O CARÁTER PENAL DA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

18/02/2021

1. A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A Ação de improbidade está disciplinada na Lei nº 8.429/1992, tendo como objetivo penalizar o agente público e os terceiros em colaboração. A improbidade administrativa pode ser definida como um ato do agente público, ou do particular em colaboração, que resulte em lesão aos interesses da Administração.

Para o doutrinador Cássio Scarpinella Bueno a improbidade administrativa pode ser definida como espécie do gênero imoralidade administrativa, qualificada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este se enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevida, para si ou para outrem, ou causa dano ao erário. Desonestidade implica conduta dolosa, não se coadunando, portanto, com o conceito de improbidade a conduta meramente culposa.[1]

Nas palavras do jurista José Jairo Gomes, a improbidade consiste na “ação desvestida de honestidade, de boa-fé e lealdade para com o ente estatal, compreendendo os atos que, praticados por agente público, ferem a moralidade administrativa”.[2]

Dessa forma, pode-se dizer que o ato de improbidade nada mais é do que a violação aos princípios constitucionais da Administração Pública atrelado à má-fé e deslealdade do agente público, não bastando a simples violação dos princípios da Administração para configuração do ato improbo, tendo em vista que é necessário o elemento volitivo, representado pela vontade livre e consciente do agente de realizar conduta típica, por ação ou omissão, contrária aos interesses da Administração.

O Superior Tribunal de Justiça divulgou 14 teses sobre improbidade administrativa, na 38ª edição de jurisprudência em tese, aduzindo que é inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei de Improbidade. Eis a ementa:

1) É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei n. 8.429/1992, exigindo- se a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.

Acórdãos: AgRg no REsp 1500812/SE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 21/05/2015,DJE 28/05/2015. AgRg no REsp 968447/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Julgado em 16/04/2015, DJE 18/05/2015; REsp 1238301/MG, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, Julgado em 19/03/2015,DJE 04/05/2015; AgRg no AREsp 597359/MG ,Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, Julgado em 16/04/2015,DJE 22/04/2015; REsp 1478274/MT, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Julgado em 03/03/2015,DJE 31/03/2015; AgRg no REsp 1397590/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, Julgado em 24/02/2015,DJE 05/03/2015; AgRg no AREsp 560613/ES, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, Julgado em 20/11/2014,DJE 09/12/2014; REsp 1237583/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, Julgado em 08/04/2014, DJE 02/09/2014.

Para a responsabilização objetiva do indivíduo independe da aferição de culpa ou de gradação de envolvimento do agente causador do dano, isto é, admite-se que o agente responda pelo resultado ainda que tenha agido com ausência de dolo ou culpa, contrariando, assim, a doutrina fundada na responsabilidade pessoal e na culpabilidade, o que é vedado no direito brasileiro.

Destarte, para a configuração do ato de improbidade administrativa é necessária a comprovação da conduta desonesta, de má-fé, em busca de proveito pessoal ou de outrem, podendo também ser configurada através de conduta culposa grave, visto que o agente público não pode responder objetivamente pelos seus atos.

Na ausência dos pressupostos retromencionados não há que se falar em ato de improbidade, tendo em vista que não foi intenção do legislador penalizar todo e qualquer ato irregular, mas sim aqueles atos praticados de forma desonesta, de má-fé ou os atos praticados com erros grosseiros que lesionam o Poder Público.

Em que pesem alguns posicionamentos em sentido contrário, a Lei nº 8.429/1992 não busca a penalizar as meras irregularidades praticadas sem a ausência de dolo ou de erro grosseiro, visto que, para a configuração do ato de improbidade administrativa, é necessária a perquirição do elemento volitivo do agente público e de terceiros, não sendo suficiente, para tanto, mera irregularidade para caracterizar ato de improbidade administrativa, tendo em vista “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, conforme decidiu o STJ no julgamento da AIA 30/AM, tendo como Relator o então Ministro Teori Albino Zavascki.

