O BOM, O MAU E O INDISPENSÁVEL À ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

11/08/2020

Coluna Justa Medida

Os meios de comunicação de massa foram responsáveis por grandes mudanças em nossa sociedade. Com o nascimento da imprensa, foi possível disseminar ideias e conhecimento com custos muito mais baixos; o rádio e a televisão garantiram a chegada de informações rapidamente, atingindo quase toda população, uma vez que inclui até mesmo as pessoas mais pobres e socialmente excluídas ao utilizar o som e a imagem na comunicação. Já a internet e as redes sociais fizeram com que as notícias chegassem de forma quase instantânea a todas as partes do globo, além de proporcionar comunicação em tempo real entre mesmo entre pessoas que estão geograficamente distantes.

Os efeitos dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação podem ser vistos em todos os setores sociais, sendo que na política e no sistema de justiça não é diferente. É inegável que os meios de comunicação proporcionaram a inclusão de inúmeras pessoas e são essenciais para as Democracias modernas. Sem as informações trazidas pelos meios de comunicação seria impossível uma participação tão ampla na vida política da nossa sociedade. As políticas partidária, institucional e social valem-se dos meios de comunicação para disseminação das ideias. Se a comunicação política anteriormente era feita por meio de panfletos, manifestos, passando para comunicação por meio do rádio e da televisão no século XX, hoje a comunicação é predominantemente digital. A internet e as redes socieis atualmente são essenciais para troca de ideias e disseminação de informações das redes políticas.

Os meios de comunicação também são fundamentais para garantir a transparência ´da administração pública, cobrança dos políticos e agentes públicos. Hoje, com alguns cliques, podemos verificar os salários de funcionários públicos, a destinação de verbas públicas, o custo de obras e serviços etc.

Para além do controle, os meios de comunicação também proporcionaram a possibilidade de cobrança dos agentes políticos, num primeiro momento de forma indireta, por meio dos meios de comunicação tradicional, e atualmente por meio direto, por meio de e-mails e redes sociais.

Em suma, a Democracia moderna não pode ser pensada sem os meios de comunicação de massa, sem elas é possível que os debates públicos e institucionais ainda estivessem relegados a uma pequena parcela da população, longe do cidadão comum.

Se é inegável que houve avanços, também é possível verificar os efeitos colaterais trazidos pelos meios de comunicação. Com a difusão dos meios de comunicação a sociedade do espetáculo também nasceu e a cada avanço tecnológico dos meios de comunicação seus efeitos se aprofundam e da mesma forma que esses meios foram utilizados para aumentar a participação popular na política podem ser utilizados para distorcer a democracia.

O Espetáculo como distorção democrática

A sociedade do espetáculo tem como fundamento a equiparação da cultura e da informação a entretenimento. As notícias deixam de ter importância em razão da sua relevância político-social para ter relevância de acordo com a audiência que pode angariar e na capacidade de divertir e entreter[1]. O espetacular e o dramático ganham espaço, sendo que o interesse público passa a ser “o dever de encenar tais dramas em público e o direito do público de assistir a encenação”[2]. Já a cultura e a arte deixam de ser algo que incomoda, questiona e faça com que as pessoas reflitam e passa a ser tudo aquilo que pode trazer prazer ou distração. A política e o mundo jurídico, como era de se esperar, não ficaram alheios a essa questão.

Política e sistema jurídico, em especial o sistema penal, andam de mãos dadas e alimentam de informações um ao outro. É notório como políticos se valem de leis penais para lidar com a violência e outros problemas sociais. Há políticos que têm como tema central de sua plataforma eleitoral questões ligadas à delinquência, seja ela a criminalidade violenta, o crime organizado ou crimes econômicos e corrupção. Aliás, pode-se dizer que são escassos os políticos que não tenham entre suas propostas ou linhas de atuação questões ligadas ao crime. Isso decorre do fato de que na sociedade do espetáculo um dos temas preferidos dos meios de comunicação é o crime e a violência. Notícias que tragam dor, dramas pessoais e desvios éticos vendem e são capazes de angariar grande audiência nos veículos de comunicação tradicional e engajamento nas redes sociais. Ou seja, na sociedade do espetáculo a delinquência é um tema provavelmente garantirá atenção e, consequentemente, trará lucros.

