O caso Daniel Silveira e o direito de graça constitucional no Estado Democrático de Direito: seus contornos, seu estatuto e seus limites em uma ordem constitucional-democrática

25/04/2022

Coluna Constituição e Democracia

O Presidente Bolsonaro editou Decreto, sem número, em 21 de abril de 2022, concedendo indulto individual ao Deputado Daniel da Silveira, condenado por decisão do Supremo Tribunal Federal, à pena de 8 anos e 9 meses de prisão, em regime inicial fechado, pelos crimes previstos no art. 23, inc. IV cumulado com art. 18 da Lei 7.170/83 e também ao art. 344 do Código Penal.[1] Os atos objeto da condenação do agraciado são bastante conhecidos. Aqui, apenas relembramos que as condutas praticadas pelo Deputado que foram condenadas juridicamente no âmbito da Ação Penal 1.044 caracterizaram-se como delitos de atentado à ordem constitucional e à ordem democrática e, por isso, subsumidas na Lei 7.170/83 vigente à época da prática das condutas.

Em breve síntese, é importante destacar alguns pontos da conduta do Deputado Daniel da Silveira, exatamente para contextualizarmos o nível de degradação jurídico-institucional que agride frontalmente a Constituição e o Estado Democrático de Direito. Daniel da Silveira publicou vídeo no YouTube e teve sua prisão em flagrante, posteriormente convertida em preventiva, em 16 de fevereiro de 2021 por ter exposto vídeo no qual incitava a surra em ministros do Supremo Tribunal Federal, dizendo que já tinha imaginado dando uma “surra” (sic) no Min. Edson Fachin. Em outro ponto, asseverava que a Suprema Corte deveria ser toda destituída. Que todos deveriam ser retirados, por nova nomeação ou por aposentadoria compulsória e lembrou do AI – 5. Além disso, disse que os ministros seriam presos.

Em outro vídeo, Daniel da Silveira disse que defenderia que “o povo entrasse dentro do STF, agarrasse o Ministro Alexandre de Moraes pelo colarinho e sacudisse aquela cabeça de ovo dele” (sic). Na verdade, o condenado passou a atuar cada vez mais agressivamente após ser investigado pelo STF no âmbito de investigação aberta para apurar a prática de atos antidemocráticos no Inq. 4.828. Naquela investigação, foram adotadas medidas cautelares como o afastamento dos sigilos bancário e fiscal do investigado e busca e apreensões nos domicílios do Deputado.

A PGR propôs a denúncia imputando ao Deputado a prática dos delitos, em concurso material, dos artigos 344 (por três vezes) do Código Penal, e dos artigos 23, incisos II (uma vez) e IV (por duas vezes) combinados com o artigo 18 da Lei 7170/1983.[2] Na sessão de julgamento do dia 20 de abril de 2022, o Supremo Tribunal Federal, por 10 votos e um contrário, condenou-o nas penas dos artigos 344 e do artigo 23, inc. IV da Lei 7.170/83, absolvendo-o, contudo, da imputação do artigo 23, inc. II da Lei 7170/83, tendo a dosimetria realizada pela Corte estabelecido a condenação em 8 anos e 9 meses de reclusão em regime inicial fechado, além de 35 dias-multa cada qual no valor de 5 salários mínimos, mais a perda do mandato parlamentar e a suspensão dos direitos políticos.[3]

Fundamentado no artigo 84, inc. XII da CR/88 e no art. 734 do Código de Processo Penal, logo após ser publicado, o indulto já levanta questionamentos acerca de sua compatibilidade com a ordem constitucional. Trata-se do primeiro indulto individual dado por um Presidente da República após a redemocratização e, ainda, circundado por um contexto de desprezo à ordem democrática e às instituições republicanas. Nessa medida, um primeiro questionamento que sobressai é os contornos que devem ser feitos ao instituto em um regime republicano.

