O anverso olhar da Terceirização no Brasil: um diálogo anacrônico através da janela da história

23/04/2017

Por Andreu Sacramento Luz – 23/04/2017

“O homem explora o homem e por vezes é o contrário”

Woody Allen

As mãos eivadas de dignidade sobressaem do corpo já fatigado do trabalho e da astúcia daquele que outrora explorou e, continua por explorar a crescente massa operária que envaidece a sua “gente indigente”.

“Ó pátria amada, idolatrada, salve! Salve”[1], cantamos em frente ao lábaro que não mais ostenta estrelado: ele foi ofuscado pela cinzenta massa da cultura europeia, racista e preconceituosa que nos oprime desde o primeiro momento que pisaram em nosso solo.

Erámos organizados em tribos, assim como em África, a Grande Mãe, e em cada tribo estavam concentrados os costumes, vestimentas, religiões e cultura do nosso povo. Era a nossa casa. Habitat natural, silvestre, doméstico, livre e sem impedimentos: enganam-se quem pensava que existia ambiente mais natural que o nosso. Prefiro este àquele da nobreza europeia, cheio de pompa e fineza, que se embaraça a cada passo nas estreitas silhuetas da formalidade.

No compassado desenrolar da história, urge na passarela brasileira, atemporal, o Manifesto Antropofágico[2], que se destaca nos seguintes termos:

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os sustos da psicologia impressa”. Oswald de Andrade. Revista de Antropofagia, Ano I, No. I, maio de 1928[3].

Destarte, sucede a história nacional que depois de uma errônea aventura pelos mares do nosso mundo, eles desembarcaram em solo brasileiro e adentraram a nossa casa. O desembarque foi tranquilo, afinal eles queriam conquistar o futuro objeto de exploração.

Em seguida, depuseram meu reinado, tiraram minhas roupas, ou melhor, vestiram-me (meus hábitos de vida eram considerados indecorosos quando comprados à cultura europeia, moldada aos dogmas da fé cristã), fui catequisado (aprendi a rezar o credo e o pai nosso, sem esquecer-me da salve rainha – aquela virgem que deu à luz, milagrosamente, ao salvador daquele povo), fui ensinado, e, depois de massacrantes mutilações subjetivas, endereçaram-me para o quartinho dos fundos (àqueles que até hoje os homens brancos possuem em seus apartamentos nas grandes metrópoles).

Da janela do meu quarto eu pude ver a história da marginalização forçada, entretanto, frustrada, devido à resistência dos oprimidos. Também acompanhei da mesma janela histórica, a destruição do povo negro nos longos anos que sucederam o processo de escravização institucional no Brasil. Houve um diálogo nosso, por vezes esquecido, mas que vaga até hoje o nosso imaginário.

Assim, partindo de um diálogo anacrônico, a modulação social contemporânea mostra-se ativa e acordada, manifestando-se todos, sem distinção, contra as inovações políticas que assombram o cenário jurídico e social pátrio, tais como: a reforma da Previdência Social (à nossa época não tínhamos previdência, afinal não havia quem explorar a nossa mão de obra e o nosso solo – não existiam conflitos de propriedade, éramos todos pertencentes à mesma tribo); e a reforma do Direito do Trabalho no tocante ao instituto da Terceirização (vernáculo bonito para traduzir a exploração do trabalho, por meio da prestação de serviço, sem fazer responsabilidade aos riscos da atividade econômica, pelo empregador), objeto de análise do presente escrito; bem como de outras reformas politicas, jurídicas e sociais que foram postas em pauta para de forma descabida serem apreciadas.

Aprecio da janela do quartinho que me colocaram (bem lá no fundo), a comunidade branca, manifestando-se contra a Terceirização que no pretérito apenas alcançava a mulher pobre, a dona de casa, assim como também alcançava os homens negros, tal como aquele “tio”, porteiro, daquele colégio que seus filhos estudam. Enfim, alcançava a todos aqueles que desenvolviam a atividade meio (o meio nunca é tão interessante assim, convenhamos), que, não surpreendentemente, estão escalonados em uma “classe” socialmente estigmatizada e diminuída por força da opressão rudimentar hegemônica.

Vamos à análise mais aprofundada do estudo:

Obtempera-se considerar ser este nosso discurso um ato sem nome e sem identidade, que subverte a ordem, retira dos tronos os “poderosos”, extingue a dicotomia cristã, aceitando, ainda que arriscada a sensação, ser taxado como louco.[4]

Partindo de uma análise social da Terceirização no Brasil, vislumbra-se que a mesma possui características sociais, econômicas, políticas e jurídicas, que marcam a sua transição na historicização do Direito do Trabalho.

Não há que se ofuscar que o Direito do Trabalho é criado, nutrido e maturado no seio da sociedade. Sendo, por essa razão que o texto constitucional (Constituição cidadã de 1988) consagra os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais no capítulo inerente aos Direitos Sociais (Capítulo II), tutelando-o, por conseguinte, dentro do rol das garantias constitucionais.

