos Procuradores da República que atuou em conjunto com Dallagnol na Operação Lava Jato ter sofrido a pena de demissão pelo Conselho Nacional do Ministério Público em processo administrativo disciplinar, por ter financiado a instalação de um outdoor em favor da força tarefa, contendo fotografia de Dallagnol:

(c) um dos procuradores da República que atuou com o recorrido na Operação Lava Jato sofreu penalidade de demissão em 18/10/2021, em processo administrativo disciplinar instaurado pelo CNMP a partir de anterior reclamação, por contratar e instalar outdoor em homenagem à força-tarefa, contendo fotografia na qual o recorrido também aparece(ato de improbidade administrativa);[10]

O quarto elemento é o fato de Dallagnol ter requerido a sua exoneração do Ministério Público Federal apenas dezesseis dias após a condenação do seu colega de Ministério Público narrada no item anterior:

(d) logo em seguida, apenas 16 dias após esse fato, o candidatorecorrido pediu sua exoneração do cargo de procurador da República;[11]

Por fim, o estranhamento público e notório do desligamento de DeltanDallagnol do Ministério Público Federal onze meses antes das eleições, enquanto a exigência legal de desincompatibilização é de seis meses de antecedência do pleito:

(e) a exoneração do recorrido em 3/11/2021, onze meses antes das Eleições 2022, causou espécie tanto pelos fatores acima como também porque, nos termos do art. 1º, II, j, da LC 64/90, os membros do Ministério Público apenas precisam se afastar do cargo faltando seis meses para o pleito, isto é, somente em 2/4/2022.[12]

Após esmiuçar cada um desses cinco elementos, o Ministro Benedito Gonçalves chega à seguinte conclusão:

Constata-se, assim, que o recorrido agiu para fraudar a lei, uma vez que praticou, de forma capciosa e deliberada, uma série de atos para obstar processos administrativos disciplinares contra si e, portanto, elidir a inelegibilidade.

Dito de outro modo, o candidato, para impedir a aplicação da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, antecipou sua exoneração em fraude à lei.

É importante reiterar: a inelegibilidade em apreço aplica-se no caso dos autos não com base em hipótese não prevista na LC 64/90, o que não se admite na interpretação de disposições legais restritivas de direitos.

Na verdade, o óbice incide porque o recorrido, em fraude à lei, utilizou-se de subterfúgio na tentativa de se esquivar dos termos da alínea q, vindo a se exonerar do cargo de procurador da República antes do início de processos administrativos envolvendo condutas na Operação Lava Jato.[13]

O Ministro Benedito Gonçalves, como já dito, foi seguido pela totalidade dos Ministros do Tribunal Superior Eleitoral. Por sete votos a zero, portanto, o Tribunal cassou o registro de candidatura de Deltan Dallagnol.

Essa decisão, bem como seus fundamentos, é que tem sido alvo de críticas por parcela da doutrina jurídica pátria, entre as quais se destacam as de Miguel Gualano de Godoy, Miguel Reale Júnior e Rafael Maffei Rabelo Queiroz.

Contra a decisão, Godoy afirma que “a lei exige processo administrativo disciplinar (PAD), e não qualquer procedimento administrativo”, como fundamento apto a causar a inelegibilidade de juízes e membros do Ministério Público. Por isso, da sua perspectiva, “o que torna um membro do MP inelegível é ele se exonerar tendo pendente contra si um processo específico, de natureza administrativa e sancionatória disciplinar”. Por essa razão, a conclusão a que chega Godoy é a seguinte: “não basta, portanto, mero procedimento administrativo preliminar. A lei exige processo administrativo disciplinar (PAD), que se destine a averiguar cabimento de sanção por violação de regras de conduta”.

Para fundamentar o seu posicionamento, Godoy afirma que “essa previsão da LC 64/1990 é uma regra. Um comando disjuntivo, que separa quando existe o fato que causa a inelegibilidade e quando ele não existe”. Dessa maneira, para Godoy, na qualidade de regra, esse dispositivo legal “ou se aplica integralmente, ou não se aplica. Não cabe tergiversação sobre isso. Ou existe PAD pendente, ou não existe. Não há circunstâncias que possam mitigar essa regra”.