A clemência ou graça constitucional do Presidente da República é um instituto que tem inspiração no poder de misericórdia dado aos reis nos regimes monárquicos. Nesses regimes políticos, a misericórdia é praticada com fundamento na autoridade divina que é outorgada aos monarcas. Entretanto, no regime republicano, a clemência ou graça constitucional é prerrogativa conferida ao Presidente da República que deve exercê-la como representante da sociedade. O direito de graça constitucional se subdivide, portanto, em anistia, graça em sentido estrito e indulto.[4]

Assim, a adoção do direito de graça na república deve-se tanto a razões de índole pragmática quanto de ordem normativa. Os comentários ao artigo que viria a ser a seção 2 do artigo II da Constituição de 1787[5] nos Federalists Papers dão conta de que as leis criminais tiveram um rigor excessivo na maior parte dos países e, dessa forma, a faculdade de perdoar conferida a um único indivíduo poderia fazer com que este tivesse um senso maior de responsabilidade, tanto para não ceder à pressão do condenado quanto para não demonstrar fraqueza.[6]

No entanto, a principal razão reside, segundo os founding fathers, na possibilidade de que, em momentos críticos de revolta e insurreição, o perdão atende a propósitos de conferir paz à sociedade. Dito de outro modo, a possibilidade conferida ao Presidente da República de perdoar é o que possibilita, por exemplo, revoluções como a que se produzem em momentos de transformações da ordem constituída. Em última análise, é uma prerrogativa que possibilitaria a ordem na raiz da república com a derrocada da monarquia. De qualquer sorte, eles reconhecem que esse poder não é absoluto, sendo limitado pelo próprio direito e também por razões de política criminal já que traria um sentimento de impunidade.[7]

No Brasil, a Constituição do Império de 1824 previu o perdão ao então Poder Moderador exercido pelo Imperador, tanto na possibilidade de perdoar as sentenças impostas quanto as penas aplicadas (art. 101, inc. VIII). Se, pois, no regime monárquico, o Poder Moderador exercitaria suas prerrogativas emanadas do poder espiritual, o exercício dessa prerrogativa era visto como absoluta e insuscetível de controle. Nessa esteira, a ausência de sujeição a qualquer tipo de responsabilidade na pessoa do Imperador enquanto estivesse no exercício das funções de Poder Moderador era corolário da lógica do regime monárquico.

Na passagem para o regime republicano, a Constituição de 1891 previa a prerrogativa no art. 48, 6º: “Compete privativamente ao Presidente da República: [...] 6º) indultar e comutar as penas nos crimes sujeitos à jurisdição federal, salvo nos casos a que se referem os arts. 34, nºs 28, e 52, § 2º”. Dois limites explícitos foram estabelecidos para o indulto e a comutação de penas por parte do Presidente da República. O primeiro dizia respeito a possibilita de perdão e comutação de penas na hipótese de crime de responsabilidade cometido pelos funcionários federais, faculdade que era do Congresso Nacional. O segundo limite era o delito comum e de responsabilidade dos Ministros de Estado, processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Em nossa primeira constituição republicana a prerrogativa constitucional da clemência presidencial já sofria limitações, oriunda da ideia de responsabilização das autoridades públicas e da forma como se estruturava as competências entre os poderes.

Na redação da Constituição de 1934, extinguia-se a possibilidade do Presidente da República conceder, de ofício, o perdão ou a comutação de penas criminais que previa a prévia proposta dos órgãos competentes, embora sem a indicação de quais seriam esses. Assim, a prerrogativa estava prevista no art. 56, 3º: “Compete privativamente ao Presidente da República: [...] 3º perdoar e comutar, mediante proposta dos órgãos competentes, penas criminais”. De forma ampla, a prerrogativa de perdoar sem condições ou limitações só adveio sob a vigência da Constituição outorgada por Getúlio Vargas de 1937 que a previa no art. 75, f: “São prerrogativas do Presidente da República: [...] f) exercer o direito de graça”.

A Constituição de 1946 retoma a lógica de que a faculdade de perdoar dada ao Presidente da República enseja condições. Dessa forma, o art. 87, inc. XIX estabelecia a competência para conceder e comutar penas, desde que com prévia audiência dos órgãos previstos em lei. Essa previsão foi mantida na vigência da Carta de 1967 no art. 83, inc. XX e com a inclusão da possibilidade do Presidente delegar, em certos casos, essa prerrogativa aos Ministros de Estado. Dessa mesma forma, a E.C. 1/69 manteve essa faculdade.