Conforme abordado neste artigo, as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa não podem ser consideradas puramente cíveis, pois tratam-se de ações híbridas em razão dos contornos cíveis e penais, tendo em vista que a ação de improbidade administrativa pode resultar na suspensão dos direitos políticos, na proibição de contratação com o Poder Público, na perda da função pública, dentre outras penalidades, ou seja, a condenação por ato de improbidade administrativa pode extrapolar a esfera civil, consistindo em uma ação híbrida com aspecto cível e penal.

Diariamente deparamos com ações de improbidade administrativa que são recebidas pelo Poder Judiciário sem nenhum lastro probatório acerca do ato improbo, o que é grave, pois para o recebimento de uma ação de improbidade é indispensável a existência de “indícios suficientes” acerca do ato antijurídico, conforme estabelece o § 6º do artigo 17 da Lei nº 8.429/92.

Dessa maneira, a peça de ingresso deve conter a descrição pormenorizada, ou no mínimo razoável, dos fatos e a indicação jurídica precisa e fundamentada dos dispositivos supostamente violados pelo agente público, em homenagem ao princípio constitucional do devido processo legal.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial, 1040440/RN, manifestou que “nas ações de improbidade, a petição inicial deve ser precisa acerca da narração dos fatos, para bem delimitar o perímetro da demanda e propiciar o pleno exercício do contraditório e do direito de defesa”, não sendo admitida a propositura de ações genéricas, visto que é indispensável a individualização da conduta do agente, devendo a ação ser lastreada com provas que indicam a probabilidade da existência do ato de improbidade, ou seja, deve o autor da ação demonstrar a “justa causa” para o ajuizamento da ação de improbidade administrativa.

Para o jurista Gustavo Henrique Badaró a justa causa é uma condição da ação, exigindo-se suporte probatório mínimo que se relaciona com os indícios de autoria, materialidade de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. Na inexistência desses elementos não é possível o recebimento da ação penal ou de improbidade administrativa.[3]

Já o processualista Afrânio Silva Jardim, citado por Rogério Greco em seu Curso de Direito Penal, adverte que a justa causa é o “suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova da antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal”.[4]

A par destas considerações, conclui-se que o mero exercício de um cargo público não autoriza, por si só, o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, bem como a responsabilidade pessoal do agente, visto que é necessária a existência de elementos que demonstrem a probabilidade da prática do ato antijurídico, lembrado que a mera irregularidade de um ato administrativo não autoriza a responsabilização pessoal do agente público, tendo em vista que é necessária a comprovação da má-fé ou erro grosseiro para a configuração do ato de improbidade administrativa.

Neste sentido são os ensinamentos do saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles:

Ao prefeito, como aos demais agentes políticos, impõe-se o dever de tomar decisões governamentais de alta complexidade e importância, de interpretar as leis e de converter os seus mandamentos em atos administrativos das mais variadas espécies. Nessa missão político-administrativa é admissível que o governante erre, que se equivoque na interpretação da lei, que se confunda na apreciação da conveniência e oportunidade das medidas executivas sujeitas à sua decisão e determinação. Desde que o chefe do Executivo erre em boa-fé, sem abuso de poder, sem intuito de perseguição ou favoritismo, não fica sujeito à responsabilização civil, ainda que seus atos lesem a Administração ou causem danos patrimoniais a terceiros. (....) O só fato de o ato ser lesivo não acarreta ao Prefeito a obrigação de indenizar. Necessário se torna, ainda, que além de lesivo e contrário ao direito, resulte de conduta abusiva do prefeito no desempenho de cargo ou a pretexto de seu exercício.[5] (Grifos).

Dessa forma, a ação de improbidade somente deve ser recebida se houver a individualização minuciosamente da conduta ímproba do agente público ou do terceiro em colaboração, lastreada com provas que demonstrem os indícios acerca da prática do ato ilícito. Do contrário, a ação de improbidade deve ser indeferida de plano, visto que deixou de cumprir os pressupostos contidos no § 6º do artigo 17 da Lei nº 8.429/92.

O Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto na Pet 3240/DF, criticou o que chamou de “abuso” do Ministério Público no uso das ações de improbidade, por entender que muitas vezes são ajuizadas de forma genérica, com enquadramento aleatório, sem base em fatos concretos ou condutas supostamente irregulares. Para o Ministro “o sistema brasileiro não tem contracautelas ou regime de responsabilidades contra o agente que propõe ações irresponsáveis”, ocorrendo verdadeiro “festival de abuso de autoridade” nas ações de improbidade.

Aquele que ajuizar ações de improbidade sem lastro probatório mínimo deveria ser severamente penalizado, para evitar a banalização da utilização de ações de improbidade, que muitas vezes são ajuizadas para satisfazer interesses pessoais, “não sendo incomum a falsa atribuição de atos de improbidade entre adversários políticos”[6] em busca de proveito pessoal, desviando, por completo, do objetivo traçado pelo legislador que é a tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa.

O ajuizamento de ação de improbidade administrativa deve ser medida de ultima ratio, devendo ser ajuizada tão somente quando existirem elementos mínimos acerca da prática do ato ímprobo, evitando assim a movimentação da máquina judiciária de forma inútil e desnecessária.

Dessa maneira, o julgador deve ter cautela ao receber a ação de improbidade administrativa, devendo recebê-la apenas quando existir elemento probatório mínimo acerca da conduta antijurídica do agente público. Uma vez recebendo a ação, somente é possível a decisão condenatória quando existir prova robusta acerca do ato de improbidade, tendo em vista que, em caso de dúvida, o magistrado deve julgar improcedente os pedidos formulados.

 

1.1 A garantia do devido processo legal substancial na ação de improbidade administrativa

Em respeito ao devido processo legal inserido com o advento da Constituição da República de 1988, tornou-se necessário assegurar ao destinatário de decisão judicial ou administrativa o devido processo legal em seu aspecto substancial, onde seus argumentos são levados em consideração para a construção do provimento final.

Leciona Fredie Didier Jr., para quem, a par da face formal do direito ao contraditório, consistente na garantia de ser ouvido, de participar do processo, de ser comunicado, poder falar no processo, também vige a face substancial, relacionada à amplitude de defesa:

Há o elemento substancial dessa garantia. Há um aspecto, que eu reputo essencial, denominado, de acordo com a doutrina alemã, de “poder de influência”. Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado.

Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do Magistrado – e isso é poder de influência, poder de interferir na decisão do Magistrado, interferir com argumentos, interferir com idéias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se implementa, pura e simplesmente, com a ouvida, com a participação; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão[7].

Quanto à necessidade de garantia do contraditório e da ampla defesa, corrobora o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes:

Há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica. (...) a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art.5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:

direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária os atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas.

Sobre o direto de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador, que corresponde, obviamente, ao dever do juiz de a eles conferir atenção, pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento, como também de o considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas.[8] (Grifos).

Na atual conjuntura do devido processo constitucional, o princípio do contraditório passou a ter dupla dimensão: a primeira, formal, exige a possibilidade de participação no processo; a segunda, requer a real possibilidade de o interessado influenciar com seus argumentos na construção da futura decisão, seja no âmbito judicial ou administrativo.

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1356142/SP, determinou o retorno dos autos para o devido processamento da demanda, ao argumento de que “é medida indispensável o cumprimento do devido processo legal, mais especificamente ao exercício da dimensão substancial do contraditório, cuja inobservância, na espécie, impõe a cassação da sentença”.[9]

Outrossim, o não enfretamento de todos os argumentos deduzidos pelas partes atenta contra as disposições contidas no artigo 93, IX, da Constituição da República de 1988 e artigo 489, §1º, do CPC de 2015.

