Por Felipe Dalenogare Alves - 24/02/2016
Inicio este texto destacando que se trata de um artigo de opinião, em virtude do que não me aterei ao rigor do formalismo metodológico destinado à escrita científica. Pois bem, até o presente momento estou tentando definir o período de escuridão pelo qual passou a comunidade jurídica e acadêmica na data do dia 17 de fevereiro de 2016, com a decisão proferida pelo STF no Habeas Corpus nº 126.292/SP (acompanhe aqui).
Também entendo importante ressaltar, desde já, que não se trata de “um choro de advogado”, como sorrateiramente tem sido classificada a posição de inúmeros estudiosos do Direito nos últimos tempos. Exerço função incompatível com a nobre, honrosa e indispensável advocacia, por conseguinte e exclusivamente por isso, nunca pertenci a seus quadros. Trata-se do posicionamento de um estudioso do Direito, de um aluno e professor.
Poderia buscar em Alexandre Morais da Rosa a definição como “um erro retumbante” (leia aqui), em Luiz Flávio Borges D'Urso como “um desastre humanitário” (leia aqui), em Aury Lopes Júnior como “lamentável” (leia aqui), ou, simplesmente, dar a minha própria acepção, como “a tragédia jurídica do dia 17 de fevereiro de 2016”, à fatídica página da história do Supremo Tribunal Federal, ao permitir a execução antecipada da pena, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Não é exagero! Iniciamos (e já faz algum tempo) um período de insegurança jurídica, causada, em grande parte, pelos outdoors midiáticos que transmitem uma sensação de impunidade e instalam na sociedade a pregação de um discurso do ódio. Esse caos se aprofunda quando a instituição responsável pela guarda e concretização da constituição, deliberadamente, inicia a riscar suas linhas e a relativizar garantias conquistadas com a evolução da própria civilização. Infelizmente, parafraseando o ministro vencido Marco Aurélio, “não vejo uma tarde feliz na vida deste tribunal, na vida do Supremo” (leia aqui).
Ao falarmos de ativismo judicial na obra Judicialização e Ativismo Judicial, Lumen Juris, 2015, (leia aqui), eu e Mônia Clarissa Hennig Leal, na conclusão da obra, referimos que o ativismo judicial deve ser estudado metodologicamente, como um fenômeno, e não pode ser associado às decisões das quais gostamos ou não, no sentido de que, quando eu gosto da decisão ela não é ativista ou quando eu não gosto ela é. Diante disso, muito embora considere uma decisão odiável, daquelas que ficarão marcadas nos anais negativos do Supremo Tribunal Federal, como um dos maiores erros daquela Corte, passo a analisar, baseado em Kmiec (2004), três formas de manifestação do ativismo judicial presentes na decisão pretoriana.
A primeira está presente no afastamento dos cânones metodológicos de interpretação da Constituição. Poucos dias atrás, em entrevista, o presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) afirmara que o Brasil era o país mais garantista do mundo, graças a uma interpretação equivocada do Art 5º, inciso LVII, da Constituição (leia aqui). Logo, merecidamente, levou algumas “chineladas” acadêmicas, a exemplo das desferidas por Isaac Yarochewsky (leia aqui) e André Karam Trindade (leia aqui). Àquela ocasião, me atrevi a dizer: o que há a ser interpretado em tamanha literalidade deste inciso? Ousadamente, disse e repito: não há o que ser interpretado! Talvez tenha sido isso que tenha levado Lenio Streck a dizer, em curtas palavras, que o Supremo deveria, simplesmente, ter deixado a Constituição Federal falar por si.
No país, após a promulgação dela, ninguém será (“seria”) considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Simples assim! O marco da culpabilidade é o trânsito em julgado, existe alguma dúvida? Este, por sua vez, é um instituto de definição universal, ensinado em todas as salas de aula e definido em uma frase curta, como aquela decisão da qual não caiba mais recurso, ponto! Significa dizer que, ao decidir como decidiu o STF, a Corte, interpretando o dispositivo, extraiu que é permitido encarcerar o indivíduo, para o cumprimento de pena, após o acordão condenatório em 2º grau, mas ainda não há trânsito em julgado (alguém em sã consciência jurídica consegue entender?).
Caso, no interstício entre a execução provisória da pena e o trânsito em julgado, haja o provimento de algum dos recursos nos Tribunais Superiores (ainda que não se analise matéria de fato) que leve o indivíduo à inocência, solta-se e paga-se (diante do caos atual, é discutível se fará jus) uma simplória indenização com o dinheiro público que sai do bolso do contribuinte? Simples assim?
Essa não era a intenção do Constituinte de 1988. Com isso, além de se afastar dos cânones metodológicos, verifica-se que, ao desconsiderar a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o Tribunal realizou julgamento para alcançar resultado pré-definido, desviando-se do objetivo visado pela norma (a garantia individual de não ser tratado pelo Estado e pela sociedade como culpado até decisão irrecorrível) e da própria vontade, como dito acima, do constituinte.
Outra forma de ativismo levantado pelo autor estadunidense se refere à não aplicação dos precedentes (reconhece-se, é claro, que para o sistema commow law há um peso muito maior nesta face do ativismo judicial, ainda que, conforme Kmiec, haja divergência doutrinária quanto aos precedentes horizontais). Há de se destacar que, em 2009, por 7 a 4 (ironicamente o mesmo coro da horrenda decisão deste ano), o STF já havia enfrentado a questão e “deixado a constituição falar”. Naquela límpida ocasião, decidiu-se que o cumprimento da pena iniciaria (por óbvio) após o trânsito em julgado (quando não coubesse, repito, mais nenhum recurso).
