No dia 03 de junho de 2022, entrou em vigor a Lei nº 14.365/2022, que alterou as Leis nºs 8.906, de 4 de julho de 1994, 13.105, de 16 de março de 2015, e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, para” incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal.”.
No que importa ao presente artigo, foi inserido no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/1994) o artigo 24-A, que prevê a liberação de até 20% dos bens atingidos por decisão judicial de bloqueio universal de patrimônio, a serem destinados ao pagamento de honorários e reembolso de gastos com a defesa de seu proprietário.
Como esperado, não foram poucas as críticas ao dispositivo à época da tramitação do projeto. De um lado, houve quem argumentasse, por exemplo, que o dispositivo representaria apenas uma excessiva prerrogativa conferida à classe dos advogados, voltando-se exclusivamente a atender o interesse da categoria; de outro, que estava por se criar um perigoso instrumento para a realização de fraudes e perpetuação da impunidade, que permitiria, de alguma maneira, que o indivíduo continuasse a se beneficiar da conduta criminosa praticada[1].
Defendemos, porém, que o texto legal seja interpretado como um significativo avanço no campo da defesa dos direitos e garantias do investigado. Trata-se, a nosso ver, de uma aguardada resposta ao contínuo e progressivo endurecimento das leis penais notado nos últimos tempos, cuja lógica, quando justificada, exclusivamente, na busca da efetividade, desafia os mandamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.
A alteração legislativa se insere no contexto de uma recente revolução na dinâmica processual penal brasileira, marcada por profundas modificações nos padrões de investigação, persecução e julgamento, e pelo protagonismo da repressão aos delitos econômicos e à criminalidade organizada na formulação de políticas de segurança pública.
Um dos principais aspectos dessa transformação- e aquele que aqui nos interessa- é a materialização, pela instrumentalização do processo, de uma crescente preocupação do Estado com a recuperação de ativos, justificada na necessidade de reparar os danos causados pela conduta criminosa e de garantir-se que o autor não mais desfrute dos bens ilegalmente obtidos.
Como resultado, tem sido observada uma incomum profusão de medidas assecuratórias, por vezes implementadas de maneira desproporcional e prejudicial ao exercício da defesa. Nesse sentido, não raramente, medidas cautelares pessoais e patrimoniais são simultaneamente impostas ao investigado, que é imediatamente privado da liberdade e do acesso aos seus bens, antes mesmo da formação da culpa.
A prática foi amplamente difundida a partir do início da última década e da deflagração da chamada “Operação Lava Jato”, e tem se mostrado especialmente eficaz no estímulo à formalização de colaborações premiadas, sendo uma das principais responsáveis pela proclamada banalização do instituto.
De todo modo, não almejamos, por ora, analisar as causas dessa alteração do modus operandi estatal, muito menos sobre elas realizar um juízo de valor mais aprofundado. A relevância do fenômeno para este trabalho está na compreensão de que uma de suas possíveis consequências, o bloqueio universal de bens do investigado, tem se revelado um grande e recorrente obstáculo, por vezes intransponível, ao pleno exercício da defesa.
Tal ocorre porque, privado de qualquer recurso financeiro, não há como o investigado contratar uma equipe jurídica para representá-lo, muito menos custear as despesas relacionadas à sua defesa, como deslocamento dos advogados, contratação de assistentes técnicos para a produção de perícias informáticas, contábeis e financeiras, ou realizar qualquer outro ato investigativo defensivo[2] minimamente apto a contraditar as hipóteses acusatórias.
Do outro lado, posiciona-se o Ministério Público, órgão constitucionalmente incumbido de propor a ação penal, com todo o aparato estatal disponível para o desempenho do seu mister, o que acaba por criar um desequilíbrio na disputa processual que se estabelece após o oferecimento da denúncia entre Acusação e Defesa.
Na prática, a indisponibilidade absoluta de recursos impede não apenas o acesso aos meios necessários à preparação de sua defesa, mas o exercício do direito de ser assistido por um defensor de sua escolha (art. 8º, item 2, alíneas c e d, do Pacto de San José da Costa Rica)[3].
Assim sendo, ao possibilitar que parte do patrimônio bloqueado seja destinado ao financiamento da defesa técnica, a inovação legislativa promovida pela Lei nº 14.365/2022 surge como garantia à ampla defesa, traduzindo-se em um importante instrumento de efetivação do due process of law, expressamente previsto no inciso LIV, da Constituição Federal.