Dessa forma, em respeito à garantia do devido processo legal substancial, o julgador deve enfrentar todos os argumentos deduzidos pelas partes, notadamente as razões apresentadas pelo requerido, devendo levá-los em consideração para a construção do provimento final, ainda mais em uma ação de improbidade administrativa, que pode resultar em duras penas ao cidadão, como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, bem como a proibição de contratar com a Administração Pública, dentre outras penalidades, merecendo redobrada atenção do julgador.

A par destas considerações, conclui-se que a garantia do devido processo legal, em seu aspecto substancial, não é discricionariedade do julgador, mas sim obrigação, em razão da força normativa decorrente do inciso LV do artigo 5º da Constituição de 1988, notadamente em uma ação de improbidade administrativa que pode resultar em duras penas ao indivíduo.

 

2. O CARÁTER PENAL DA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

As sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa, embora não possam ser consideradas precisamente como de tipo penal, constituem mais do que simples punição civil, é uma sanção política, o que justifica a especial cautela para o recebimento da ação de improbidade, bem como a cautela para proferir uma sentença condenatória por ato de improbidade administrativa.

Para o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, as penalidades previstas para os atos de improbidade administrativa configuram verdadeiros tipos penais. Eis os ensinamentos do autor:

[...] inaceitável é (...) a concepção que tenta vislumbrar as ações de improbidade como um simples mecanismo de responsabilização civil. De fato, não é correto tomar as sanções por improbidade como sanções de índole meramente civil. Ao contrário, as sanções de suspensão de direitos políticos e de perda da função pública demonstram, de modo inequívoco, que as ações de improbidade possuem, sobretudo, natureza penal. Não é difícil perceber a gravidade de tais sanções e a sua implicação na esfera de liberdade daqueles agentes políticos. No âmbito da ação de improbidade, em verdade, verifica-se que os efeitos da condenação podem superar aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, podendo conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal. (Grifos).

Do mesmo modo, já decidiu o STJ ao julgar o AgRg no AREsp 27.704/RO, tendo como Relator o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, aduzindo que a ação de improbidade, “por integrar iniciativa de natureza sancionatória, tem o seu procedimento referenciado pelo rol de exigências que são próprias do Processo Penal contemporâneo, aplicável em todas as ações de Direito Sancionador. Assim a ação deve ser rejeitada quando ausente o mínimo indício da prática do ato improbo”.[10]

No mesmo sentido decidiu o STJ no julgamento do Recurso Especial 196932/SP, ao aduzir que “A Lei nº 8.429/92, que tem caráter geral, não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o ato tido como criminoso”.

Vale transcrever o voto proferido pelo Ministro César Asfor Rocha, seguido pelos Ministros Barros Monteiro, Francisco Peçanha Martins, Vicente Leal, José Delgado, Fernando Gonçalves e Humberto Gomes de Barros, no julgamento do HC 22432, eis os argumentos:

A Lei nº 8.429/92 prescreve, no seu art. 12, um largo elenco de sanções de sumíssima gravidade, sendo de destacar a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por um lapso de 8 a 10 anos (art. 12, I); a primeira sanção (perda de função pública) é a mais exacerbada do Direito Administrativo Disciplinar e a outra (suspensão dos direitos políticos) é a mais rude exclusão da cidadania.

A meu ver, a Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função.

De menor relevo, ao que posso ver, que a Lei nº 8.429/92 denomine de civis as sanções de que cogita, pois a natureza das sanções consistentes na perda da função pública e na suspensão dos direitos políticos, por mais que se diga ao contrário, extrapolam abertamente os domínios do Direito Civil e se situam, também sem dúvida, nos domínios do Direito Penal (sancionatório). 

A ação de improbidade não é uma ação puramente cível, até porque seu rito processual difere das ações cíveis em geral, vez que na ação de improbidade o requerido é notificado para oferecer manifestação, por escrito, no prazo de quinze dias[11], sendo que, em caso de recebimento da ação, o réu será citado para contestá-la, o que comprova que o legislador foi cauteloso com a ação de improbidade, equiparando-a à ação penal em razão de sua natureza sancionatória.[12]

Não há dúvida de que as ações de improbidade administrativa possuem, sobretudo, natureza penal, tendo em vista a existência de sanções como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, bem como a proibição de contratar com a Administração Pública, ou seja, as penalidades da ação de improbidade administrativa extrapolam a esfera cível, até porque não possuem apenas função ressarcitória. 