Outra face do ativismo judicial, por nós batizada de “ativismo concretizador”, refere-se à predisposição do Supremo para, em nome da defesa e concretização dos direitos fundamentais (veja a ironia!), passar a desempenhar atribuições da esfera de atuação dos demais Poderes, principalmente em matéria de políticas públicas. Neste caso, poderíamos batizar uma nova face, a do “ativismo desconcretizador”. Sim, pois ouvindo a “voz do povo” – se é que ela é majoritária – o STF fez o que nem o constituinte derivado poderia fazer (suprimiu uma cláusula pétrea!).
Dito de modo figurado, desejando ouvir a voz das ruas, sete ministros com sua toga escura (Teori Zavascki, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes – alguns deles, sinceramente, me decepcionaram) suprimiram um direito fundamental duramente conquistado, quando, o que deles se esperava era que, do embate entre vontade popular-populista x direitos fundamentais, estes fossem protegidos. Sim, um Tribunal Constitucional, na proteção a esses direitos, age ainda que contramajoritariamente, este é seu papel! Será que quisera o Supremo, no dizer de Fernando Hideo Lacerda, “buscar um lugar indevido sob os holofotes”? (leia aqui). O que fez, concordando-se com Fabio Tofic Simantob, “não é uma decisão, é uma emenda constitucional. Proibida pelo próprio constituinte, já que a presunção de inocência até o trânsito em julgado é cláusula pétrea” (leia aqui).
A quem cabe ouvir a voz das ruas? Aos Poderes políticos! Para ocupar cargo político nestes Poderes, não há necessidade de notório saber jurídico. É este requisito, por exemplo, que impede o Deputado Tiririca de sentar em uma das onze cadeiras do plenário do STF. Caberia ao Poder Político, ouvindo a voz das ruas, proceder a uma reforma e, via emenda constitucional, suprimir as hipóteses de recurso especial e extraordinário (entendo que, ainda assim, se poderia discutir se a supressão não configuraria retrocesso social – depois que se garante “o mais” não se retroage “ao menos”).
Não poderia o STF ter agido como “justiceiro” ou como “superego de uma sociedade órfã” no dizer de Maus (2000). Pelo contrário, seu papel deveria ter sido contramajoritário, na defesa de garantia literalmente expressa na Constituição. Errou! A amplitude do erro foi tamanha que marcará não apenas a Constituição, que teve seu inciso LVII, do Art. 5º, riscado, como a jovem democracia brasileira. O próprio Häberle (2002), ao tratar do que chama de “Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição”, defende que todos se tornem verdadeiros intérpretes constitucionais, mas que a palavra final cabe à jurisdição constitucional.
Poderia o Supremo alegar que estaria cumprindo com seu dever de proteção (Schutzpflicht) à sociedade. Ocorre que, como sabemos, as medidas do Estado para promovê-lo devem estar pautadas entre a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) e a proibição de excesso (Übermassverbot). No caso em tela, ao suprimir garantia constitucional e lesar diretamente direito fundamental de outrem, resta, a medida, evidentemente excessiva, não atendendo a necessária proporcionalidade.
Infelizmente, no ano de 2009, quando ingressara na faculdade de Direito, acompanhando o Caso Battisti, ouvira um Deputado italiano afirmar que o Brasil era conhecido por suas dançarinas e não por seus juristas (leia aqui). Àquela época, pensei que isso seria um devaneio. Infelizmente, com essa trágica decisão, alguns anos depois, começo a compreender o porquê de tal afirmação, restando apenas a esperança de dias melhores.
Penso, por fim, que caberá às organizações de defesa aos direitos e garantias fundamentais promover representação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois mesmo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) não trabalhe com o conceito de “trânsito em julgado”, mas com “comprovação de culpa”, esta, conforme o texto constitucional brasileiro, ocorre após o trânsito em julgado (decisão irrecorrível). Há de se dizer, também, que muito embora a CADH mencione o duplo grau de jurisdição (o que estaria garantido com a possibilidade de apelação ao TJs e TRFs), o sistema normativo brasileiro implementou as hipóteses de RE e REsp, garantindo-se “a mais”, de modo que a norma convencional não poder ser interpretada restritivamente, ou seja, quando o Estado-parte garantir outros direitos nela não expressos, prevalece o principio pro homine.
Notas e Referências:
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2002.
KMIEC, Keenan Douglas. The Origin and Current Meanings of Judicial Activism. In: California Law Review. v. 92:1441. California, 2004. Disponível em: <http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4>. Acesso em: 18 out 13.
LEAL, Mônia Clarissa Hennig; ALVES, Felipe Dalenogare. Judicialização e Ativismo Judicial: O Supremo Tribunal Federal entre a interpretação e a intervenção na esfera de atuação dos demais Poderes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade sobre o papel da atividade jurisprudencial na “Sociedade Orfã”. Trad. Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Paulo Menezes Albuquerque. In: Revista Novos Estudos. 58. n. São Paulo: CEBRAP, 2000.
Felipe Dalenogare Alves é Doutorando e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes – UCAM; em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Membro do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional Aberta”, vinculado e financiado pelo CNPq e à Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), desenvolvido junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP (financiado pelo FINEP). Membro docente do Instituto Brasileiro de Direito – IbiJus. Professor no Curso de Direito da Faculdade Antonio Meneghetti - AMF.
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