Em oposição ao argumento da fraude à lei, Godoy argumenta que “não há fraude à lei porque os procedimentos administrativos nunca se tornaram PADs”. Prossegue para afirmar que “pode até ser que se tornassem [PADs]. Mas isso é mero exercício de futurologia, o que não se admite como argumento ou critério jurídico de julgamento. Ainda mais em se tratando de um direito fundamental”.

Dessa maneira, sustenta que “o TSE identificou numa conduta permitida pela lei (a exoneração de cargo de membro do MPF) uma fraude para escapar de possível inelegibilidade”. Não obstante isso, para Godoy, “essa inelegibilidade tem um marco fático e temporal bem definidos e que não se encontram presentes quando da exoneração de Deltan”. Assim, conclui afirmando não ser possível “interpretar de modo extensivo e expansivo a específica e objetiva previsão de inelegibilidade presente no art. 1º, I, q, que definiu a pendência de PAD como causa de inelegibilidade”.

Já Miguel Reale Júnior sustenta que “não se pode estender norma punitiva por meio de analogia ou uma interpretação ilática”. Classificando a decisão como arbitrária, Reale afirma que “não é por que Dallagnol praticou erros passados que se deve injustamente puni-lo com inelegibilidade”.

Por sua vez, Rafael Maffei destaca que os próprios limites adotados pela Lei Complementar n. 64/1990 serviriam “justamente para não haver casuísmo”. Logo, não seria possível vislumbrar a hipótese de fraude à lei, tal como reconhecida pelo Tribunal Superior Eleitoral, mas apenas e tão somente regular exercício de direito, uma vez que a renúncia ao cargo de Procurador da República se deu “visando os fins próprios” do ato.

Para Maffei, Dallagnol “tinha apurações preliminares em curso, muitas delas de relevo mínimo. Então, cassaram o mandato com base em apurações preliminares, que nem tinham se transformado em processo administrativo, dizendo que ele poderia ser condenado no PAD”. Tal fato, da sua perspectiva, redundaria em uma aplicação indevida da Lei n. 64/1990 ao caso.

Após essa breve recuperação dos argumentos de Godoy, Reale Júnior e Maffei, constata-se que os três se insurgem contra o que, da sua perspectiva, teria sido uma aplicação extensiva do art. 1º, inciso I, alínea q, da Lei Complementar n. 64/1990 ao caso. Essa aplicação supostamente extensiva seria indevida porque incidiu sobre uma hipótese fática não prevista no relato textual da regra para restringir um direito fundamental.

A linha argumentativa utilizada pelos referidos autores parece desconhecer o instituto da fraude à lei[14]. Ora, ao contrário do que afirmam, não houve, no caso, equiparação de procedimentos investigativos preliminares a processos administrativos disciplinares, o que, sim, resultaria em uma aplicação indevida do art. 1º, inciso I, alínea q, da Lei Complementar n. 64/1990. O que houve foi o reconhecimento da uma tentativa ardilosa de escapar dos rigores da lei por parte de Dallagnol.

Aliás, é bom relembrar que o instituto da fraude à lei pressupõe justamente isso, ou seja, que a conduta que a caracterize não esteja previamente tipificada. Não fosse assim, fraude à lei não seria, mas mera ilicitude. Portanto, não é porque o art. 1º, inciso I, alínea q, da Lei Complementar n. 64/1990, tenha um marco objetivo a partir do qual possa ser caracterizada a inelegibilidade nele prevista que ele não possa ser passível de fraude. Justamente por isso, aliás, Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero classificam a fraude à lei como uma espécie de ilícito atípico.[15]

Além disso, a fraude à lei consiste em mecanismo pelo qual a conduta do agente, embora formalmente dentro dos quadrantes legais, tem como objetivo perseguir fins que na verdade são proibidos pela lei. De fato, o instituto da fraude à lei não se caracteriza apenas pela análise discricionária ou da subjetividade do intérprete a respeito da vontade do agente que, no seu agir sob aparência legal, pretenda atingir fim ilegal. É preciso uma análise objetiva de todas as circunstâncias do caso.

Seguindo a trilha de teóricos como Friedrich Müller e Klaus Günther, uma aplicação jurídica imparcial é a que considera de modo adequado todas as circunstâncias do caso concreto como parte do processo de concretização do direito. Dito isso, para que um caso de fraude à lei seja caracterizado, exige-se do aplicador considerar todas as circunstâncias do caso concreto.

