Espaço do Estudante
O artigo de hoje tem como objetivo tratar do art. 7º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015) e a posição do “garante” nos crimes de resultado, à luz da teoria do crime.
A recente Lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015 que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, em seu art. 7º, define “ser dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência”.
A norma supramencionada impõe uma obrigação, um dever de agir a todos que presenciarem ou tomarem conhecimento de qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência.
Nesse contexto, questiona-se de que forma seria a responsabilização daquele agente que, sabendo da ameaça ou da violação deixa de comunicar as autoridades competentes.
O Código Penal, em seu artigo 13, ao dispor sobre a causalidade do ato e do resultado, define que o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa, considerando-se causa, a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Nesse contexto, também define o Código Penal que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.
Sabe-se que o dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado, (art. 13, §2º do CP).
Relacionando-se a alínea 'a', do parágrafo 2º do art. 13 do CP, e o art. 7º Lei nº 13.146/2015, conclui-se que poderá ser considerada causa de um resultado criminoso a ação ou omissão de “todas as pessoas estão por lei obrigadas a agir, comunicando à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência”, já que a lei impôs uma obrigação de cuidado, proteção e vigilância.
A título de complementação, entende-se como indispensável a comparação entre o delito culposo e o delito omissivo.
De plano observa-se que no delito culposo a realização da atividade é facultada ao agente, enquanto que no delito omissivo a atuação é sempre obrigatória. Tem-se, portanto, que o “fato de nos delitos omissivos a atividade ser obrigatória, e nos culposos facultativa, tem como consequência, a vinculação ou não dos agentes na configuração do tipo.”[1]
Comparando o delito culposo com o delito omissivo, Juarez Tavares[2] ensina que:
No crime omissivo, o dever jurídico legal vincula o sujeito e se deixa por ele fundamentar. Só deve atuar aquele sujeito que traz em sua pessoa as condições para tanto e se obrigou a fazê-lo, conforme o âmbito de suas relações, ou aquele sujeito que se encontra inserido nas situações típicas previstas normativamente. No crime culposo, o dever resulta da configuração da atividade perigosa, como cuidadosa ou não. O problema dos agentes não importa na configuração do tipo, a não ser se a negligência basear-se na assunção de atividade para o qual o autor não estava habilitado.
Entende ainda o autor que, para a caracterização do delito culposo necessária a investigação, a fim de aferir se houve ou não atividade descuidada, o que caracteriza uma diferença entre os delitos culposos e omissivos, uma vez que neste o dever de agir “não é gerado pela forma de atividade, mas pelas relações do agente em face da ordem jurídica, quer como garantidor, quer como portador das condições típicas de assistência,”[3] tendo em vista que:
A noção de conduta cuidadosa, por isso mesmo, constitui o cerne da problemática do delito negligente, e assinala seu desvalor do ato. Como a não realização ou omissão da atividade cuidadosa nada mais é do que modalidade de infração ao dever de agir cuidadosamente, tanto faz falar-se de infração do cuidado como de omissão do cuidado. Corretamente, dever-se ia sempre falar de omissão do cuidado e de infração ao dever de cuidado, pois só através do não cumprimento do cuidado é que se infringe o dever de cuidado.
Da leitura acima se extrai que todos passamos à figura de garantidor a partir do momento em que a lei atribui a nós o dever legal de comunicar às autoridades competentes de qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência, conforme já dito.
Entretanto, nesse momento, indaga-se qual o limite da responsabilidade ao agente que, podendo, deixa de agir, causando a omissão real interferência sobre o resultado? O vizinho que eventualmente escuta o outro, agredindo fisicamente/psicologicamente o parente deficiente deverá ser responsabilizado, da mesma forma pelo resultado? A escusa do não conhecimento do fato seria apta a afastar a imputação criminal? Até onde vai o direito à privacidade? Qual a (real) função do direito penal na repressão de condutas como essa?
