O carnaval do protesto e resistência    

11/03/2019

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

 

 

O protagonista do carnaval de 2019 foi o protesto em face do governo atual de ruptura democrática e da violação de direitos humanos.

No carnaval de rua nas cidades mais tradicionais se ouvia constantemente um coro de protesto contra o atual (des)governo. As fantasias de laranjas em alusão às denuncias de corrupção que envolvem os filhos do presidente foram muito comuns, além de sátiras aos pronunciamentos misóginos, homofóbicos e racistas promovidos pelos atuais agentes de Estado. Em Olinda, no tradicional desfile com os bonecos gigantes retratando os presidentes da República cogitou-se não realizar desfile do boneco de Bolsonaro, tendo ocorrido de última hora e sob protestos dos foliões.

Enquanto se constatava a repulsa ao atual presidente, os gritos de Lula livre e Lula preso político eram intensos e frequentes.

Artistas e foliões resistem e denunciam a grave situação política que o país vivencia e as violações de direitos e retrocessos sociais.

As escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo estavam sintonizadas com o carnaval de rua. A escola vencedora do grupo especial do RJ, a Mangueira, tinha como tema o enredo "História pra ninar gente grande", cuja temática contava a história do Brasil a partir das lutas dos heróis e heroínas invizibilizados pela história “oficial” repensando narrativas oficiais que foram ensinadas ao longo de gerações. Dentre as personalidades lembradas estava Marielle Franco, veredora pelo Psol do Rio de Janeiro, e seu motorista Anderson Gomes assassinados em 14.03.2018.

O assassinato de uma parlamentar no exercício de sua função pública representa uma grave violação de direitos humanos denunciada e noticiada pelos jornais do mundo inteiro. Marielle era parlamentar pelo Psol do Rio de Janeiro, mulher, negra, periférica, lésbica e defensora de direitos humanos, todas as qualidades que incomodam o atual (des)governo e a colonialidade do poder[1] que estrutura o Estado Brasileiro. Essa semana completa um ano do assassinato de Marielle e Anderson e até hoje as investigações não apontaram quem matou, quem mandou matar e porque eles foram assassinados. As autoridades policiais e os governos, tanto estadual como federal, seguem sem dar uma resposta para uma grave violação de direitos humanos.

Em razão e ameaças de morte, o deputado Federal pelo Rio de janeiro deputado federal Jean Wyllys (PSol) renunciou ao seu mandato no Congresso Nacional em janeiro de 2019. Encontra-se atualmente vivendo fora do país em local desconhecido porque teme pela sua vida. O parlamentar publicou nas redes sociais uma mensagem, agradecendo aos seguidores, e dizendo que manter-se vivo "também é uma forma de resistência". Ele vivia sob escolta da polícia desde o assassinato da vereadora Marielle Franco. Além de ameaças feitas por grupos de milicianos, Jean também era atacado por grupos conservadores e lgbtfóbicos, que o agrediam pelas redes sociais cotidianamente e era um dos maiores alvos de notícias falsas espalhadas pela internet. Jean era a principal referência da luta pelos direitos LGBTI no Congresso e teve sua atuação parlamentar premiada pela defesa de direitos humanos. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Jean disse que a eleição do presidente Jair Bolsonaro foi a causa principal da renúncia.

Essa semana, mais uma pessoa deixa o país por medo. A filósofa e candidata nas últimas eleições ao cargo de governadora pelo Rio de janeiro, Marcia Tiburi, deixou o Brasil em razão de ameaças de morte. Desde as últimas eleições tem andado com seguranças em eventos e uma estrutura para contra-atacar mentiras na internet, além de ter a vida pessoal exposta, ela afirmou que se viu forçada a mudar-se do Brasil. Da mesma forma que Jean, ela prefere não revelar onde está vivendo por razões de segurança.

Perde o país sujeitos políticos atuantes, perde a sociedade mais espaço democrático, perdem essas pessoas o convívio diário e o afeto com seus amigos e familiares. Jean e Marcia vivem ambos uma situação de exílio, pois foram obrigados a abandonar o país pelo medo de perderem a vida, assim como aconteceu com Marielle, Anderson e tantas pessoas que ousaram denunciar as violências institucionais do Estado sobre os mais pobres e o crime que retroalimenta o sistema político estatal. Mulheres, homossexuais, negros, indígenas, pobres que se lançam na luta por mais direitos para as camadas mais vulneráveis da população assumem esses riscos.