Seguindo a tradição constitucional, a Constituição de 1988 estabeleceu a prerrogativa de concessão de indulto ou comutação de penas, com audiência dos órgãos instituídos em lei, mas condicionando a oitiva à necessidade: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”. A breve reconstrução das previsões nas constituições anteriores demonstra que essa prerrogativa não é absoluta e está sujeita a limites constitucionais e procedimentais, mormente em períodos democráticos.

À primeira vista, a Constituição da República estabelece apenas que o Presidente tem a competência para conceder indulto, sem indicar a possibilidade de graça. No entanto, a redação do art. 84, inc. XII sofre de uma confusão terminológica e, assim, no plano prático, o indulto é gênero do qual são espécies o indulto coletivo e o individual. O indulto individual é sinônimo da graça, ou seja, aquele concedido de forma individual, enquanto que o indulto propriamente dito é o concedido de forma coletiva. A existência da graça ou do indulto individual em nosso ordenamento constitucional pode ser extraída da redação do inciso LXIII do art. 5º que proíbe a concessão de “graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”. Portanto, apenas uma leitura parcial e fragmentada da Constituição de 1988 poderia deduzir a extinção do indulto individual ou da graça. De qualquer sorte, tanto uma espécie quanto outra podem ser concedidas de forma total ou parcial, nesta última também denominada de comutação de pena que pode tanto diminuir a fração imposta quanto modificar seu estatuto.

De qualquer sorte, a faculdade constitucionalmente conferida ao Presidente da República de conceder a graça, isto é, isentar de pena ou afastar o poder de punir do Estado insere-se dentro da possibilidade que tem o Presidente da República de aplicar a Constituição e o direito.[8]Daí que se deve, desde logo, afastar a ideia de que a graça tem estatuto administrativo ou judicial, mas sim ato de governo ou político.

O Código Penal prevê como causa de extinção da punibilidade tanto a anistia, quanto a graça e o indulto (art. 107, inc. II). Ali, portanto, se trata da previsão da consequência jurídico-penal do indulto, coletivo ou individual, concedido de forma total.  De outro lado, a regulamentação da aplicação do indulto individual ou graça, em nosso ordenamento jurídico, tem previsão tanto na Lei 7.210/84 em seus artigos 188 a 192, dispostos no capítulo III do Título VII que tratam dos incidentes na execução penal, quanto no Código de Processo Penal em seus artigos 734 a 738 que estão inseridos no capítulo I do Título IV que tratam, de forma autônoma, dos institutos da Graça, Anistia, Indulto e Reabilitação Criminal. Com efeito, parte do que é ali consignado foi, de alguma forma, revogado tacitamente pela Lei Execução Penal, posto que mereceram um tratamento jurídico mais acurado pela Lei de Execução Penal ao considerar tais institutos de estatuto misto, isto é, tanto de estatuto jurídico-material quanto processual.

Assim, no Código de Processo Penal, a faculdade conferida de concessão de graça depende de petição do condenado, de qualquer do povo, do Ministério Público, ou do Conselho Penitenciário, além da concessão espontânea, de ofício, por parte do Presidente da República (art. 734). Por seu turno, o artigo 188 da Lei de Execução Penal, entretanto, não prevê a hipótese de concessão de graça espontânea pelo Presidente da República, estabelecendo a iniciativa para sua concessão ao condenado, ao Ministério Público, ao Conselho Penitenciário ou a autoridade administrativa (art. 188 da LEP). Contudo, a ausência da previsão de concessão de oficio no âmbito da Lei de Execução Penal não implica sua revogação na ordem jurídica. É que, no caso da Lei de Execução Penal, a previsão da graça, do indulto e da anistia está inserida no capítulo III do Título VII que trata, exatamente, dos incidentes na execução penal e, assim, tratam do aspecto processual dos institutos. Tendo estatuto jurídico misto, o indulto, enquanto forma de extinção da punibilidade, é concedido por ato do Presidente e sua aplicação, ao caso concreto, depende de sentença do juízo da execução penal que apenas o reconhece. Trata-se, assim, de um direito subjetivo do condenado de ver sua pena extinta ou comutada amparado por ato do Presidente da República.