No caso de Dallagnol, cabe exatamente julgar as condutas concretamente praticadas pelo réu, o que não faz da decisão “personalista” no sentido de parcial, como seus críticos pretendem sustentar. Ao contrário disso, para levarmos a sério a exigência de imparcialidade de que na aplicação normativa a interpretação dos elementos do caso concreto faz parte do processo de concretização do direito, as decisões judiciais sempre serão “personalistas”, mas agora no sentido de que elas devem se adequar a fatos e circunstâncias que constituem aquele caso concreto como tal.

Godoy e, na verdade, todos aqueles que criticaram a decisão do TSE por adotar uma interpretação extensiva para restringir direitos fundamentais, consideram que a hipótese de inelegibilidade prevista no art. art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/1990 “é” uma regra. Godoy, inclusive, foi bem explícito ao dizer que entendia essa hipótese como uma regra na qual “ou se aplica integralmente, ou não se aplica. Não cabe tergiversação sobre isso. Ou existe PAD pendente, ou não existe. Não há circunstâncias que possam mitigar essa regra”.

Godoy partiria, aqui, ainda que implicitamente, da classificação dos standards normativos de Dworkin, em regras e princípios. Todavia, cabe lembrar que, após receber críticas de que a sua classificação conduziria a um conjunto fixo de padrões normativos, o próprio Dworkin ressaltou que não teve qualquer pretensão de afirmar que o direito é constituído por um conjunto fixo de regras ou princípios, mas que é na própria justificação das conclusões de juízes e juristas que a força própria do padrão normativo é extraída.[16]

Em outras palavras, não é possível saber se um dispositivo legal corresponderia semanticamente a um princípio ou a uma regra. A afirmação peremptória de Godoy de que o art. 1º, inc. I, alínea q, da Lei Complementar n. 64/90 “é” uma regra não faz sentido, seja em relação à teoria de Dworkin, seja ao contexto de aplicação, que exige levar a sério os elementos do caso concreto. Como bem diz Francisco Kliemann a Campis, também entendemos que é possível reconhecer com base em Dworkin a correção da decisão que indeferiu o registro de candidatura de Dallagnol.[17] Assim como no famoso caso Riggs vs. Palmer, ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza.

Lenio Streck explica isso muito bem: “No caso do direito administrativo disciplinar, o princípio que sustenta o sistema é: ninguém pode sair do serviço público e ficar 'devendo' questões disciplinares. A exoneração não pode ser usada para escamotear o dever da administração de averiguar e sancionar servidores que cometeram faltas ou ilícitos. Se assim não fosse, a exoneração poderia ser posta como 'fator de exclusão' de culpa. Ou exclusão de ilicitude. Por isso o TSE acertou.”[18]

Vale lembrar também que a disciplina normativa-sancionatória dos membros do Ministério Público da União da Lei Complementar n. 75/1993, especialmente os artigos 239 e 240, traz uma gradação de sanções administrativas, ao menos dentro do lapso temporal de quatro anos, que determina a reincidência, que vão da advertência, da censura, da suspensão e da demissão. Dallagnol já foi condenado com censura e suspensão, chegando, inclusive, a judicializar as duas punições determinadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público, dando assim sobrevida aos processos administrativos em que foi condenado. Além disso, o art. 241 da Lei Complementar n. 75/1993 determina considerar, para a fixação da sanção, as circunstâncias dos antecedentes (que se diferencia da reincidência), a natureza e a gravidade da infração, as circunstâncias em que foram praticadas e os danos daí resultantes.

Nessa última hipótese, as circunstâncias não eram favoráveis para Dallagnol. Afirmação facilmente feita pela percepção jurídico-pública enquanto ele atuou como Procurador da Operação Lava-Jato. Os noticiários davam notícias de sua atuação cotidianamente, até mesmo por isso ficou conhecido e foi eleito. No entanto, as suas atuações e práticas resvalavam para a ilegalidade.

Dessa forma, exatamente por ter instrumentalizado o cargo público para fins pessoais é que José Rodrigo Rodriguez, em diálogo com o artigo de Godoy, verifica o acerto da decisão.[19] Como alerta Rodriguez, ao fim e ao cabo, trata-se do respeito à soberania popular, uma vontade popular que deve se manifestar de acordo com os fins colimados para o Estado Democrático de Direito. Para ele, a soberania popular que foi violada por Dallagnol no exercício das funções como membro do Ministério Público, acabando por ariscar a legitimidade da própria instituição.[20]

A nós, o acerto vai além da finalidade alcançada pela decisão ao procurar limitar abusos praticados pela instrumentalização das posições de poder. Entendemos que a soberania popular também é garantida pelas hipóteses de inelegibilidade.

