O ATRASO DO LETRAMENTO COMO EFEITO PÓS PANDEMIA

23/08/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

"O professor não ensina, mas arranja modos

de a própria criança descobrir. Cria situações-problema."

Jean Piaget (1986-1980)

Com a chegada da COVID/19, as escolas - públicas e privadas - foram obrigadas a seguirem orientações do Governo para suspensão de atividades presenciais. Neste cenário, as escolas tiveram que se adaptar a um novo modelo de ensino: o remoto.

Enquanto as escolas particulares detinham recursos para atenderem às novidades no ensino, com softwares modernos, engajamento dos professores e famílias com a viabilidade de prover internet e eletrônicos aos seus filhos; as escolas públicas sofriam com recursos escassos e acesso limitado de muitas famílias à internet e aos equipamentos eletrônicos, essenciais no formato.

No entanto, independente de onde as crianças estudam, elas estão sofrendo as consequências deste apagão no ensino regular presencial. E o ponto é o letramento.

As crianças passaram todo o ano de 2020 no modelo remoto de ensino, com regresso gradativo no ano de 2021 para o formato presencial. O movimento de volta às aulas com o convívio entre alunos e professores teve uma retomada lenta, cautelosa e diferenciada entre as escolas públicas e privadas e seus respectivos Estados.

Neste retorno ao sistema presencial pudemos observar que o ano de 2021 foi de avaliação do quanto as crianças absorveram, aprenderam e compreenderam as matérias na educação remota. Algumas escolas fizeram testes avaliativos, outras recuaram na matéria reprisando conteúdo.   

O direito à educação está compreendido dentre aqueles de cunho fundamental, expresso na Constituição Federal, em seus artigos 6º e 205 e seguintes. É um direito destinado a todos, de responsabilidade do Estado e da família. O Estatuto da Criança e do Adolescente, do mesmo modo, contempla o direito à educação das crianças, adolescentes e dos jovens em vários dos seus artigos, como direito público subjetivo, em especial, no seu artigo 53 e seguintes.

A doutrina jurídica-protetiva ao infanto e adolescente tem na sua base de estruturação duas ideias específicas, quais sejam: o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (LIMA; VERONESE, 2012, p. 54).

Para Isilda Campaner Palangana, em sua obra Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vigotski: a relevância do social (p. 11, 2015), a principal finalidade de toda estrutura educacional é promover a aprendizagem e o desenvolvimento do ser humano. E isso, por si só, justifica a preocupação de psicólogos e educadores com a complexa natureza do processo de educar. Palangana enfatiza as propostas de Piaget e Vigotski apontando as possíveis relações da aprendizagem com o desenvolvimento humano. 

Jean Piaget (1896-1980) foi um cientista suíço que se propôs a estudar o processo de desenvolvimento do pensamento, e não a aprendizagem em si. Para o cientista, a criança não pensa como um adulto, mas constrói o próprio aprendizado. Defendia em sua teoria denominada “epistemologia genética” a ideia de que o conhecimento não existe, porém se dava no conjunto de capacidades intelectuais hierarquicamente classificadas requerendo uma visão mais global.

Palangana (p. 27, 2015), refere que, para Piaget, quando a criança começa a coordenar seus esquemas, organizando suas ações no espaço e no tempo, surge a “lógica das ações”, permitindo a ela construir sua capacidade lógica, na medida em que atribui significado ao real, primeiramente no plano concreto e, em seguida, no plano abstrato.

Piaget concebia a criança como um ser dinâmico, que a todo momento interage com a realidade, especificando quatro estágios responsáveis pelo intelecto infantil. São eles:

a) Sensório motor (do nascimento aos 2 anos): Neste período a criança diferencia o que é dela daquilo que é do mundo (PALANGANA, 2015, p. 31).

b) Pré-operacional (2 a 7 anos): Neste estágio a criança progride ao desenvolver sua capacidade na linguagem, imitação postergada, etc. Ela não depende mais de suas sensações e movimentos, dispondo de esquemas de ações interiorizados. No entanto, a criança não consegue desfazer ainda seu raciocínio, retornando ao ponto inicial (PALANGANA, 2015, p. 31).

c) Operações Concretas (7 aos 12 anos): Piaget observa que as operações, ao contrário das ações, implicam em uma relação de troca. Neste período a socialização é acentuada, evoluindo a criança de uma configuração individualizada (egocêntrica) para uma mais socializada (PALANGANA, 2015, p. 32 e 33).

d) Operações Formais (dos 12 anos em diante): Neste estágio, o adolescente é capaz de pensar em termos abstratos, de formular hipóteses e de testá-las sistematicamente, independente da verdade (PALANGANA, 2015, p. 36).  

Assim, cada período define um momento do desenvolvimento como um todo e a ordem pela qual a criança atravessa é sempre a mesma, variando apenas o ritmo com que cada uma adquire as novas habilidades (PALANGANA, 2015, p. 29).          