O estatuto jurídico de direito subjetivo do condenado fica evidenciada no teor do artigo 739 do CPP que prevê a possibilidade do condenado recusar a comutação da pena. Tal faculdade conferida ao acusado faz todo sentido na medida em que ele poderá ser até mesmo absolvido em caso de eventual procedência de Revisão Criminal. Ou seja, como o ordenamento jurídico confere mecanismos de extinção da punibilidade que lhe é mais favorável, uma vez que abarca todas as consequências, sociais e jurídicas, do fato imputado como criminoso, está dentro de sua liberdade jurídica a escolha entre aceitar ou recusar eventual indulto individual.

Com efeito, o procedimento para a concessão do indulto individual ou graça, desde que não seja concedido de ofício pelo Presidente, é iniciado por petição acompanhada de documentos que a instruem para a emissão de parecer por parte do Conselho Penitenciário com relatório da situação do condenado e seu procedimento após sua prisão (arts. 189 a 190 da LEP e arts. 735 e 736 do CPP) que, após, encaminhará ao Ministério da Justiça. Após o processamento no Ministério da Justiça, a petição será encaminhada ao Presidente da República (art. 191 da LEP e 737 do CPP) que decidirá pela sua concessão ou não.  Concedido, o Presidente fará juntar a cópia do Decreto aos autos, ocasião em que o juiz declarará extinta a pena ou ajustará a mesma, no caso de comutação (art. 192 da LEP e 738 do CPP).

O instituto do indulto, embora não sem críticas por supostamente atentar contra a igualdade, no Estado Democrático de Direito, se insere dentro do espectro de uma competência excepcional do Presidente da República para a correção de eventuais erros judiciários ou de caminhos de política criminal para a promoção de valores públicos. Isto é, seu feixe de concreção aparece quando há exigência de correção de rumo no próprio processo de aprendizagem social no desenvolvimento do Direito em uma sociedade. Por isso, a legitimidade do indulto, tanto em versão coletiva quanto individual, está ancorada quando as situações ensejarem que, através da clemência, os benefícios para a defesa da comunidade política sejam maiores que eventuais punições.[9]

Assim, a rigor, no caso da graça ou indulto individual, a análise da conveniência e oportunidade de extinguir a punibilidade ou comutar eventual pena depende da natureza do crime, mas também da avaliação das condições do condenado, da quantidade da pena e de sua espécie.[10]É nessa análise das condições concretas que fazem o Presidente da República considerar que o afastamento do poder de punir do Estado atende melhor aos interesses comunitários do que a punição que reside a esfera de discricionariedade conferida ao Presidente da República.

Desse contorno jurídico do instituto da graça ou indulto individual em nosso ordenamento se extraem duas importantes consequências: 1) se trata de um ato concreto e individual que beneficia um ou alguns condenados de forma determinada; 2) o juízo de mérito da conveniência e oportunidade do Presidente da República não pode ser substituída pelos demais poderes constituídos.

Assim, em um primeiro ponto, a discricionariedade no ato de concessão da graça constitucional não quer significar que o instituto esteja a salvo ou imune a seu exame de compatibilidade com a ordem constitucional. Ou seja, é incorreto o entendimento de que o indulto e a graça são imunes e insuscetíveis ao controle de constitucionalidade e de legalidade. Quando, portanto, a doutrina afirma que se tratar de um ato governo, quer isso dizer que a concessão do indulto ou graça atrai, para o Presidente da República, uma responsabilidade política.[11]

Nesse sentido, no importante precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 5874, estabeleceu-se que compete à Corte, no controle de constitucionalidade, examinar a observância do respeito à ordem constitucional e não substituir o juízo de conveniência e oportunidade, dentre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, realizada pelo Presidente da República que melhor atende ao interesse público no âmbito da política criminal.[12]

