O anarquismo metodológico nas decisões judiciais - Por Andressa Tomazini

30/03/2017

As interferências no método originário se fazem necessárias, visto que os objetos de estudo variam entre uma área e outra, um tipo de pesquisa e outro, para alcançar os objetivos almejados pelo pesquisador. Além disso, cada estudo possui suas particularidades, e para que as mesmas possam ser levadas em consideração, a autonomia na determinação do método mais apropriado, deve permanecer na mão do pesquisador, pois ele é, o indivíduo mais familiarizado e próximo com seu trabalho e seus objetivos. O produtor do conhecimento possui como dever objetivo apenas o detalhamento, com rigor, de todas as etapas de seu trabalho, permitindo a sua verificação e reprodução por parte de outros pesquisadores:

“Francis Bacon compreendeu essa questão já no século XVII, ao escrever: sempre que passo a um novo experimenta de qualquer sutileza (embora em minha opinião esteja correto e eu o aprove), acrescento uma explicação clara sobre como eu o realizei; pois os homens, sabendo exatamente como cada argumento foi construído poderão ver se há algum erro ligado a ele e empenhar-se em criar provas mais confiáveis e mais requintadas, se tais provas puderem ser encontradas. Finalmente interponho por toda parte admoestações, escrúpulos e cautelas a serem tomadas, com um religioso cuidado em eliminar, reprimir e até exorcizar todos os tipos de fantasmas (Burtt, 1967, p. 21)”[1]

Os métodos indutivo, dedutivo, sistêmico, analítico etc, podem não oferecer ferramentas suficientes para estudar determinado objeto. Por isso, há uma impossibilidade de concretização do estabelecimento e oferecimento de poucas e rígidas metodologias na e por parte da ciência. Cada um, devido à subjetividade presente, parte de um determinado ponto, observa por diferentes ângulos, e por isso necessita de metodologias diferentes e adequadas para o estudo, análise e alcance de determinado saber. O cientista é influenciado por variáveis, algumas coincidentes com aquelas pelo qual o julgador também o é.

Similarmente ao que ocorre na área científica, no âmbito jurídico, mais precisamente na produção das decisões judiciais, existe uma tentativa de unificação e universalização do método de decidir, englobando não só a estrutura da peça mas igualmente seu conteúdo, através de súmulas, súmulas vinculantes, julgados, jurisprudências, modelos, al qual, como na produção científica, mostra-se inadequada e inaplicável.

Na área jurídica, para cada caso analisado mudam-se, inevitavelmente, as variáveis influenciadoras da prestação jurisdicional[2], modificando de alguma forma, seja ela explícita ou implicitamente, os resultados finais, pois mudam-se, da mesma forma, as estratégias, as provas, os jogadores, a arquibancada, os momentos da partida, e a própria modalidade do jogo (como por exemplo no processo penal tem a do furto, do roubo, do homicídio, do estelionato, etc.).

Destarte, o anarquismo metodológico[3] se faz presente e deve ser defendido, na produção científica e na produção jurisdicional, respectivamente, em prol do progresso científico e sistema processual-constitucional, pois a liberdade de adoção do método avaliado por parte do cientista como o mais adequado à sua pesquisa é tão importante quanto garantir a liberdade de análise, motivação e fundamentação, por parte do julgador.

Considerando que cada caso é um caso, ou em outras palavras, admitindo que cada partida é diferente da outra, decidir mediante uma metodologia anárquica, nada mais é do que respeitar as peculiaridades de cada jogo processual, concretizar garantias positivadas como o devido processo legal, a individualização dos autos e da decisão, e ainda, assegurar aos jogadores que o jogo será “apitado” com base nele mesmo, e não em outras partidas já terminadas.

Em contra partida, decidir de maneira mecanizada, sistematizada e automatizada é então, no mínimo, afrontar o que foi dito acima, de modo a tratar os desiguais de maneira igual. É como um sistema composto por chave e fechadura onde há duas maneiras de abrir a porta: a primeira seria abrir todas as fechaduras com uma única chave, havendo como consequência certa dificuldade de encaixe ora devido ao tamanho, ora à espessura, ora ao comprimento, podendo ocasionar poucas ou muitas lesões nela; e a segunda, abrir cada fechadura com sua respectiva chave.

Embora muitas vezes o anarquismo metodológico apareça de maneira sutil e escondida por detrás da fundamentação jurídica, ele se faz presente na peça decisional e encontra-se na motivação, parte subjetiva da decisão, onde impera a subjetividade do julgador, a qual reflete no modo como se deu o processo decisório, e, por conseguinte na adoção de certo posicionamento.

Conclui-se então, no sentido de que, a presença da metodologia anárquica vai de encontro a possibilidade de unificação e generalização de entendimentos de casos e métodos de deliberar judicialmente, devido ao dever de observar, no sentido de considerar, individualmente cada jogo processual, bem como suas regras e participantes. Outrossim, as jurisprudências, os entendimentos, os casos julgados, e as súmulas servirão como referências e modelos que, facultativamente, podem ser seguidos em decisões futuras.

Ademais, não se deve procurar enrijecer o método de decidir, nem buscar um entendimento único por parte dos magistrados, porque a liberdade tanto para posicionar-se quanto para a modificação de posicionamentos são benéficas, pois permitem a reflexão sobre novos pontos de vista, a adequação do direito no tempo e no espaço, a mudança de paradigmas e uma resposta jurídica contextualizada. O direito não é estático, pelo contrário, há uma constante mudança nas variáveis do jogo.

Muito mais que permanecer na ilusão da existência prática de uma total neutralidade e imparcialidade por parte do juiz é, desde a academia, construir a intenção de um decidir constitucional, em prol dos ritos e princípios processuais e materiais, que vise a justiça, o bem comum e a concretização de direitos. A partir do momento em que a motivação e a subjetividade forem vistas com bons olhos, elas poderão cada vez mais serem direcionadas e utilizadas como ferramentas favoráveis aos objetivos do Sistema Judicial e dos sujeitos que o integram.


Notas e Referências:

[1] CHALMERS, Alan Francis. A fabricação da ciência. São Paulo: EdUNESP, 1994. p. 67.

[2] ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Florianópolis: Emporio do Direito, 2016. p. 83.

[3] FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de Octanny S. da Motta e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 29: ““A idéia de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método, que encerre princípios firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios vê-se diante de considerável dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica. Verificamos, fazendo um confronto, que não há uma só regra, embora plausível e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro que tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrário, que as violações são necessárias para o progresso. Com efeito, um dos notáveis, traços dos recentes debates travados em torno da história e da filosofia da ciência é a compreensão de que acontecimentos e desenvolvimentos tais como a invenção do atomismo na Antigüidade, a revolução copernicana, o surgimento do moderno atomismo (teoria cinética; teoria da dispersão; estereoquímica; teoria quântica), o aparecimento gradual da teoria ondulatória da luz só ocorreram porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas ‘óbvias’ ou porque involuntariamente as violaram”.

CHALMERS, Alan Francis. A fabricação da ciência. São Paulo: EdUNESP, 1994

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Tradução de Octanny S. da Motta e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Florianópolis: Emporio do Direito, 2016


 

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