Já a política cada vez mais tem alimentado os meios de comunicação – tradicionais e novos – com escândalos (públicos e privados) casos de corrupção, desvios éticos, proximidade de políticos e organizações criminosas. Desde o Mensalão políticos têm ocupado grande parte dos espaços nas notícias relacionadas a crimes. A Lava-Jato e outras operações ganharam grande notoriedade e muitas das decisões dentro dos processos e das investigações foram tomadas devido à influência da opinião pública e da opinião publicada. Da mesma forma, as decisões tiveram forte influência nos acontecimentos políticos, podendo-se dizer que a ascensão do Presidente Jair Bolsonaro se deve à demonização da classe política e da cobertura política enviesada, que dava especial atenção aos supostos desvios cometidos pelos integrantes do PT e integrantes dos Governos Lula e Dilma.

É notório como Bolsonaro e seus aliados se filiam não apenas ao populismo, mas também a movimentos autoritários. São inúmeros os eventos que demonstram como o governo e seus integrantes estão próximos de movimentos da extrema direita autoritária, incluindo grupos fascistas e nazistas, além de ser notória a participação de Bolsonaro e de seus apoiadores em manifestações que pedem a volta da ditadura militar, fechamento do Congresso e do STF. É impossível entender a ascensão da extrema direita autoritária sem a participação da mídia e das redes sociais.

A forma como a violência e a corrupção são tratadas de forma novelesca foi essencial para a difusão de ideias autoritárias e para o crescimento de grupos extremistas que dão suporte ao governo atual. Com notícias de violência e corrupção sendo disseminadas a dia após dia pelos meios de comunicação e nas redes sociais. A população, bombardeada por uma infinidade de notícias sobre delinquência e corrupção, sente-se cada vez mais insegura e anseia por soluções rápidas que possam restaurar a ordem, ainda que a desordem seja apenas um sentimento fruto da superexposição midiática. Nesse sentido, discursos que prometam reduzir o crime e a corrupção ganham cada vez mais eco, mesmo que o custo disso sejam as liberdades individuais.

A mídia, aproveitando-se dos índices de audiência proporcionados pela corrução, elege como inimigo preferencial o político, que é tratado como responsável por todos os problemas sociais. Na qualidade de inimigo ele não deve possuir direitos, sendo que o juiz não deve julgá-lo, mas condená-lo. As frustrações individuais advindas de uma sociedade desigual e com privilégios para a o sistema financeiro e para as elites econômicas são canalizadas não para os verdadeiros problemas, mas para os políticos corruptos, afinal são eles que fazem as leis e as executam. O problema da educação, saúde, urbanismo, emprego e saneamento básico deixa de ter como motivo uma carga tributária que privilegia os ricos, de um sistema que protege apenas a grande empresa para ser um problema causado apenas e tão somente pelos políticos, esquecendo o lobby exercido pelas grandes organizações empresariais.

Se há uma convergência entre todo inimigo é que este não merece qualquer direito. Deve ser apenas condenado e aniquilado. Obviamente, numa sociedade em que discursos autoritários ganham força, o direito à defesa passa a ser atacado sistematicamente. Os veículos de comunicação logo verificam que a população se volta contra aqueles que desejam defender os políticos e traçam uma narrativa capaz de satisfazer seus consumidores, na qual o advogado e as garantias processuais são obstáculos indesejáveis para aplicação da justiça[3], que deixa de ser um julgamento baseado em regras e formas rígidas e passa a ser entendida como condenação a uma pena alta por meio de um processo rápido e sem empecilhos. São transmitidas discussões entre acusação e defesa, entre juízes e advogados. A defesa, petulantemente, exige do juiz – nesse momento alçado a posição de herói devido às prisões que ordenou – que as garantias do acusado sejam respeitadas, que os ritos sejam seguidos, que as perícias sejam realizadas. Para que? No processo penal do espetáculo não há espaço para inocência. Mais que isso, tudo aquilo que se opõe à condenação deve ser retirado, todos aqueles se colocam ao lado do acusado – nesse momento já condenado pela opinião publicada – são contaminados por ele e passam a ser tão inimigos quanto o réu. Alguns dos ataques, por mais paradoxal que pareça, são reforçados por setores totalitários do Ministério Público e a Magistratura[4], órgãos que tem por função zelar pela legalidade e pela Democracia.