Em breve síntese, a ação direta de inconstitucionalidade alegava a inconstitucionalidade do indulto coletivo natalino concedido pelo ex-Presidente Michel Temer que previa, dentre outros, a extinção da pena daquele que tivesse cumprido 1/5, se reincidente, e 1/3, acaso reincidente, desde que o delito fosse cometido sem violência ou grave ameaça, o requisito temporal seria, também, reduzido para 1/6 ou 1/4, conforme se tratasse de reincidente e o condenado fosse enquadrado em alguma hipótese como estar gestante, a idade igual ou superior a setenta anos, filho de até quatorze anos ou com deficiência ou doença crônica grave, etc. Ainda, o indulto também abarcaria a pena de multa aplicada cumulativamente e ainda que houvesse trânsito em julgado para a condenação; houvesse recurso da acusação após análise em segunda instância e a pessoa respondesse a outro processo sem decisão condenatória em segunda instância.

O voto do relator originário, Min. Luis Roberto Barroso, estabelecia como premissa que era possível o controle de constitucionalidade quanto ao conteúdo do indulto. Para ele, o indulto – tratava-se do indulto coletivo – tinha dois objetivos: servir como mecanismo de política criminal no aliviamento do sistema penitenciário e um caráter humanitário. Em seu entendimento, os argumentos para a inconstitucionalidade seguiam, em um primeiro ponto, o fato de que o indulto beneficiaria aqueles indivíduos que foram condenados por corrupção, posto que esses atos, muitas vezes, não são praticados com violência ou grave ameaça. Dessa forma, o indulto ofenderia a moralidade e a probidade administrativa e incorreria em desvio de finalidade em uma vertente objetiva, já que indultava a pena de indivíduos que desviaram milhões de reais dos cofres públicos, e não atendia aos fins humanitários do instituto. Em um outro ponto, a inconstitucionalidade é a previsão de prazo inferior ao livramento condicional e independentemente do prazo de cumprimento da pena para sua concessão que teria o condão de substituir a prerrogativa do Congresso Nacional de estabelecer, precipuamente, as diretrizes da política criminal.[13]

O voto que conduziu a maioria pela improcedência da ação foi do Min. Alexandre de Moraes. Recuperando o estatuto jurídico do indulto como ato privativo e discricionário do Presidente da República e como mecanismo que estabelece freios e contrapesos aos poderes, o voto estabelece que, embora discricionário quanto ao mérito, está vinculado ao império constitucional. Portanto, em seu entendimento é possível o controle de constitucionalidade do indulto, eis que “compete, privativamente, ao Presidente da República conceder indulto, desde que não haja proibição expressa ou implícita no próprio texto constitucional, como ocorre em relação aos crimes hediondos e assemelhados, para quem a própria Constituição da República entendeu necessário o afastamento das espécies de clemencia principis” [14]. Dessa forma, a existência de limites constitucionais, explícitos e implícitos, atraem a possibilidade de controle de constitucionalidade e não do juízo de mérito do indulto.

Há, portanto, mesmo nos atos discricionários, como emanações do Estado de Direito, um controle judicial mínimo, seja quanto aos fundamentos fáticos e jurídicos ou que o fim perseguido seja legal. Nesse ponto, seguiu o Ministro, a análise da constitucionalidade deve verificar a realidade dos fatos e a coerência lógica da decisão discricionária com os fatos. Desse modo, se evitaria o exercício arbitrário de um poder que tomaria decisões desprovidas de fundamentação fática.

Em suma, o Min. Alexandre de Moraes sintetiza bem o âmbito e o escopo do controle de constitucionalidade do indulto ao dizer que não compete ao Supremo Tribunal Federal reescrever o decreto de indulto, pois ou a escolha do Presidente da República extrapolou o limite de sua discricionariedade e a norma é inconstitucional ou, dentre as opões constitucionalmente legítimas, o Presidente escolheu uma delas e não poderá ser substituída por uma escolha discricionária do poder judiciário, ainda que esta pareça ser a melhor.[15]A maioria acompanhou a divergência aberta pelo Ministro Alexandre de Moraes e julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade.