Por tal razão esse carnaval foi tão importante. Porque trouxe para o centro do debate público a crítica à história, às narrativas oficiais de democracia e respeito às diferenças e aos direitos humanos. Porque denunciou o extermínio de sujeitos políticos que deram suas vidas solidariamente na busca de mais direitos para todas e todos. A crítica foi o tema principal em um país que persegue e mata os sujeitos que individualmente criticam. No carnaval, uma coletividade assumiu o papel de críticos, de modo que só restou ao governo a tentativa de deslegitimar a festa, sem poder fazer o ataque a sujeitos individualizados.

Não por acaso, esse carnaval foi atacado pelo atual (des)governo. Na terça feira de carnaval, dia 05.03.2019., o presidente Jair Bolsonaro compartilhou um vídeo obsceno em sua conta oficial no Twitter que dava a entender ter sido produzido durante o carnaval. Alega que não se “sente confortável” em mostrar o conteúdo, mas diz que “é isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro”. “Comentem e tirem suas convlusões (sic)”, finaliza Bolsonaro. A publicação demonstra que o atual presidente está disposto a ridicularizar ou destruir qualquer sujeito ou organização social e politica que promova críticas a ele e seu (des)governo.

Esses fatos revelam que a nossa tentativa de implantação de um regime democrático em 1988 falhou. O Brasil vivencia um processo de degradação da proposta de democracia e chegamos ao ponto de não podermos ser considerados democráticos. Essa morte da democracia ou da expectativa de tornarmos democráticos ocorre dentro de uma aparência de institucionalidade.

Os professores da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no livro Como as democracias morrem[2], mostram que as democracias não morrem mais com data certa, que não são necessários os golpes clássicos, com força militar e com atos jurídicos marcando a passagem de uma ordem democrática a uma ordem autoritária. Agora, as democracias morrem pelas mãos de líderes eleitos, que demonizam adversários e expressam desprezo pelas instituições. Aos poucos, a democracia morre, mas as pessoas não percebem. As eleições periódicas continuam a existir e os poderes públicos continuam a atuar. Há uma degradação das instituições públicas cooptadas ou constrangidas, mas o esqueleto da institucionalidade continua lá, dando a impressão de que se trata de uma democracia.

Para os autores, duas regras seriam decisivas para o funcionamento de uma democracia: a tolerância mútua e a reserva institucional. Por tolerância mútua, definem o reconhecimento de que os rivais do jogo político têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. Prefiro a expressão respeito mútuo, já que na democracia os adversários devem respeitar-se e se reconhecerem como iguais e não apenas tolerar-se. Por reserva institucional, entendem o dever de evitar as ações que, embora aparentemente respeitem a letra da lei, violam seu sentido, ou seja, seus atos têm aparência de legalidade e de defesa do interesse púbico como argumento retórico, mas desrespeitam as regras formais de uma democracia. Assim, apesar das eleições, ao perseguir adversários políticos, promover prisões políticas, ameaçar a vida dos sujeitos críticos e matar os adversários ou não assumir o papel de defender direitos humanos o Estado não pode se dizer democrático.

Por tal razão, talvez o carnaval tenha sido a manifestação popular que nos possibilitou nos últimos dias um respiro de exercício da democracia, pois foi esse o espaço de críticas e de denúncia de violação de direitos, foi o espaço que mais uma vez lembrou Marielle e tantos outros sujeitos que morreram lutando por mais direitos e mais respeito do Estado pela sua condição de existência e resistência em um Estado que é responsável pela morte de indivíduos subalternizados. O descarte e a perseguição de todas as pessoas que não integram no perfil colonial de proteção pública (homens brancos, proprietários, cis e cristãos) se institucionaliza e se aprofunda a cada dia e com mais força no Estado Brasileiro. Que o carnaval continue resgatando a história crítica e a defesa de direitos humanos na ausência da democracia institucional num clima insurgência, força, alegria e resistência.

 

 

Notas e Referências

[1] Utilizamos o conceito de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, cujo sentido é de manutenção de uma matriz de dominação colonial cuja aplicação tem seu início com a invasão do continente americano e o consequente extermínio da população indígena, e a escravização da população africana com a submissão das populações não brancas aos interesses políticos e econômicos de uma elite branca europeia. As sociedades marcadas pelo colonialismo ainda mantêm uma estrutura de colonialidade de poder na medida em que monopolizam o poder econômico e político nas mãos de uma elite branca negando a condição de existência a todos os sujeitos que não pertencem a tal grupo, estruturando a sociedade em hierarquias que coloca os homens brancos, proprietários, ricos e cristãos em uma condição de privilegio em face dos demais atores sociais. Esses Estados que vivenciaram o colonialismo permanecem marcadas pelo DNA colonial.

[2] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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