Dessa forma, o magistrado somente está autorizado a proferir uma sentença condenatória por ato de improbidade administrativa se existir um conjunto probatório robusto acerca da prática do ato improbo, visto que, em caso de dúvida, devem os pedidos formulados serem julgados improcedentes, ou seja, o requerido deve ser beneficiado pelo princípio do “in dubio pro reo”, devendo prevalecer a presunção de inocência do agente público nos casos de fragilidade do conjunto probatório.

Sendo assim, a presunção de inocência do agente público somente pode ser elidida quando houver provas robustas acerca da prática ato de improbidade administrativa, pois não são permitidas condenações baseadas em alegações sem lastro probatório.

Dessa maneira, o autor da ação de improbidade deve comprovar que o agente público efetivamente agiu dolosamente, com o fim de obter vantagem para si ou para outrem, ou com erro grosseiro, até porque recai sobre o autor o ônus probatório acerca dos fatos articulados, conforme ensina o processualista Humberto Teodoro Júnior:

Não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados e do qual depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisprudencial. Isto porque, segundo a máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente.[13]

No mesmo sentido são os ensinamentos do processualista italiano Francesco Carnelutti sobre o ônus probatório, eis os ensinamentos:

Não tenho necessidade de acrescentar, como é natural, que não faço aqui uma questão de palavras e que, portanto, não atribuo importância alguma a como sejam chamadas os dois conceitos, senão ao fato de que sejam designados com nomes distintos ou, pelo menos, a que se acentue de algum modo a diferença entre eles. Enquanto isso, e até que se proponha uma terminologia melhor, chamo por minha conta e meio de prova a atividade do juiz mediante a qual busca a verdade do fato a provar, e fonte de prova ao fato do qual se serve para deduzir a própria verdade.[14]

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento da Apelação Cível nº 1.0529.03.001988-7/001, decidiu no sentido de que “a responsabilização dos agentes públicos por atos de improbidade deve se basear em provas concretas quanto aos atos que lhe são imputados, face às graves consequências que afetam a vida do eventual infrator”.

Feitas essas considerações, conclui-se que o Poder Judiciário deve fazer uma análise detida do conjunto probatório, evitando a condenação do agente público ou do particular em colaboração sem que tenha restado comprovada a efetiva praticada do ato de improbidade administrativa, pois não é razoável o indivíduo sofrer duras sanções, de caráter penal, com base em cogitações e suposições acerca da prática do ato ilícito, que apesar de alegado pelo autor da ação, não restou comprovado.

Em um Estado Democrático de direito não pode ser admitida a condenação do agente público apenas com base em meras alegações do autor da ação, desacompanhada de elementos probatórios, até porque o artigo 373 do CPC de 2015 dispõe que incumbe ao autor de qualquer ação comprovar os fatos constitutivos de seu direito, não existindo discricionariedade para o julgador afastar a exigência processual, por se tratar de uma norma cogente.

Em decorrência das duras penas previstas na Lei de Improbidade Administrativa não pode o Ministério Público propor ações ao seu alvedrio e nem o julgador proferir decisão condenatória sem elemento probatório robusto acerca da prática do ato antijurídico, visto que a condenação por ato de improbidade deve ser reservada para os atos praticados dolosamente ou com erro grosseiro e desde que existam provas concretas acerca do ato antijurídico.

Em razão do caráter penal da ação de improbidade administrativa seria conveniente a alteração legislativa para transferir para o Juízo penal o processamento e julgamento da lide, haja vista que o juízo penal tem mais condições e conhecimento para a condução da ação de improbidade.