Ao estudar a proposta teórica do psicólogo soviético Lev Semenovich Vigotski (1896-1934), no que tange à relação entre desenvolvimento e aprendizagem, a autora menciona que o desenvolvimento é um processo maturacional que ocorre antes e independentemente da aprendizagem. A aprendizagem, por sua vez, é um processo externo que não desempenha papel ativo no desenvolvimento, apesar de utilizar os progressos feitos pelo desenvolvimento. Assim, para Vigotski, esses dois fenômenos são distintos e interdependentes, um tornando o outro possível. E para explicar a relação entre eles ressaltou o importante papel da competência linguística na interação entre os dois processos, já que é por meio da apreensão e da internalização da linguagem que a criança se desenvolve (PALANGANA, 2015, p.162).

Na concepção vigotskiana toda a situação de aprendizagem tem sempre um histórico precedente, produzindo, ao mesmo tempo, algo novo no desenvolvimento da criança. Portanto, a inteligência é definida como uma habilidade para aprender. Vigotski acreditava que a aprendizagem ativa o processo de desenvolvimento tornando funcional na medida em que a criança interage com pessoas em seu ambiente, internalizando valores, significados, regras, enfim, o conhecimento em seu contexto social (PALANGANA, 2015, p.164).

Apesar de perspectivas diferentes apresentadas pelos estudiosos ora referendados, nota-se que a aprendizagem de uma criança envolve o seu desenvolver com o mundo externo. E o isolamento social provocado pela pandemia COVID/2019 afastou um mundo de experiências às crianças.

Ao encontro do entendimento destes estudiosos, num olhar atual, leciona Josiane Petry Veronese que, a criança num contexto de isolamento, diante da impossibilidade de acesso à escola, frequentar espaços públicos e brincar com amigos, compromete seu desenvolvimento sadio (VERONESE, 2020, p. 74-75).   

Agregado ao desenvolvimento social e saudável de uma criança, a alfabetização é um processo de apropriação do sistema de escrita de uma língua, baseada no contato presencial entre professor e aluno em sala de aula, fazendo parte do primeiro ciclo do Ensino Fundamental (a partir do 1º ano até o 2º ano).

O Brasil vem buscando há anos a ruptura com os métodos e as percepções tradicionais da educação, colocando o aluno como o centro da aprendizagem e trazendo o papel do professor como um facilitador dessa aprendizagem e não mais um transmissor de conhecimento.

Seja criança, jovem ou adulto, a alfabetização é um processo multifacetado que insere o sujeito no mundo codificado da leitura e da escrita. Já a compreensão e exercício da cidadania por meio do uso efetivo da linguagem, denominamos de letramento.

Portanto, é fundamental diferenciarmos alfabetização e letramento, como também é melhor ajudar o aluno a criar as condições para que ele possa compreender o mundo à sua volta, tornando-se um indivíduo participante na sociedade, em vez de ensinar-lhe o código da escrita, habilitando a leitura, porém sem capacitá-lo ao entendimento daquilo que ele lê.

Uma pessoa alfabetizada não é necessariamente uma pessoa letrada, pois alfabetizado é o indivíduo que apenas sabe ler e escrever; enquanto o letrado é aquele que sabe ler e escrever, e que responde de forma adequada às demandas sociais da leitura e da escrita. Magda Soares refere em sua obra que aprender a ler e a escrever e, além disso, fazer uso da leitura e da escrita transformam o indivíduo, levando-o a um outro estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre outros (2007, p. 31).  

Assim, letramento envolve mais do que meramente ler e escrever. De acordo com Kirsch e Jungeblut, conforme citado por Magda Soares (2007, pág. 72), o letramento não é simplesmente um conjunto de habilidades de leitura e escrita, mas o uso dessas habilidades para atender às exigências sociais. Desse modo, entende-se que letrado é o indivíduo que tem a capacidade de interagir, de forma adequada, com o mundo das letras, à sua volta.  

Retomando ao assunto intitulado por este artigo, podemos dizer que as crianças que foram (ou deixaram de ser) alfabetizadas em ano de pandemia terão prejuízos não só no conhecimento das letras e fonemas, como também situar essa compreensão da leitura e escrita no mundo em que vivem, justamente pela falha no alfabetizar e a falta temporária de convívio escolar.

A ONG “Todos pela Educação” divulgou uma nota técnica produzida com base na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2012 a 2021. O objetivo da pesquisa era apresentar impactos da pandemia COVID/19 na alfabetização de crianças brasileiras de 6 a 7 anos de idade. Nessa pesquisa, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os respondentes dos domicílios respondiam se suas crianças sabiam ou não ler e escrever.

A nota técnica aponta que entre 2019 e 2021, houve um aumento de 66,3% no número de crianças de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever. Trazendo para números, temos 1,4 milhões de crianças nesta situação em 2019 para 2,4 milhões em 2021.