Destarte, é o Direito do Trabalho uma máxima dos Direitos e Garantias Sociais que se fortalece através da garantia, pelo Estado, dos Direitos e preceitos fundamentais. Origina-se assim o também dever de tutela e garantia do notável Direito à Dignidade Social da Pessoa Humana (dimensão da Dignidade da Pessoa Humana, quando tomada em sentido amplo).

Nesse sentido são as sabias lições do Professor Maurício Godinho Delgado:

(...) a ideia de dignidade não se reduz, hoje, a uma dimensão estritamente particular, atada a valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. Ao contrário, o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser humano. A dignidade da pessoa fica, pois, lesada caso ela se encontre em uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social. Enquanto ser necessariamente integrante de uma comunidade, o indivíduo tem assegurado por este princípio não apenas a intangibilidade de valores individuais básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano social circundante. Na medida desta afirmação social é que desponta o trabalho, notadamente o trabalho regulado, em sua modalidade mais bem elaborada, o emprego[5].

Assim, o Direito do Trabalho está posto na sociedade como instrumento apto a garantir, o quanto prevê, a norma constitucional pátria, tutelando, através das suas normas e princípios, a Dignidade da Pessoa Humana inserindo, sucessivamente, o homem/trabalhador (sujeito de direitos e deveres na esfera jurídica) na ordem da sociedade capitalista que o cerca.

Nesse diapasão, cumpre ressaltar a posição da sociedade capitalista e a ascensão do trabalho humano, bem como as crescentes formas de exploração social e humana do trabalho. Salienta-se que lecionam as doutrinas da matéria estudada, que seria o direito do trabalho o meio permissivo de participação social na construção e realização de condições reais de vida, o que realmente mostra-se coerente.

Destaca-se que as partes envolvidas na relação jurídica de emprego, quais sejam o empregado (pessoa física) e o empregador (empresa individual ou coletiva), encontram-se inseridos no sistema capitalista que, dentre outras elementares, conduz a uma cultura de opressão e segregação. Daí se consagra o princípio da hipossuficiência do empregado em relação ao empregador.

Nessa esteira discursiva, verifica-se que em face dos avanços tecnológicos, a produção torna-se sucateada com mais celeridade, fazendo com que os grandes empreendimentos que possuem grande numerário de funcionários prestando serviço de forma direta, invistam em novos ensinos e treinamentos para uma completa adaptação aos novos formatos exigidos. Isto é, com o surgimento de uma nova tecnologia, far-se-á preciso o treinamento de novo pessoal.

Desta forma, surgiu a modalidade de contratação por empresa interposta (ilegal, exceto para prestação de trabalho temporário, ou para execução de atividade meio – Súmula 331, I e III do Tribunal Superior do Trabalho), no qual a tomadora de serviço (empresa contratante) celebra contrato de prestação de serviço eximindo-se da subordinação jurídica e pessoalidade do empregado (dois dos cinco elementos que constituem a relação de emprego), bem como da admissão direta do mesmo e demais ônus da contratação de prestação de serviço de um empregado, como nos extraordinários contratos de empreitadas.

Nessa toada, o empregador (senhor/ patrão/ dono da obra) “desvincula-se” das obrigações trabalhistas direta, vez a inexistência da subordinação e pessoalidade da prestação do serviço, não assumindo assim, os riscos comuns da atividade jurídica. Ressalta-se ser este, um fenômeno atípico quando inserido meio aos princípios norteadores das obrigações inerentes ao desenvolvimento da atividade econômica, ou seja, em face do bônus, há o ônus.

Importante destacar que no situado momento histórico, a contratação por meio da Terceirização dar-se para a execução da atividade “meio”. Entretanto, no diagrama histórico contemporâneo, o irracional “avanço” propagado pela conjuntura política brasileira, encabeçada pelas lideranças partidárias do executivo e do legislativo, opta por alargar as vidas da intervenção legal na construção do direito nacional e social, permitindo, sem maiores resignações, a também terceirização da atividade “fim”.

Isto é, todos os profissionais, independente da atividade que desenvolva para o empregador, podem ser contratados através da terceirização. Assim, insta questionar sobre o momento (espaço/tempo) de luta, manifestações e protestos contra a irracional reforma do instituto da Terceirização e, por conseguinte, o tempo que muitos se mantiveram silentes frente ao descaso já ocorrido.

Sabe-se que temporalmente nenhum processo de luta e insatisfação é tardio, entretanto, há que se refletir o “porquê” da luta, neste momento, contra a Terceirização, vez que a sua institucionalização se deu em momento pretérito quando apenas atingia os trabalhadores que desenvolviam as atividades “meio”.

Resta-se claro que, da janela do quarto que me colocaram, enxergo a cor e classe da Terceirização. Ela é negra e pobre (em situação de pobreza). Entretanto, agora ela se encontra em transição, saindo da senzala para a casa grande. O médico, o engenheiro, o advogado, o “doutor”, o branco que me explorou, o rudimentar que destruiu os reinados africanos, que escravizou e escraviza centenas de milhares de negros no Brasil, sentiu-se afrontado com a destrutível ação da Terceirização.