Outrossim, na grande parte dos ilícitos por ato de improbidade administrativa há desdobramento de ações penais, conforme ocorre nos casos contidos no artigo 89 e 90 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, crimes do Decreto-Lei 201, de 27 de fevereiro de 1967, além de outros tipos descritos no Código Penal, em que o agente público responde por ato de improbidade e no âmbito criminal.

Assim, seria mais prudente que ambas as ações (improbidade e penal pelo mesmo fato) tramitem no mesmo juízo, pois seria vantajoso para o jurisdicionado, além de evitar decisões conflitantes, pois muitas vezes o indivíduo é condenado na ação penal e absolvido na ação de improbidade administrativa ou vice-versa, o que é um contrassenso.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos relatados, conclui-se que a ação de improbidade não possui caráter exclusivamente cível, conforme sustentam alguns, tendo vista que a condenação por ato de improbidade pode resultar na perda da função pública, na suspensão dos direitos políticos e na proibição de contratar com o Poder Público, ou seja, eventual condenação pode extrapolar a esfera cível, até porque a ação de improbidade administrativa não almeja apenas o ressarcimento de valores desviados.

Sendo assim, pode-se dizer que a ação de improbidade administrativa se assemelha mais a uma ação de penal, tendo em vista a necessidade de individualização da conduta do denunciado, os indícios suficientes de autoria e materialidade para fins de justificação da justa causa, que se consubstancia no suporte probatório mínimo.

Em razão destas peculiaridades, o julgador deve ter cautela na condução da ação de improbidade administrativa, visto que qualquer comportamento que violar o direito do demandado é suficiente para ocasionar a nulidade do provimento Estatal. Dessa forma, deve ser oportunizado ao requerido a produção de provas necessárias para o deslinde da lide, devendo seus argumentos serem levados em consideração para a construção do provimento final, em homenagem ao princípio do devido processo legal em seu aspecto substancial.

 

Notas e Referências

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AVILA, Humberto, Teoria dos Princípios - Do princípio à aplicação dos princípios jurídicos, 18. ed., 2018.

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CARNELUTTI, Francesco. A prova Civil. Lisa Pary Scarpa (trad.) 2. Ed. Campinas: Bookseller, 2002.

DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 01. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2008.

FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa: doutrina legislação e jurisprudência. 4. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral, 12 ed. São Paulo, Atlas, 2016.

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O Limite da Improbidade Administrativa, Editora América Jurídica, 3. ed., 2005.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed., 2001.

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

SCARPINELLA BUENO, Cassio. Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro, in Improbidade Administrativa - Questões Polêmicas e Atuais, Coordenadores: Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, 2001.

SILVA, Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado, n. 4, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 26 ed., Editora Forense, 1999.

[1] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro, in Improbidade Administrativa - Questões Polêmicas e Atuais, Coordenadores: Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, 2001, p.86.

[2] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral, 12 ed. São Paulo, Atlas, 2016, p. 23/24

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas do Tribunais, 2016, p. 175.

[4] JARDIM, Afrânio Silva, Curso de Direito Penal – 2. ed. RJ: ed. Impetus, 2002.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed., 2001. p. 761-762.

[6] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade Administrativa; doutrina legislação e jurisprudência. 4. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 392.

[7] DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 01. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 47/48.

[8] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 464/465.

[9] STJ - REsp 1356142/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/09/2017, DJe 17/10/2017.

[10] STJ - AgRg no AREsp 27.704/RO, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 15/12/2011, DJe 08/02/2012.

[11] Artigo 17, § 7º, da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992.

[12] REsp 1230550/PR, Rel. Ministro OG Fernandes, Segunda Turma, julgado em 20/02/2018, DJe 26/02/2018.

[13] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 26° ed., Editora Forense, ano 1999, vol.1, p. 423.

[14] CARNELUTTI, Francesco. A prova Civil. Lisa Pary Scarpa (trad.) 2. Ed. Campinas: Bookseller, 2002, p.99.

 

 

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