O advogado, que em 1988 era essencial à administração da Justiça, passa ser apenas uma peça incômoda, não cabe mais nessa engrenagem processual. É alguém que se opõe a aplicação rápida de uma pena, a uma justiça fast-food. A Justiça deve operar na mesma velocidade que a mídia, do contrário entender-se-á que há impunidade. O Advogado não é um empecilho apenas aos olhos da opinião pública leiga, passa a ser visto assim pelos demais membros da justiça, como juízes e promotores. É o chicaneiro, como fomos chamados no julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão), é aquele que busca nulidades, que busca garantir a impunidade e, com isso, é tão responsável pelos crimes quanto o próprio cliente. Não é por outro motivo que abundam notícias de abusos de autoridades contra advogados, motivo pelo qual foi criada a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Os desrespeitos ao devido processo legal, ao direito de defesa e ao acusado eram apenas a ponta do iceberg que surgiu. A opção por fazer do processo penal e da política um espetáculo incutiu na população sentimentos cada vez mais autoritários, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Com isso foi possível que líderes populistas chegassem ao poder. Nesse cenário as instituições públicas e independentes são sistematicamente atacadas. Sob o argumento de que as minorias devem se curvar à vontade das maiorias, qualquer um que defenda uma Democracia real, na qual os direitos de todo cidadão sejam respeitados, é visto como um inimigo a ser eliminado. O objetivo disso é enfraquecer as instituições para concentrar o poder[5].

Apesar de os grandes veículos de comunicação terem contribuído para a ascensão de um governo populista[6], o Presidente e seus apoiadores não economizam críticas à imprensa, dizendo sempre que o governo é perseguido, insultando jornalistas ou atacando os veículos de comunicação até mesmo com informações falsas. O Judiciário, em especial o STF, também não é poupado, mesmo tendo sido leniente com as diversas ilegalidades cometidas nas operações que diziam combater a corrupção. Já o Congresso é alvo de críticas sempre que não se curva à vontade do governo, e seus integrantes são insultados mesmo quando tentam garantir a governabilidade.

Se até mesmo aqueles que compactuaram para a escalada populista são atacados, seus opositores históricos são alvos constantes. Não é por outro motivo que a OAB e a advocacia são atacadas direta e indiretamente. Nesse cenário a advocacia nunca se fez tão necessária desde a redemocratização.

Nossos algozes esquecem-se do fato que o autoritarismo é um monstro que não possui rédeas, que da mesma forma que devora os adversários, poderá devorar seu criador. Em um cenário cujos freios democráticos estejam enfraquecidos, haverá poucos em quem se apoiar, mas o advogado estará lá, fingindo que esqueceu os ataques sofridos outrora, pois para nós não importa o cliente, importa o direito de defesa. Estaremos firmes, de peito aberto para enfrentar o Estado autoritário, esteja ele travestido de policial ou magistrado, afinal, como Sobral Pinto dizia “a advocacia não é profissão de covardes”. Assim como essas pessoas de coragem lutaram contra as ditadura de 1964, continuaremos lutando para que os ventos democráticos afastem os gases putrefatos do autoritarismo que dessa vez, por paradoxal que seja, nos chegam trazidos por setores imprescindíveis à Democracia, pois se apoderaram de parte ruidosa do Ministério Público, Magistratura e da mídia.

 

Notas e Referências

[1] VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Trad. Ivone Benedetti. Rio de Janeiro. Objetiva. 2013. p. 49

[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Denzien. Rio de Janeiro. Zahar. 2001. p. 91

[3] CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 4ª ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2018. p. 111

[4] Esses ataques a um processo penal democrático podem ser vistos nas intituladas 10 medidas contra a corrupção, capitaneadas pelo Ministério Público Federal.

[5] MOUNK, Yacha. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Trad. Cassio de Arantes Leite, Débora Landsberg. São Paulo, Companhia das Letras. 2019. p. 54

[6] Antes da campanha presidencial ao expor escândalos de corrupção de processos penais de forma parcial e enganosa a fim de insuflar a opinião pública contra decisões que garantissem direitos e, já na campanha, ao equiparar, de forma dissimulada, os dois principais candidatos a presidentes, mostrando-os como os extremos da direita e da esquerda.

 

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