A vulnerabilidade tocou os pés daqueles que no passado não se importavam com o referido instituto. Vê-se que a preocupação não era para ser tão recente.

Trata-se de uma premissa antiga de valorização egoísta da perpetuação da propriedade privada (sustentada pelo sistema capitalista), ou seja, enquanto não me é tolhido, não tenho o que manifestar.

Debruçando-se sobre o olhar cientifico, entende-se através da leitura da súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, não ser permitida a contratação de trabalhadores por empresa interposta, constituindo-se, por conseguinte, o vínculo de emprego com o tomador de serviço, exceto quando se tratar de trabalho temporário.

Todavia, o mesmo entendimento sumular, através de uma ação jurisprudencial dilatória e danosa à relação direta de emprego, viabiliza a contratação, por meio de empresa interposta, para execução de atividade “meio”, quais sejam: serviços de vigilância, de conservação e limpeza, e de serviços especializados ligados à considerada atividade “meio”.

Como já exposto em parágrafo anterior, o “fantasioso” avanço na reforma dos institutos do Direito do Trabalho, dentre os quais se destaca, por epígrafe no respectivo escrito, a Terceirização, sofreu novos contornos com a lei n° 13.429/17, sancionada e publicada pela atual conjuntura administrativa e legislativa pátria, cuja vigência se deu desde a data de sua publicação que alterou o ramo da história, ampliando as modalidades de contratação das empresas prestadoras de serviços.

Os manifestos alargaram-se. Iniciaram-se as lutas. Como no pretérito a propriedade intelectual e laboral da massa opressora do Brasil não estava sendo atingida, não havia necessidade para, vestindo-se com as cores das manifestações, ir à busca dos direitos dos negros, pobres, socialmente marginalizados e oprimidos que, no passado e no atual presente, vê o seu direito sendo sucateado através da diminuição da contratação direta dos seus serviços.

Reafirma-se, por conseguinte, que a Terceirização no Brasil tem cor, e é negra. Tem nome. São mulheres, homens, pretos, pobres periféricos, marginalmente posicionados, incumbidos apenas de executar as atividades “meio”, do empreendimento secular formado pela massa hegemônica branca e cristã.

Entretanto, uma vez sendo ameaçadas as privilegiadas posições da comunidade branca, que assumem posição de honra dentro do ramo empresarial, os médicos, os advogados, os doutores do nosso Brasil que zombam do nosso Macunaíma[6], saem às ruas para manifestar, tardiamente, por um processo negativo no fantasioso avanço dos direitos sociais do trabalho.

Por que não antes? Por que somente agora, depois que a terceirização do trabalho alcançou a atividade “fim”? Pode alcançar o doutor, médico do Hospital Geral do Estado, que mesmo tendo jurado pela profissão, viola os estatutos médicos e dedica-se à corrupção.

Fecho a janela do meu quartinho, aquele que me refugiaram desde os tempos passados, e ponho-me a escrever sobre os reflexos da arte na literatura e no direito da nossa gente, porque a arte e a literatura não tem cor, gênero, raça, muito menos condição (posição) social. Leio, sem lei, a leitura mais nobre daquela manifestação corporal, social e cultural.

No fim! Me pinto pra guerra.


Notas e Referências:

[1] Trecho do Hino Nacional Brasileiro.

[2] O Movimento Antropofágico teve como líder Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Raul Boop, dentre alguns outros. Ocorre salientar que o Movimento surgiu na década de 1920 tendo como marco a Semana de Arte Moderna, que aconteceu no Estado de São Paulo, entre 11 e 18 de Fevereiro de 1922, e que posteriormente ficou conhecida como “Semana de 22”. A grande sacada do movimento estava concentrada na dualidade de objetivos existentes. Isto é, buscava-se influenciar a produção artística nacional através da valorização das suas origens (como a indígena), entretanto, não havia a produção de pensamento que almejasse um descarte completo de tudo que era europeu ou estrangeiro.

Em resumo, o que se buscava era um processo de racionalização artístico nacional, refutando-se na criação “laica” e desprendida de quaisquer produções objetivando a construção de uma identidade genuinamente brasileira.

[3] Andrade, Oswald de. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, Ano I, Nº I, Maio de 1928.

[4] FOUCAULT, Michael. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

[5] DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2. ed., São Paulo: LTr, 2004, p. 43-44.

[6] ANDRADE, Mario de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro, Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, 1993.


Andreu Sacramento Luz. Andreu Sacramento Luz é Bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Pesquisador. Poeta. Membro do Grupo de Pesquisa: Fractais Transdisciplinares do Direito. Ex-Monitor das disciplinas de Direito Civil Parte Geral e Direito Civil Obrigações da Faculdade Ruy Barbosa. E-mail: andreuluz.adv@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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