As alterações promovidas pela denominada Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010)nas hipóteses de inelegibilidade - cujo caso de Dallagnol se enquadra - se apresentam também como uma garantia da soberania popular, não apenas pela topografia no Texto Constitucional (art. 14º, §9º da CF/88), mas por dizerem respeito a limitações e prescrições substantivas próprias ao devido processo eleitoral.

Dessa forma, eventual fraude à lei que impõe hipóteses de inelegibilidades deve ser entendida também como violação à soberania popular e ao devido processo eleitoral. Não é, sem razão, que a ocorrência das hipóteses de inelegibilidades acarreta as maiores sanções possíveis, como a extinção do mandato e a perda da capacidade eleitoral passiva por prazo determinado, dentro do direito eleitoral. É que se trata de proteção ao próprio fim do direito eleitoral, a soberania do povo. A fraude ao princípio da soberania popular, compreendido em um sentido qualitativo de proteção ao Estado Democrático de Direito, é um ato ilícito da maior gravidade no direito eleitoral.

Nesse sentido, consideramos que a decisão do TSE, ao reconhecer a inelegibilidade de Deltan Dallagnol, foi constitucionalmente correta e adequada ao caso concreto, porque levou em consideração a coerência e a integridade do direito eleitoral e do instituto da inelegibilidade, tendo coibido a fraude à lei, considerando os aspectos relevantes do caso concreto.

 

Notas e referências

[1] ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. Tradução de Juliana Roland Matilda. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 14.

[2] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-tse-cacou-deltan-cassando-o-registro-de-sua-candidatura-19052023. Acesso em: 19 mai. 2023.

[3] Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/reale-jr-ve-arbitrio-e-abuso-na-cassacao-de-deltan-da-lava-jato-pelo-tse/. Acesso em: 19 mai. 2023.

[4]Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/647020220.PROC/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/1/%2520. Acesso em: 19 mai. 2023.

[5] Referidas condenações foram proferidas no PAD n. 1.00898/2018-99, Relator  Conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, e no PAD n. 1.00982/2019-48, Relator Conselheiro Otávio Luiz Rodrigues Junior. No primeiro, Deltan Dallagnol foi condenado por descumprir dever de guardar decoro pessoal e de urbanidade, ao conceder entrevista ao Jornal da CBN, no dia 15 de agosto de 2018, na qual associou a atuação dos Ministros Dias Toffolli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal à corrupção. No segundo, Dallagnol foi condenado por violar o dever de decoro ao fazer publicações em seu perfil no Twitter de cunho político-partidário sobre a eleição para a presidência da Mesa do Senado Federal para o primeiro biênio da legislatura 2019-2022.    

[6] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel. Benedito Gonçalves, p. 19-20.

[7] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel. Benedito Gonçalves, p. 23.

[8] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel. Benedito Gonçalves, p. 24.

[9] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel.Benedito Gonçalves, p. 24.

[10] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel.Benedito Gonçalves, p. 24.

[11] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel.Benedito Gonçalves, p. 25.

[12] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel. Benedito Gonçalves, p. 25.

[13] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário 601407-70. Voto Min. Rel. Benedito Gonçalves, p. 31.

[14]ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. Tradução de Juliana Roland Matilda. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[15] ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Ruiz. Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. Tradução de Juliana Roland Matilda. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[16] DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 331.

[17] Cf. também KLIEMANN A CAMPIS, Francisco. Dworkin explica decisão que indeferiu registro da candidatura de Dallagnol. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-20/diario-classe-decisao-cassou-mandato-dallagnol-foi-correta-dworkin-explica

[18] Em VITAL, Danilo. TSE não extrapolou interpretação sobre inelegibilidade ao cassar DeltanDallagnol. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-17/cassar-deltan-tse-nao-deu-interpretacao-extensiva-inelegibilidade.

[19] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/deltan-dallagnol-e-o-tse-uma-decisao-acertada-23052023.Acesso em: 23 de maio de 2023.

[20] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/deltan-dallagnol-e-o-tse-uma-decisao-acertada-23052023.Acesso em: 23 de maio de 2023.

 

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