Logo que foi publicado, o decreto de indulto concedido pelo Presidente Bolsonaro ao Deputado Daniel da Silveira suscitou controvérsias quanto à sua constitucionalidade. Os Partidos Rede Sustentabilidade, PDT, Cidadania e PSOL ajuizaram ADPF’s perante o STF alegando sua inconstitucionalidade. Outras iniciativas foram tomadas como, por exemplo, a propositura de um Projeto de Decreto Legislativo feito pelo Senador Renan Calheiros no Senado Federal e outro da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados para sustá-lo com fundamento no art. 49, inc. V da CR/88, além também de peticionamento incidental no âmbito da AP 1044.

Toda essa reação política e jurídica leva-nos à necessidade de tentar contribuir com o debate público e analisar o caso concreto, sob o prisma estritamente constitucional. Muitos dos argumentos trazidos nas ADPF`s ajuizadas pelos partidos políticos fundam-se, entre outros, na violação à separação de poderes, da moralidade administrativa com o desvio de finalidade e da impessoalidade.

Em primeiro lugar, deve-se discutir o argumento da inconstitucionalidade do decreto do indulto por ofensa à impessoalidade administrativa. Como vimos, a concessão de graça tem sua própria razão de existir no oferecimento de uma determinada benesse para um indivíduo determinado e, desse modo, o argumento da impessoalidade ressoa frágil ao buscar equiparar um ato de governo com um ato administrativo.

Contudo, em segundo lugar, a violação à separação de poderes ficou evidente na medida em que, sem nem mesmo ter havido a publicação do acórdão, ainda durante o prazo recursal, o Presidente da República indultou a pena aplicada ao Deputado Daniel da Silveira. A doutrina, de forma unânime, elenca que os requisitos para a concessão do indulto é a decisão condenatória definitiva[16] ou o trânsito em julgado[17] e tem como objeto os crimes comuns. Em todas as previsões legais que regulamentam o instituto, tal como na Lei de Execução Penal e mesmo no Código de Processo Penal, o legislador utilizou a expressão “condenado” para se referir ao agraciado ou beneficiado. Dessa forma, como se sabe, o status jurídico de condenado é distinto do réu em virtude da existência de decisão condenatória com o trânsito em julgado. Dessa forma, o indulto, seja coletivo ou individual, só pode beneficiar os indivíduos após o trânsito em julgado da sentença condenatória que aplique determinadas penas.

No caso em questão, antes mesmo da publicação do acórdão, um dia após a sessão de julgamento, o decreto presidencial buscou afastar a aplicação da pena do condenado Deputado Daniel da Silveira. Esse fato, por si só, é já um indício da tentativa que faz o Presidente Bolsonaro de utilizar o indulto como forma de sucedâneo recursal e substituir o exercício da função jurisdicional da Corte Suprema por sua própria vontade. O exercício do direito ou poder de graça constitucional, nesse contexto, desborda de seu limite delimitado na Constituição e adentra em exercício arbitrário.

Se a concessão do indulto individual antes da publicação do acórdão condenatório não fosse suficiente, os motivos levantados no decreto presidencial escancaram sua pretensão de substituir no mérito a sentença condenatória por suas próprias motivações arbitrárias. Invoca, em um primeiro momento, o exercício da liberdade de expressão como pilar fundamental para a sociedade: “Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações”. Após, levanta o caráter discricionário e excepcional do indulto para a manutenção da harmonia e a separação entre os três poderes: “Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes”. Para, então, assumir que, ali, o Presidente da República velaria pelo interesse público e que havia uma comoção popular pela condenação do parlamentar que fez uso, apenas, da sua liberdade de expressão: “Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão”[18]. Só então que o Presidente passou a decretar o indulto ao Deputado Daniel da Silveira.