A desigualdade aparece quando compararmos crianças brancas e crianças negras. O percentual de crianças brancas que não estavam plenamente alfabetizadas foi de 20,3%, em 2019, para 35,1%, em 2021. A diferença aumenta nas crianças negras sendo 28,8% em 2019, para 47,4% em 2021.

Identificado também pela pesquisa a diferença entre crianças residentes em domicílios mais ricos e domicílios mais pobres. O percentual das crianças mais ricas que não sabiam ler e escrever em 2019 foi de 11,4% para 16,6%, em 2021. Ao passo que para crianças moradoras em casas mais pobres temos 33,6%, em 2019, para 51,0%, em 2021.

Neste último critério avaliativo, percebemos que o acesso à internet e aos meios eletrônicos foi uma questão importante para o aumento no número de crianças não alfabetizadas em lares pobres.

A pesquisadora Isabella Starling, do Instituto Alfa e Beto, demonstrou os efeitos da pandemia no desempenho dos alunos do 2º ao 5º ano com relação à alfabetização, à compreensão de leitura e à fluência de leitura. Este estudo foi feito no município de Sobral, no Ceará, cidade referência em educação pública de qualidade e com tradição de alfabetizar os alunos no primeiro ano.

Os resultados do estudo indicaram que o maior prejuízo se deu aos alunos que não estavam alfabetizados antes da pandemia. Os alunos que ingressaram no segundo ano em 2022 não aprenderam a ler e os que entraram no terceiro ano em 2022 aprenderam a ler. Nos demais anos, os alunos demonstraram atraso em leitura.  

Interessante destacar que a pesquisa realizada na cidade de Sobral foi iniciada em 2019, antes da pandemia, com o intuito de entender a evolução da fluência de leitura. Para a pesquisadora, após análise da pesquisa, acredita-se que os efeitos encontrados foram provavelmente causados pela pandemia e não por um perfil de desempenho flutuante da rede. 

Conclui-se que o consenso é de que os impactos dos dois últimos anos não devem ser facilmente superados, visto que gerou um atraso no aprender de muitas crianças (alfabetização) e no convívio social entre elas, compreendendo a relação entre pessoas e a aplicação do conhecer no mundo (letramento), podendo perdurar por toda jornada educacional e profissional. A criança quando não é alfabetizada em idade adequada, traz prejuízos imensos para seu aprendizado futuro elevando os riscos de reprovação e abandono e/ou evasão escolar, principalmente em lares pobres.

A consequência do déficit de aprendizado entre crianças deverá levar anos para ser superado, pois alfabetizar uma criança de forma remota, impossibilita também as mediações sociais e pedagógicas feitas de forma presencial. Como se percebe, o aprender não se restringe aos aspectos cognitivos apenas. O desenvolver sadio, a introdução da linguística, a relação com o próximo para formar uma criança é tão complexo. Haverá de se ter um engajamento ainda maior, redes públicas e privadas, professores e familiares, para que as crianças, jovens e adolescentes não percam o interesse pelo aprendizado e pelo seu crescer, fazendo com que percebam que a capacidade está além do compreender, mas também no conviver.  

 

Notas e Referências

A PANDEMIA e o atraso na alfabetização. The News, 2021. Disponível em: https://thenewscc. com.br/2022/02/09/a-pandemia-e-o-atraso-na-alfabetização. Acesso em 15 de maio de 2022. 

GOMES, Maria de Fátima C; SENA, Maria das Graças de Castro. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. Alfabetização: a criança e a linguagem escrita. Campinas: Autores Associados, 2017. 

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICAS. Cidades e Estados. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. 

LIMA, Fernanda da Silva Lima; VERONESE, Josiane Rose Petry. Os direitos da criança e do adolescente: a necessária efetivação dos direitos fundamentais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. 

MORAIS, Artur Gomes de. Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. 

NOTA técnica: Impactos da pandemia na alfabetização de crianças. Todos pela educação. Disponível em https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2022/02/digi-

tal-nota-técnica-alfabetização-1.pdf. Acesso em 23 de junho de 2022. 

PALANGANA, Isilda Campaner. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vigotski: a relevância do social. São Paulo: Summus, 2015.  

PESQUISA mostra efeitos da pandemia na alfabetização, compreensão de leitura e fluência de leitura. Instituto Alfa e Beto, 2020. Disponível em:  https://www.alfaebeto.org.br/2022/05/04/pesquisa-mostra-efeitos-da-pandemia-na-alfabetizacao-compreensao-de-leitura-e-fluencia-de-leitura/. Acesso em 24 de julho de 2022. 

SANDER, Isabella. Pesquisas apontam que pandemia gerou atraso cognitivo e desigualdade na alfabetização de crianças. Gauchazh, 2000. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2022/02/pesquisas-apontam-que-pandemia-gerou-atraso-cognitivo-e-desigualdade-na-alfabetizacao-de-criancas-ckzylm9kp006e0165qbk5zzdv.html. Acesso em 23 de junho de 2022. 

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. 

VERONESE, Josiane Rose Petry. Pandemia, Criança e Adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 

VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 109.

 

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