Em 21 de março de 2016, ao julgar o caso nº ICC-01/05-01/08, o Tribunal Penal Internacional concluiu que um conhecido político congolês, na qualidade de comandante das tropas do “Movimento de Liberação do Congo”, deveria ser responsabilizado pelos crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos pela milícia em território da República Centro-Africana nos anos de 2002 e 2003, condenando-o a 18 anos de prisão[4].
Trata-se de um caso emblemático, posto que o acusado, porquanto detentor de expressiva fortuna, não fazia jus, a priori, à assistência jurídica gratuita fornecida pelo Tribunal, tornando-se “o primeiro réu condenado pelo TPI cujo patrimônio foi congelado ou apreendido desde sua prisão cautelar e que, simultaneamente, custeou sua própria defesa técnica.”[5].
Diante do cenário, no que concerne ao objeto do presente artigo, merecem destaque as decisões proferidas pela Corte nos dias 10 de outubro (ICC-01/05-01/08-149) e 31 de dezembro de 2008 (ICC-01/05-01/08-339), que garantiram ao então investigado a liberação mensal de €36,260, dos quais €30,150 seriam destinados ao financiamento de sua defesa técnica e €6,110 ao sustento de sua família.
Em suas decisões, o Tribunal Penal Internacional reconheceu a necessidade de garantir ao acusado o acesso aos recursos financeiros necessários ao custeio de uma defesa qualificada e efetiva, reconhecendo que a circunstância então verificada representava gravíssimo risco aos direitos processuais do acusado, especialmente os direitos à livre escolha de seu defensor e de dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa.[6]
A dinâmica processual-penal brasileira, acompanhando o cenário político-social, sofreu profundas modificações ao longo da última década. O deslocamento do combate à criminalidade econômica e organizada ao centro do debate público, a intensificação da repressão estatal aos delitos dessa natureza e a crescente preocupação com a recuperação de ativos têm resultado em recorrentes e indevidas relativizações de direitos.
O uso demasiado de medidas assecuratórias por vezes impede que o investigado disponha de qualquer recurso financeiro, privando-lhe também de exercer os direitos à livre escolha de defensor[7] e de dispor dos meios necessários à preparação de sua defesa, corolários do devido processo legal[8].
Nesse contexto, o dispositivo inserido na Lei nº 8.906/94, muito embora não solucione o problema criado pelos bloqueios universais de bens, tem potencial para, ao menos, minimizar os prejuízos por eles causados ao exercício da defesa.
A materialização desse potencial, no entanto, depende da aplicação do procedimento pelo Poder Judiciário, a quem caberá interpretar a norma e definir a extensão de sua incidência.
Notas e referências
[1] Emenda de Plenário nº 11. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9154405&ts=1662983017845&disposition=inline>. Acesso em: 01/03/2023.
[2] Mencionar a positivação da investigação defensiva e um precedente de tribunal superior.
[3] “(...) Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
- a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
- b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
- c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
- d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;(...)”.
[4] Condenação que foi posteriormente revertida pelo Tribunal em sede recursal.
[5] : Pimenta de Souza, F., & De Oliveira Machado, D. (2 017). Natureza bifronte da recuperação de ativos pelo Tribunal Penal Internacional: Dissuasão da prática delitiva e reparação em favor das vítimas. Anuario Iberoamericano de Derecho Internacional Penal - ANIDIP, 5, 62-93, doi: http://dx.doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/anidip/a.5671.
[6] “In the Chamber's unequivocal view this means that the accused now lacks sufficient means to pay for his defence. The immediate and critical consequence is that his rights, first, to "have adequate [...] facilities for the preparation of the defence"; second, "to be tried without undue delay"; and, third, "to legal assistance of the accused's choosing" are each seriously imperilled if this situation is permitted to continue. Put bluntly, under the present arrangements the accused cannot take any meaningful steps to prepare for his trial.” – ICC-01/05-01/08-567-Red (p. 32, item 103).
[7] “(...) O réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da ‘persecutio criminis’, específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição.” (RTJ 142/477, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
[8] “- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o ‘due process of law’, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. - Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do ‘due process of law’ (CF, art. 5º, LIV) - independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do HC 96.905-MC / RJ 5 contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova. - Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’.” (MS 26.358-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
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