É facilmente perceptível que o Presidente da República busca substituir, através do decreto de indulto, o juízo de desvalor na condenação do Deputado Daniel da Silveira quanto aos fatos criminosos que lhe são imputados. O que a motivação pretende é que os fatos imputados como crime sejam considerados como mero exercício da liberdade da expressão, quando o Supremo Tribunal Federal já os considerou condutas criminosas praticadas pelo parlamentar. Ao buscar substituir, no mérito, a decisão do Supremo Tribunal Federal, o ato do Presidente da República incide em grave violação à separação de poderes. Assim como na ADI 5874, o STF definiu expressamente que a Corte Suprema não pode substituir o mérito do indulto, também o indulto não pode substituir o mérito da decisão condenatória.

E não é só. Outro ponto de grave inconstitucionalidade deve ser objeto de uma interpretação constitucional que leve a sério o Estado Democrático de Direito. O Supremo Tribunal Federal reconhece a existência de limites constitucionais implícitos, ao lado dos limites constitucionais explícitos como o estabelecido no art. 5º, inc. XLIII da CR/88, à competência de conceder indulto, sob pena de se ter situações incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Assim, por exemplo, o voto da Min. Carmen Lúcia na ADI 5874, embora vencido, estabelece, como exemplo, o indulto presidencial que beneficiasse o próprio Presidente da República.[19]

Dessa maneira, o principal limite constitucional implícito é, de acordo com uma teoria do direito como integridade, a própria ordem constitucional e democrática. Isto é, o indulto, enquanto mecanismo instituído pela e para a democracia e a Constituição, não pode ser utilizado contra a própria Constituição e a democracia. No caso em questão, o indulto do parlamentar teve como objeto a extinção da pena pela prática de delitos contra a própria ordem constitucional e democrática. Se afigura, assim, uma utilização da prerrogativa constitucional contra a própria Constituição, fato inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Nesse ponto, o Decreto presidencial incorre em verdadeira fraude à Constituição, na medida em que busca agraciar um condenado que atentou contra a própria ordem constitucional. Ora, a exigência de que se vedem indultos que beneficiem delitos praticados contra a ordem constitucional e democrática volta-se para uma compreensão de integridade constitucional. Não pode um ato praticado com fundamento na própria ordem constitucional-democrática buscar violá-la, sob pena de esvaziarmos o sentido normativo do Estado Democrático de Direito.

Além do mais, quando a própria Constituição exclui a possibilidade de indulto para alguns delitos considerados graves, como a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os crimes definidos como hediondos, quer significar que há alguns bens jurídicos que, se violados, devem ser obrigatoriamente criminalizados e punidos. Sob essa ótica, há bens jurídicos que são especialmente protegidos por força de decisão do poder constituinte originário.

Naturalmente, um desses bens jurídicos merecedores de tutela especial é a própria ordem constitucional e democrática. Vale citar, por exemplo, a inafiançabilidade e a imprescritibilidade da ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático no art. 5º, inc. XLIV da CR/88. Embora guardadas as nuances do caso concreto, que não se enquadraria no supracitado dispositivo constitucional, o ato do parlamentar vilipendiou o próprio princípio de proteção à ordem constitucional e democrática que estaria subjacente a esse dispositivo.

Um ato que afasta o poder de punir do Estado por delito contra a ordem constitucional e democrática tem um significado prático preciso: o Presidente em seu juízo de valor considerou que a não punição de um ato que ataca a ordem democrática e constitucional melhor atenderia o interesse da comunidade política do que o cumprimento da penalidade. Esse é o paradoxo constitucional: a despeito de proteger a comunidade política, o Presidente da República passa a vilipendiá-la, na medida em que não considera as condutas violadoras de bens jurídicos constitucionalmente tutelados como passíveis de crimes e sujeitos à punição.

Assim, o Presidente da República se tornaria politicamente cúmplice dos atos que atentam contra a ordem constitucional e democrática e, no limite, atrairia para si a responsabilidade política ao cometer o crime de responsabilidade previsto no art. 85, caput e inciso II da CR/88: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação” com tipificação  no art. 6º, 5 da Lei 1.079/50 que determina: “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: 5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças”.