Nesse contexto, o artigo 21 do Código Penal traz a situação denominada ‘erro sobre a ilicitude do fato, definindo o texto da lei que “o desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.
Juarez Tavares aduz que a “consciência da norma proibitiva como tal conduz ao reconhecimento, em caso de sua ausência do chamado erro de proibição direto”. Entende o autor, haver ainda uma diferença entre o “erro de tipo permissivo” e o “erro de permissão”, sendo o primeiro o “erro sobre os pressupostos típicos de uma causa de justificação”, enquanto o segundo “o erro sobre os limites jurídicos e a subsistência de uma causa de justificação”.[4]
O objetivo do autor com essas diferenciações – tendo em vista que o artigo 21 do Código Penal não disciplina todas estas espécies de erro – é salientar que “não afeta a culpabilidade a questão do desconhecimento ou conhecimento acerca da validade (vigência) ou âmbito de incidência de uma lei”[5], uma vez que
a adoção da relevância do erro de proibição inevitável constitui decorrência dos fundamentos da culpabilidade de vontade, lastreados na norma proibitiva e mandamental, pois não se pode sancionar aquele que atua sem consciência da ilicitude de seu ato. Uma tal sanção, se prevalente, estaria e desacordo tanto com a estrutura normativa quanto com o sistema deduzido da própria definição de inimputabilidade (art. 26), que se baseia precisamente na capacidade de conhecimento da ilicitude do fato. Tanto pode o conhecimento relacionar-se à capacidade natural de apreensão das coisas (submetendo-se, pois, ao domínio da imputabilidade), quanto de valorar seu ato de acordo com padrões dominantes na ordem jurídica e impostos coercitivamente. [...] O limite mínimo da atribuição de responsabilidade pessoal tem que ser efetivamente alicerçado na possibilidade de conhecimento da ilicitude. (grifo)
A aferição a tal posicionamento dá-se em função da necessidade do exame da subsistência ou não da culpabilidade negligente, uma vez afastado o dolo da conduta do agente, pois, se chegar-se a concluir que o conhecimento acerca dos elementos da causa de justificação concretamente examinada “era impossível ao agente, segundo suas condições pessoais, não há que se falar em delito culposo, em virtude de não se haver integralizado sua culpabilidade”[6] uma vez que “o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação só tem relevância na negligência consciente e sobre ele não podem incidir as regras do artigo 20 §1º, diferentemente da negligência inconsciente”[7] tendo em vista que:
Como o agente que atua lesando um dever de cuidado não possuí consciência acerca do emprego dos meios, nem estabelece ponderação de valor, nem tem notícia da situação de necessidade, torna-se irrelevante a investigação da modalidade de erro de tipo permissivo, senão na hipótese de atuação dolosa com resultado culposo. É que, muito antes de se avaliar se efetivamente houve ou não um tal erro, já estaria, pelo mesmo motivo, excluído o próprio injusto da conduta. Esta é uma conclusão lógica das características especiais que modelam o injusto do fato culposo.[8]
Ocorre que, uma vez atribuindo, a lei, o dever de cuidado, segundo o Código Penal, o garante responderia dolosamente, abrindo aqui espaço, inclusive, para a discussão quanto à aplicabilidade da Teoria da Imputação Objetiva.
Dessa forma, inegável a eminente necessidade de discussões sobre o tema pela comunidade jurídica, diante do caráter inovador do que dispôs o Estatuto, ainda mais em uma área movediça e embrionária tal qual é o ordenamento jurídico brasileiro acerca das matérias que envolvem a proteção à pessoa com deficiência, e também considerando a tênue diferenciação entre a conduta comissiva por omissão e o delito negligente.
Notas e Referências:
[1] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: Uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.240
[2] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: Uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.240
[3] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: Uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.240
[4] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 403
[5] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 404
[6] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 405
[7] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 405
[8] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência: uma contribuição à teoria do crime culposo. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 406
. . Juliana Hermes Luz é Aluna de Pós Graduação da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Assessora do Ministério Público de Santa Catarina. . .
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