Enfim, a possibilidade de responsabilização política é um dos elementos que caracterizam a prática de atos de governo. Nesse caso, ao se posicionar e conceder um indulto individual, em favor do parlamentar que atenta contra a própria ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, o Presidente da República cometeu, no mínimo, mais esse crime de responsabilidade, para além das inconstitucionalidades que foram elencadas.

 

Notas e Referências

[1] A seguir, o conteúdo do Decreto: “Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos: I - no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983; e II - no art. 344 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos” BRASIL. Decreto de 21 de abril de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-de-21-de-abril-de-2022-394545395, acesso em 22 de abril de 2022.

[2] BRASIL. Procuradoria-Geral da República, denúncia oferecida na Ação Penal 1044. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/integra-denuncia-pgr-deputado-daniel.pdf, acesso em 22 de abril de 2022.

[3] Notícia disponível no sítio oficial do STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=485660&ori=1, acesso em 22 de abril de 2022.

[4] ENGELMANN, Wilson, LEAL, Daniele Weber. Comentários ao artigo 84, inciso XII. In: CANOTILHO, J. J. Gomes, MENDES, Gilmar Ferreira, SARLET, Ingo Wolfgang, STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 1343.

[5] O poder de graça está contido no texto da seção que assim dispõe: “Terá o poder de indulto e de graça por delitos contra os Estados Unidos, exceto nos casos de impeachment”.

[6] HAMILTON, MADISON e JAY. O federalista. Belo Horizonte: Ed líder, 2003. p. 441.

[7] HAMILTON, MADISON e JAY. O federalista. Belo Horizonte: Ed líder, 2003.p. 442.

[8] EASTERBROOK, Frank H. Presidential review, Case Western Reserve Law Review, n. 40, p.  905- 929, 1989.

[9] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português: parte geral. Tomo II. Coimbra: Editora Coimbra, 2005. p. 685-686.

[10] ENGELMANN, Wilson, LEAL, Daniele Weber. Comentários ao artigo 84, inciso XII. In: CANOTILHO, J. J. Gomes, MENDES, Gilmar Ferreira, SARLET, Ingo Wolfgang, STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 1343.

[11] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1: parte geral. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 642.

[12] Esse entendimento ficou consignado na ementa: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL. INDULTO. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA (CF, ART. 84, XII) PARA DEFINIR SUA CONCESSÃO A PARTIR DE REQUISITOS E CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. PODER JUDICIÁRIO APTO PARA ANALISAR A CONSTITUCIONALIDADE DA CONCESSÃO, SEM ADENTRAR NO MÉRITO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. [...] 4. Possibilidade de o Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal (STF, ADI 5478/DF, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 09/05/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421, acesso em 22 de abril de 2022).

[13] Voto do Ministro Luis Roberto Barroso: STF, ADI 5478/DF, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 09/05/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421, acesso em 22 de abril de 2022.

[14] Voto do Ministro Alexandre de Moraes: STF, ADI 5478/DF, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 09/05/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421, acesso em 22 de abril de 2022.

[15] Voto do Ministro Alexandre de Moraes: STF, ADI 5478/DF, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 09/05/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421, acesso em 22 de abril de 2022.

[16] Nesse sentido, ver: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. Vol. 1. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 767. É bom esclarecer que, no processo penal, a decisão condenatória definitiva é aquela em que há o trânsito em julgado para a acusação e, portanto, ainda quando não tenha a sua imutabilidade, a pena já se tornou concreta. Essa é, aliás, o termo inicial para a prescrição da pretensão penal executória (art.  112, inc. I do CP)

[17] ENGELMANN, Wilson, LEAL, Daniele Weber. Comentários ao artigo 84, inciso XII. In: CANOTILHO, J. J. Gomes, MENDES, Gilmar Ferreira, SARLET, Ingo Wolfgang, STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.p. 1343.

[18] BRASIL. Decreto de 21 de abril de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-de-21-de-abril-de-2022-394545395, acesso em 22 de abril de 2022

[19] Voto da Ministra Carmen Lúcia. STF, ADI 5478/DF, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 09/05/2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754291421, acesso em 22 de abril de 2022

 

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